Amazonas enfrenta segunda cheia extrema em menos de um ano
Por Gabriel Ferreira/via Amazonia Real
Em menos de um ano, o estado do Amazonas enfrenta novamente enchentes dos rios acima dos níveis considerados normais por especialistas em hidrologia. A chamada cheia extrema, que provoca inundações, transbordamentos, danos econômicos e humanitários às populações ribeirinhas e das zonas urbanas, já elevou para mais de 29 metros as águas do rio Negro, um dos formadores do Amazonas junto com o rio Solimões, na altura de Manaus. A expectativa é que a cheia ultrapasse os mais de 30 metros registrados em junho de 2021.
No dia 1º de junho de 2021, o rio Negro atingiu a marca de 29,98m, ultrapassando a marca histórica anterior, de 2012. No dia 15 de junho subiu mais ainda, chegando a 30,02m.
Atualmente, dos 62 municípios do estado, 59 estão sofrendo danos por causa das cheias dos rios, principalmente a falta de alimentos porque as lavouras estão inundadas. Um total de 320.222 pessoas estão diretamente afetadas, segundo levantamento da Defesa Civil do Estado.
Para 2022, as previsões são semelhantes as do ano passado, indicando uma recorrência de cheia elevada para o manancial. De acordo com o monitoramento de hidrologia do Serviço Geológico do Brasil (sigla CPRM), a média prevista para este ano será de 29,80m, mas podendo chegar até 30,30m.
As enchentes extremas, segundo os especialistas, são provocadas pelo fenômeno La Niña (esfriamento do Oceano Pacífico), que ocorre desde meados de 2020. Nos últimos anos, o fenômeno tem se tornado mais frequente, com menos intervalos entre si.
Na quarta-feira (18), o rio Negro atingiu a marca de 29,29m, ultrapassando a cota de inundação severa, conforme diz o CPRM, empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia. A cota de inundação severa é quando o rio chega a 29 metros e começa a inundar a rua dos Barés, no centro de Manaus. Com a subida das águas, as galerias que ficam abaixo das ruas transbordam e inundam esta via e ruas adjacentes. A Defesa Civil iniciou a construção de 250 metros de passarela para o tráfego de pedestres na rua
Nos municípios de Manacapuru e Itacoatiara, os rios Solimões e Amazonas também atingiram a cota de inundação severa ao chegarem a 19,62m e 14,72m, respectivamente. Também deverá ocorrer uma cheia expressiva nos municípios de Manacapuru, Itacoatiara e Parintins.
Como mostrou a Amazônia Real, Parintins, município da região do Baixo Rio Amazonas conhecido mundialmente por seu festival folclórico, acumula ao longo dos últimos 30 anos problemas de infraestrutura e falta de políticas públicas para populações mais pobres, situação que se agrava no período chuvoso na Amazônia e pelas cheias cada vez mais intensas do rio Amazonas.
A pesquisadora Luna Gripp, do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), disse que os prognósticos para 2022 são de atingir as cotas máximas. “A gente observa que existe a probabilidade de que o rio Negro atinja as cotas máximas observadas no ano passado, embora ela não seja tão grande”, explicou.
Em dez anos, Manaus registrou seis das maiores cheias do Negro. E em nove anos foram três registros históricos: 2009, 2012 e 2021. Segundo Luna, apesar de ser grande a probabilidade de uma grande inundação mais uma vez, isso não significa que a cheia será tão grande quanto a de 2021.
No momento, os impactos das inundações, que já começaram, são sentidos em cidades do interior do Amazonas e também em Manaus.
O mais município do interior mais atingido é Manacapuru, com 38.690 pessoas afetadas e 9.673 famílias atingidas. Os demais municípios são: Guajará, Envira, Eirunepé, Ipixuna, Boca do Acre, Itamarati, Juruá, Careiro da Várzea, Canutama, Benjamin Constant, Lábrea, Tabatinga, Borba, Itacoatiara, Atalaia do Norte, Carauari, Rio Preto da Eva, Japurá, Santo Antônio do Içá, Manaquiri, Caapiranga, Nova Olinda do Norte, Tefé, Anamã, Boa Vista do Ramos, Maués e Careiro Castanho.
Em Manaus, a estimativa da Prefeitura é de que 14 comunidades rurais sejam afetadas, principalmente as que estão localizadas à margem esquerda do rio Negro.
O secretário executivo da Defesa Civil Municipal, coronel Fernando Júnior, disse que em breve deve ser decretada situação de emergência e que o trabalho executado este ano segue o mesmo parâmetro da cheia de 2021.
