O Brasil nunca esquecerá

O nunca esquecerá – A longa noite do terror (1964-1976)

Tortura, assassinato, prisões ilegais e intimidação foram instrumentos utilizados desde o primeiro dia pelos chefes do golpe militar.

Por Memorial da Democracia 

Em 1º de abril de 1964, dois estudantes que defendiam a legalidade do governo deposto foram assassinados no Recife; na mesma cidade, o ex-deputado e líder comunista Gregório Bezerra foi amarrado pelo pescoço e espancado em praça pública por militares do Exército, enquanto se desencadeava em todo o país uma onda de prisões sem mandato que atingiria 50 mil pessoas em poucas semanas. Era o começo de uma noite de terror, contra cidadãos e a sociedade, que iria durar 21 anos.

O Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, que cassou os direitos políticos de uma centena de pessoas e os mandatos de 40 parlamentares, foi o primeiro de uma série de atos autoritários ilegítimos, que destruiriam a ordem jurídica, o Estado de Direito e o respeito aos fundamentais no Brasil da ditadura. “Os Chefes da vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o e em seu nome exercem o Poder Constituinte”, dizia o preâmbulo do Ato 1, assinado pelos três ministros militares.

O novo regime se tornaria cada vez mais arbitrário, na medida em que a sociedade reagia à consolidação da ditadura. As medidas de força chegariam ao auge com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, e prosseguiriam, mesmo depois da liquidação dos grupos de resistência armada, em 1974, até o fim do regime. 

Para se impor ao país acima do Estado de Direito, do Congresso e dos juízes; para implantar uma ordem autoritária e um modelo econômico antinacional e concentrador de renda, não bastava silenciar a oposição, os sindicatos e os estudantes. A ditadura precisou intimidar a sociedade. Essa estratégia, que ficou bem caracterizada no final de 1968, correspondia a uma doutrina que foi institucionalizada e contou com  organismos próprios e agentes públicos autorizados a prender, torturar e matar, sob uma cadeia de comando que partia do topo do poder.
     
A base ideológica da repressão e da intimidação foi a Doutrina de Segurança Nacional, introduzida no país desde os anos 1950, por militares que cursaram o National War College, do Departamento de dos Estados Unidos. Esses militares criaram a Escola Superior de Guerra, que difundiu a política dos EUA contra a “ameaça comunista”, no ambiente da Guerra Fria. A Doutrina estabelecia os conceitos de “inimigo interno”, “guerra subversiva” e “guerra psicológica adversa” para caracterizar ações dos “comunistas” e seus aliados. Adversários do governo e do regime eram tratados como inimigos do Estado.

Técnicas de “guerra à subversão” foram ensinadas a militares brasileiros na Escola das Américas, instalada no Panamá pelos EUA e frequentada por oficiais de toda a América Latina. Ali foram disseminadas técnicas de tortura utilizadas pelo exército colonial da França contra movimentos de libertação nacional na Indochina e na Argélia. Militares brasileiros também aprenderam, na Inglaterra, técnicas de tortura psicológica empregadas contra membros do Exército Republicano Irlandês (IRA). 

Com base na Doutrina de Segurança Nacional, o general presidente Castelo Branco, ex-aluno do War College, criou em junho de 1964 o  Serviço Nacional de Informações, o SNI. Sob o comando do general Golbery do Couto e Silva, o SNI começou a cobrir o país com um vasto aparato de . Os tentáculos do “Serviço”, como era chamado, se estenderiam ao Cone Sul da América Latina e a qualquer lugar do mundo onde houvesse brasileiros exilados e perseguidos pela ditadura. 

Na esteira do SNI, foram criados centros de informações nas Forças Armadas e seções de espionagem e denúncia de “subversivos” em todas as instituições públicas. Nenhum cidadão estava a salvo da escuta telefônica ou da violação de correspondência, praticadas sem qualquer controle pelos agentes do Sistema de Segurança Interna (Sissegin), instituído com base no AI-5. Bastava um informe do SNI para decretar a demissão e a perda de direitos políticos de civis e militares. Centenas de milhares de brasileiros foram espionados pelo “Serviço”, que continuaria atuando mesmo depois do fim do regime militar.

A repressão política esteve inicialmente a cargo de cada Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops), que devia atuar em coordenação com os comandos militares de cada região. Em1967, o Exército criou uma inspetoria para controlar as polícias militares estaduais, que eram empregadas para reprimir manifestações públicas. Em 1969 foi criada a Operação Bandeirante (Oban) para coordenar a ação das polícias civil e militar, Polícia Federal e Forças Armadas na região de

A Oban, além de receber recursos do Estado, era financiada também por empresas brasileiras e multinacionais, entre as quais: Ultra, Ford, General Motors, Camargo Corrêa, Objetivo, Grupo Folha, Nestlé, General Eletric, Mercedes Benz, Siemens, Light, Bradesco e Banco Mercantil de São Paulo, de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) promovia reuniões de arrecadação de recursos para a OBAN, também de acordo com o relatório da CNV.

A partir de 1970, a repressão passou a ser coordenada diretamente pelo Exército, por meio do Destacamento de Operações de Informações  – Centros de Operação de Defesa Interna (DOI-Codi), com apoio de agentes da Marinha e Aeronáutica e das polícias civis, militares e Federal. Os DOI-Codi adotaram a tortura sistemática de presos políticos, constituindo verdadeiras centrais de terror.  Em 1971, a partir de uma ordem do ministro do Exército, Orlando Geisel, o assassinato e “desaparecimento” de presos tornou-se regra e era praticado em centros secretos de extermínio, como a Casa da Morte de Petrópolis.

A ditadura também acobertou organizações clandestinas de política, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e outros grupos que explodiram bombas, sequestraram líderes democráticos e agrediram artistas e estudantes. Os integrantes e chefes desses grupos paramilitares eram conhecidos pelo comando oficial da repressão e jamais foram punidos por seus crimes. Também de forma clandestina e à margem das leis internacionais, a repressão brasileira integrou a Operação Condor, com agências de repressão do Chile, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai.

Além de intimidar qualquer tipo de contestação, o regime rotulou os opositores como “subversivos” e “terroristas”. Esse estigma era potencializado em programas de TV como “Amaral Neto, o Repórter”, da Rede Globo, e “Flávio Cavalcanti”, da TV Tupi. Presos torturados foram levados à TV para se declarar “arrependidos da subversão”. Grandes operações de revista de carros reforçavam o medo entre a população.

Em 1969, a Doutrina de Segurança Nacional foi introduzida no currículo escolar obrigatório, por meio das disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. O próprio slogan  da ditadura era uma intimidação: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. 

Texto: Memorial da . Capa: BERK-OZDEMIR/Memorial da Democracia. 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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