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Cicatrizes que entram para a história

Cicatrizes que entram para a história: a comoção de servidores após ataque ao Congresso no dia 8 de janeiro de 2023

Por BrasildeFato

Dois dias após os ataques que abalaram os prédios principais dos Três Poderes, em Brasília (DF), o clima entre servidores públicos do ainda é de desgosto e tristeza diante do ocorrido. Os milhares de trabalhadores que atuam nos prédios seguem contabilizando os prejuízos e lamentado o rastro de destruição que ganhou os holofotes e correu o mundo.

O cenário de deixado pelo grupo de bolsonaristas comoveu, por exemplo, o recém aposentado Alan Silva, que deixou as funções no final de 2022, depois de dez anos à frente do Museu do Senado e após quatro décadas como funcionário público da instituição. Ele diz lamentar profundamente a destruição de móveis, gravuras, pinturas, tapeçarias, vidraças com elementos históricos e outros bens atacados pelos terroristas.

“A própria fachada do prédio é assinada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, então, o palácio em si já é uma obra de que foi depredada com pedras, paus e quebra-quebra. Foram depositados trabalho e na dedicação pra desse material todo que está zelado pelo Museu do Senado. Eu assisti pela TV estarrecido com o que estava vendo.”

A barbárie que assombrou o país atingiu diferentes objetos históricos e obras de artes da Câmara dos Deputados e do Senado, um patrimônio de valor quase incalculável. Ainda não se sabe ao certo o tamanho do prejuízo, mas somente neste último a estimativa é de que sejam necessários entre R$ 3 milhões e R$ 4 milhões para a reparação dos danos, sendo mais de R$ 1 milhão apenas para a troca das vidraças.

Marcas

O impacto da ação dos extremistas impressiona os servidores em cada detalhe dos rastros deixados pelo caminho. Alan Silva cita a preocupação com móveis de quase 200 anos de que vieram do Palácio Conde dos Arcos e do Palácio Monroe, respectivamente a primeira e a segunda sedes do Senado, ambas localizadas no Rio de Janeiro (RJ).

“Por sorte, não havia documentos que pudessem ter sido estragados, porque com documento a perda é ainda maior. O Museu do Senado conta a história do Senado. Então, todo esse evento entra pra nossa história, e as cicatrizes deixadas nas gravuras, na tapeçaria, no mobiliário, nas pinturas vão fazer parte da nossa história. Parte da nossa narrativa ao contar a trajetória do Senado Federal vai conter agora essas marcas de uma invasão, de uma dilapidação do nosso patrimônio artístico e cultural.”

Depois que a polícia começou, na segunda (9) pela manhã, a identificar a existência de eventuais bombas deixadas nos prédios e fazer a coleta de digitais dos invasores, um grupo do museu entrou em ação para identificar de forma preliminar os principais danos e contabilizar os estragos para começar a planejar o processo de recuperação do patrimônio. Quando soube dos ataques, Silva se voluntariou para ir até a sede do Legislativo verificar os prejuízos.

O aposentado afirma que o Museu do Senado tem um laboratório próprio  e conta com colaboradores que irão auxiliar na restauração dos bens. Ele acredita no sucesso do trabalho a ser desempenhado pelos especialistas, mas pontua que alguns sinais tendam a permanecer.

Vidros estilhaçados e obras de arte desmanteladas são algumas das cenas de horror criadas pelos bolsonaristas / França/Agência Senado

“Quando você pega uma linha dentro de uma tapeçaria e rasga com uma faca, por exemplo, você vai fazer uma emenda. Quando se quebra um mobiliário de madeira e vai restaurar, a fissura pode até ser ocultada, mas o móvel fica mais fragilizado. Qualquer interferência de restauração é agressiva. Nós procuramos fazer interferências mais sutis, que são a conservação. A restauração é o último passo, quando o dano está feito. E, pra recuperar pelo menos a dignidade ou a forma da peça, você entra com um processo cuidadoso de recuperação, mas é impossível uma recuperação que não deixe marcas”, explica.

Câmara dos Deputados

Na Câmara, a selvageria dos ataques espantou a servidora pública Patrícia Nogueira, que está passando férias fora do país e se viu atônita ao tomar conhecimento das invasões. Além de desempenhar funções de apoio ao trabalho dos parlamentares, ela atua como guia em visitas cívicas promovidas pelo Congresso e destinadas a turistas interessados em conhecer as instalações do Poder Legislativo e suas obras de arte.

Por conta disso, a servidora tem familiaridade com os diferentes pontos do imóvel e sua história, na qual ela mergulhou ainda desde 2002, quando começou a trabalhar no espaço. Abalada diante do caos criado pelos terroristas nos prédios que compõem o Palácio do Congresso, ela chegou a compartilhar a tristeza nas redes sociais.