“O trabalho da Defesa Civil é muito parecido por conta da severidade que se apresenta esse ano. Já foram feitas mais de três mil pontes e passarelas na capital. Os principais bairros atingidos já estão sendo assistidos por essas pontes e passarelas”, disse.
No total, conforme a Defesa Civil Municipal, na capital amazonense já foram afetados 18 bairros: Educandos, Raiz, São Jorge, São Geraldo, Betânia, Colônia Antônio Aleixo, Aparecida, Mauazinho, Compensa, Santo Antônio, Centro, Puraquequara, Tarumã, Tarumã-Açu, Crespo, Glória, Vila da Prata e Cachoeirinha. Desse total, 12 bairros já foram atendidos pela Defesa Civil.
Outra área que pode ser afetada pela cheia do Negro é a Praça do Relógio, segundo o secretário executivo. “Há uma previsão que haja um extravasamento da água na parte cultural da cidade, ali onde fica o porto, o relógio, onde também serão colocadas passarelas com estrutura metálica, cerca de 750 metros de passarela”, informou.
De acordo com o coronel Fernando Júnior, a construção das pontes e passarelas será feita até o ápice da cheia, que ocorrerá na segunda quinzena do mês de junho.
Temperatura dos oceanos e eventos climáticos
O pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTIC), Jochen Schöngart, do Grupo de Pesquisa Ecologia, Monitoramento e Uso Sustentável de Áreas Úmidas (MAUA), diz que o aumento da frequência na magnitude de cheias severas, do ponto de vista climatológico, tem relação com os oceanos próximos da bacia amazônica.
De acordo com ele, nos últimos 30 anos, com destaque para 2021 e 2022, tem ocorrido um contraste de temperaturas superficiais, o aquecimento das águas do Atlântico Tropical e o esfriamento do Pacífico Equatorial. Portanto, esses dois fenômenos geram pressões atmosféricas entre esses dois oceanos. Com isso, há intensificação de uma ponte atmosférica passando por cima da região amazônica e que resulta “em mais convecção de nuvens, mais chuvas e a consequência dessas cheias severas que estamos observando e convivendo”.
Além disso, o pesquisador aponta as relações das mudanças climáticas globais com eventos extremos como as cheias dos rios nos últimos anos no Amazonas.
“É uma mistura para a variabilidade natural de grandes extremos climáticos com uma contribuição das mudanças do clima”, declara.
Para Foster Brown, pesquisador do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre (Ufac), o aumento da temperatura do planeta é um dos fatores influentes associados às fortes chuvas que causam as grandes cheias dos rios e também as secas severas.
“Com o aumento da temperatura, a atmosfera tem mais energia, seja na forma de vapor de água, seja no calor sensível. Uma consequência deste processo é que se antecipam as chuvas mais fortes e as secas mais fortes”.
O meteorologista Flávio Natal, coordenador do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) no Amazonas, afirma que durante os meses chuvosos de 2022, ou seja, desde janeiro, as precipitações no estado têm sido diárias. Neste ano, isso ocorreu principalmente nos meses de março e abril, com volumes acima do normal. Nos últimos 15 dias a área onde mais chove é na região do Alto Rio Negro, no Amazonas.
Ele diz que a cheia do rio Negro, em Manaus, está relacionada com o padrão persistente das chuvas desde meados de 2019, o que causou a enchente de 2021 e agora. Isso ocorre devido “à persistência de um longo evento de La Niña, desde o trimestre de julho, agosto e setembro de 2020”.
Chuvas intensas por longos períodos ocasionam enchentes acima dos 29 metros. “O acúmulo dessas chuvas acaba por provocar o transbordamento dos cursos d’água, ou seja, a vazão da água excede a capacidade de escoamento dos rios e transbordam, invadindo os ambientes fora de suas margens”.
Flávio também disse que a chuva está acima da média nos rios Solimões e Amazonas desde o início da estação chuvosa de 2019/2020.
“Os meses de março e abril são por natureza chuvosos e o La Niña é capaz de aumentar esse quantitativo”, diz o meteorologista. O mês de maio representa normalmente o fim do ciclo chuvoso. No entanto, o La Niña pode gerar mais chuvas dentro do período seco.
Até julho, a previsão é de chuvas acima do normal no Amazonas, Acre e na região centro-sul de Roraima.
