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Indo “recoger los pasos” no Chile

Indo “recoger los pasos” no Chile

“Si vas para Chile / Te ruego, viajero /

 Le digas a ella / Que de amor me muero.”  (Chito Faró, 1942)

Por José Bessa Freire  

Sim senhora, fomos ao Chile outra vez agora, no 8 de setembro, em uma caravana de brasileiros que lá se exilaram em três levas. A primeira após o golpe de 1964. A segunda, da qual fiz parte, levada pelo AI-5, ambas no governo democrata cristão de Eduardo Frei. A terceira, na era Garrastazu, acolhida pelo governo socialista de Salvador Allende. Os chilenos solidários, que nos receberam de braços abertos, comprovam “cómo quieren en Chile al amigo cuando es forastero”.

Partimos de várias cidades do . No Rio de Janeiro, o grupo de ex-exilados se reuniu sábado (26 de agosto) no salão reservado da Taberna da Glória, que lotou. “Nunca vi família tão grande” – disse o garçom. O que ele viu foi apenas pequena amostra. Quantos foram os exilados? Calcula-se entre 3 até 4 mil pessoas, dos quais cerca de 500 formaram o grupo Viva Chile no WhatsApp. Desses, cerca de 100 de nós voltamos para agradecer em nome de todos a hospitalidade.

O grupo criado em maio pelo sociólogo Ricardo Azevedo e o matemático William Martani propiciou encontros e reencontros, veiculando milhares – eu disse milhares – de postagens sobre o exílio.  A última coisa ao me deitar e a primeira ao acordar era lê-las com sofreguidão. As narrativas, dolorosas umas, divertidas outras, tornaram-me um dependente anímico do Viva Chile.

Os relatos de , prisão e tortura me causaram seguidos pesadelos. E não fui o único a tê-los. Um dos administradores do Grupo, Beluce Bellucci conta isso ao descrever “O setembro de 1973 em Valdívia”. Apesar disso, o que prevaleceu não foi nem a vitimização nem a glorificação de heróis individuais, mas a resistência coletiva, mostrando que no final, apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade. 

PAU-DE-ARARA

Alguns exilados testemunharam o bombardeio do Palácio La Moneda, os tiroteios nas ruas, a busca de asilo em embaixadas, incluindo a do Panamá – um apartamento com três quartos pequenos que abrigou centenas de pessoas em pé, alternando horas de dormir. 

O economista Theotônio dos Santos e a socióloga Vania Bambirra doaram a própria casa para a Embaixada do Panamá, que abrigou mais de 300 pessoas, entre elas crianças e mulheres grávidas. A casa, transformada depois em um centro de tortura, hoje é um museu de resistência.

Não convivi in loco com essa cruel realidade. Quando Pinochet emergiu das trevas, em setembro de 1973, eu já estava residindo no Peru. Só fui informado depois por amigos. 

O estarrecedor é que documentos oficiais atestam a participação da ditadura brasileira na preparação do golpe que derrubou Allende, desde 1970, quando o Itamaraty contatou militares chilenos de extrema- e espionou os exilados que, presos depois no Estádio Nacional, foram interrogados por agentes brasileiros da repressão.

Esses agentes torturaram não apenas seus patrícios, mas também os presos chilenos – segundo o jornalista Robert Simon, que se refere à incorporação do termo pau-de-arara no espanhol falado pela milicada chilena. Empréstimos lexicais revelam sempre as relações entre comunidades linguísticas. O léxico importado se referia ao método de tortura física, produto brasileiro de exportação.  

Esse tipo de “cooperação” foi uma de Estado, que poucos funcionários se recusaram a seguir, ao contrário do então embaixador da ditadura brasileira no Chile, Antônio Cândido Câmara Canto – guardem o nome do pilantra – que serviu com fidelidade canina à ditadura de Pinochet, de quem era amigo pessoal. 

Ele morreu em 1977 e virou nome de rua no bairro La Victoria, em Santiago, assim como no bairro de Piqueri em São Paulo, homenageado assim pelas duas ditaduras irmãs.

LUTA PELA MEMÓRIA 

A rua de Piqueri parece esperar a eleição de Boulos para prefeito, mas a de Santiago – já está decidido pela subprefeitura chilena – vai mudar de nome e, por proposta do Viva Chile deve ser denominada rua Dr. Otto Costa Brockes, pediatra brasileiro preso e torturado no Estádio Nacional. Ele salvou filhos de tantas mães e examinou durante todo o exílio milhares de crianças de diferentes nacionalidades, conforme documentário da TV Senado.  

Viva Chile inaugurou duas placas em Santiago: uma na embaixada do Brasil, que termina assim: “No Brasil e no Chile, ditadura nunca mais. A outra na Praça Brasil, nominando os brasileiros assassinados por Pinochet. 

Segundo William Martani, o grupo contou com o apoio do Itamaraty, do atual embaixador brasileiro no Chile, Paulo Roberto Pacheco e do ministro Silvio Almeida (). 

Em Santiago, levamos flores aos túmulos de Allende e de Victor Jara, além de cumprir uma extensa agenda política vinculada à luta pela

Visitamos o Museu da Memória e dos Direitos Humanos e a exposição de fotos de Evandro Teixeira, inaugurada no dia 10, e participamos da atividade no Estádio Nacional, manifestação com velas acesas em memória dos mortos e desaparecidos, com performance teatral, música, danças, falas.

O retorno ao Chile foi nossa forma de “volver a los diecisiete, después de vivir médio siglo”. No mundo andino, que concebe o tempo como circular, ao chegar a uma certa idade as pessoas voltam aos lugares por onde passaram para “recoger los pasos”. 

É esse caminho de volta que fizemos agora, os cem exilados, como uma forma de revisitar a história. Eso es lo que sentimos nosotros en este instante fecundo”.

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire. – Indigenista. Cronista. Professor. Membro do Conselho Editorial da . Matéria publicada em Taquiprati , aqui reproduzida com edições de Zezé Weiss com relação ao tempo verbal, devido à data de banca da Revista.   Imagem: Exposição de Evandro Teixeira, por Tânia Rêgo/Agência Brasil. 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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