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Patrícia Nogueira durante tour guiado para jovens estudantes que visitavam o Congresso Nacional em julho de 2022: “Eu me sentia meio ‘guardiã’ daquilo tudo” / Arquivo pessoal

“Conheço cada milímetro daqueles edifícios, cada peça do da Câmara e do Senado, cada um dos presentes protocolares saqueados pelos terroristas. Estou arrasada. Não acreditei quando a minha irmã me ligou pra dizer o que havia acontecido em Brasília. Parecia um pesadelo. É como se tivessem entrado na minha própria casa e vandalizado meus próprios bens”, desabafou.

Assim como os demais servidores ouvidos pela reportagem, Patrícia destaca o zelo e o afeto que os funcionários do Legislativo nutrem pelo espaço, que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan): “Eu me sentia meio ‘guardiã’ daquilo tudo, tanto que nunca me cansei de fotografar e declarar meu amor e admiração por este monumento de Niemeyer, que sempre julguei o mais espetacular de todos (e ele também)”.

Sentimento semelhante manifesta Ana Karine Nogueira, concursada que também atua na Casa há pouco mais de 20 anos. “O servidor da Câmara, principalmente o que trabalha há mais ali, tem uma ligação afetiva muito grande com o local. Eu tenho por diversos fatores. Cresci com meu tio, que vivenciava a política nos bastidores lá desde a época da ditadura. Eu estudei muito pra estar lá, conheci meu marido lá, gosto do trabalho que realizo e, apesar dos pesares, acho que dou uma contribuição pra . Então, esse episódio todo me trouxe várias revoltas.”

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Tapete do São Verde, espaço dos mais emblemáticos da Câmara dos Deputados, foi alagado e danificado / Jefferson Rudy/Agência Senado

Ana Karine conta que, quando as primeiras imagens da destruição verificada no último domingo (8) começaram a circular, o sentimento entre os servidores era de indignação, manifestada de forma veemente em diferentes grupos de WhatsApp. Ela diz jamais ter visto algo desse porte.

“Era muita gente revoltada lamentando. Eu, por exemplo, me senti ultrajada como cidadã, como servidora pública, como brasiliense. Depois de tudo isso veio a tristeza. De madrugada acordei algumas vezes e me vinham aqueles flashes de vídeos que eu tinha assistido. Chorei também. É como se tivessem feito isso na minha casa. Foi horrível. Aqui em casa o domingo foi um dia de luto. Sabe como eu me sinto agora, depois disso? Me sinto como se estivesse de ressaca.”

O vandalismo dos terroristas pró Bolsonaro também consternou a servidora Adriana Jannuzzi, que se viu preocupada diante dos danos causados à estrutura fornecida a pessoas com deficiência que frequentam o local. Tendo estado à frente da Coordenação de Acessibilidade da Câmara ao longo de 18 anos, ela lamentou ao Brasil de Fato a depredação, por exemplo, da maquete tátil do prédio. O material é voltado ao uso de pessoas cegas que queiram entender como são as formas arquitetônicas do Congresso Nacional.

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Destruição de maquete ajuda a ilustrar cenário de caos criado por apoiadores de Bolsonaro / Jefferson Rudy/Agência Senado

A miniatura foi inaugurada em 2008 e após um exímio trabalho desenvolvido por servidores. Uma outra maquete, esta voltada ao público em geral, sofreu danos ainda maiores. “O que dá tristeza é a gente ter tanto trabalho pra preservar a Câmara, fazer isso com carinho, com cuidado pra manter um aspecto bonito pro visitante, e depois se deparar com tudo isso. Eu chorei tanto que me acabei de chorar. Fiquei muito arrasada. Invadiram o lugar onde a gente trabalha todo dia e onde damos o nosso melhor pras coisas funcionarem. Isso é um horror”, desabafa Jannuzzi.

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Maquete tátil já passa por primeiras medidas de restauração feitas por especialistas após ataque dos extremistas / Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Previsibilidade

Ana Karine afirma que a tristeza se amplia quando ela associa o ocorrido no domingo a episódios anteriores visualizados pelas pessoas que trabalham ou transitam pelo Congresso. A servidora narra que há cerca de um mês, por conta de uma manifestação golpista que interditou uma das entradas da Câmara, viveu momentos de tensão por ter tido dificuldade para atravessar a portaria e receber o lanche que pediu por um aplicativo.

“Havia poucos manifestantes, um número pequeno, mas eles eram agressivos. Foi em um dia em que eles até agrediram dois parlamentares e alguns servidores, e o policial legislativo não me deixou pegar meu Ifood porque ele falou ‘é perigoso. Eles estão agressivos’, até que eu insisti e ele foi me escoltando.”

Para a servidora, o incidente de domingo demonstra a inoperância das forças de segurança, especialmente as do governo do Distrito Federal, diante do caos previamente anunciado. “Os atos poderiam ter sido previstos, e não deveriam ter sido desprezados a capacidade e a maldade dos extremistas. Até eu, que não sou envolvida com esses grupos extremistas, já sabia que haveria essa manifestação porque isso estava circulando em grupos de WhatsApp, então, não era novidade pra ninguém. As coisas estavam se construindo pra chegar a esse ponto, e isso me deixa muito triste.”

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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