De acordo com Philip Fearnside, biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), as temperaturas do Oceano Atlântico estão mais quentes e as do Oceano Pacifico mais frias. Trata-se, portanto, de situação similar a de 2021, embora o Pacífico estivesse mais frio no ano passado. “Os mecanismos explicando a enchente devem ser parecidos este ano”, afirma.
Grandes cheias do Rio Negro
Nos últimos dez anos, as cheias do rio Negro, em Manaus, têm ultrapassado com frequência a marca de 29 metros. Em 2014, ela alcançou 29,50 metros. Em 2009, chegou a 29,77 metros, batendo o recorde em 100 anos. Esta marca foi ultrapassada três anos depois, quando chegou a 29,97 metros.
A pesquisadora Luna Gripp do Serviço Geológico do Brasil, afirma que as cheias que atingem Manaus, Manacapuru e Itacoatiara estão correlacionadas à proximidade das maiores bacias do estado, os rios Negro, Solimões e Amazonas.
Ela diz que o grande volume de água, associado a uma região plana, influencia no escoamento dos rios, gerando as inundações. Por exemplo, em Manacapuru, no Médio Rio Solimões, existe uma vazão média de 100 milhões de litros de água por segundo e esse processo relacionado à forma geológica plana do município e ao escoamento do rio interfere em rios próximos, como é caso dos rios Negro e Amazonas.
Quando o rio Solimões está em um nível elevado, o volume de água que chega pela calha do rio Negro não consegue escoar, influenciando o nível das águas em Manaus. “E é da mesma forma quando o Solimões começa a escoar rapidamente; É como se ele abrisse passagem e o Negro também escoa. Aí a gente tem uma redução do rio Negro em Manaus”, diz.
Sobre os fenômenos que determinam a magnitude das cheias nos rios do Amazonas, ela detalha que as águas que chegam pelo rio Solimões são oriundas de toda sua bacia de drenagem, que inicia na região dos Andes.
Portanto, há água do rio escoada da Colômbia, Peru, que atravessa todo o Amazonas, no sentido de oeste para leste, coletando água da calha principal do Solimões e seus afluentes.
Ocorre o mesmo processo na água que vem do rio Negro, da cabeceira, na Colômbia. Essa água passa por todo estado no sentido leste, incluindo também todo estado de Roraima, coincidente com a bacia do rio Branco, que é o principal afluente do Negro.
Toda essa água coletada nas duas bacias de drenagem é o que vai determinar se o estado terá uma grande enchente ou não. “A chuva que ocorre nessas duas bacias vai determinar a magnitude do nosso evento de cheias”, diz a pesquisadora.
Em relação ao município de Parintins, na região do Baixo Amazonas, que está em situação de alerta, a pesquisadora reforça que há um problema adicional às inundações causadas pela enchente, que são os alagamentos das ruas por um sistema de drenagem insuficiente da água das chuvas.
“Além da inundação, a gente teve problema de alagamento. A diferença de alagamento para inundação está associada à subida do nível do rio e aí sempre os ribeirinhos vão ser afetados. Já o alagamento está associado à incapacidade do sistema de drenagem da cidade de escoar um determinado volume de chuvas”, detalha Luna Gripp.
O alagamento em alguns pontos de Parintins não está associado somente ao nível do rio Amazonas, conforme explica a pesquisadora. “Às vezes a gente está em época que o rio nem está tão alto. Em janeiro e fevereiro temos um volume de chuva concentrado na região, então a água não consegue escoar, e aí a gente tem esse problema de alagamento. Em abril tivemos um problema desse tipo em Parintins, nas chuvas que ocorreram. E agora, mais recentemente, já vemos problema de inundação”.
Monitoramento da Defesa Civil do Estado
O chefe do Centro de Monitoramento e Alerta (Cemoa) da Defesa Civil do Amazonas, tenente Charlis Barroso, afirma que as ações realizadas pelo órgão ocorrem independentemente do rio Negro atingir a marca histórica de inundação. “Começamos a dar resposta ao desastre a partir do momento em que ocorrem danos e prejuízos no município. O município faz as primeiras ações e depois pede ajuda complementar para o Estado e para União”.
Barroso também afirma que os municípios próximos já estão em alerta. De acordo com ele, se as condições meteorológicas e hidrológicas mantiverem, é possível que mais municípios entrem em situação de emergência, medida adotada quando a capacidade de resposta local se esgota e é preciso pedir ações complementares.
Em 2021, a cheia histórica no Amazonas afetou cerca de 450 mil pessoas e atingiu mais de 100 mil famílias, de acordo com a Defesa Civil.
Veja como foi a enchente de 2021 no documentário “Agachados”.
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