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SAN FRANCISCO, ORA PRO NOBIS

San Francisco, Ora Pro Nobis 

Era uma vez um paraíso, situado bem na curva do rio Correntina, pouco abaixo do córrego Cajueiro. 

Por Altair Sales Barbosa e Álvaro Catelan

Foi lá que num belo dia, era década de 1990, um grupo de pesquisadores se juntou com os sábios e os artistas que sempre enriqueceram o Vale do Corrente, para criar um local onde a pesquisa pudesse se instalar e os artistas e sábios da região pudessem se reunir. Seria uma espécie de centro de troca e saberes, ao qual deram o nome de Estação Ciência.

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Foto: Divulgação/ Beiraagua.org.br

Um sábio local, empolgado com a ideia, adquiriu aquele quinhão de terra e o doou à antiga Universidade Católica de Goiás, entidade que, desde 1975, estudava a região e fazia daquele lugar seu acampamento e laboratórios improvisados. A interação com os artistas, literatos e pesquisadores da região se deu logo, quase de forma automática. Ainda não existiam os centros universitários que hoje se espalham pela região.

Um entusiasmo louco assolava os grupos que ali se reuniam. E assim Correntina ganhou fama, mais de 16 programas de televisão, a nível nacional e até internacional, começaram a divulgar a riqueza cultural do local.

Durante uma semana seguida, a região foi tema de reportagem no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão. Os grupos de cultura ganharam novos palcos de apresentação, Goiânia, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo etc.

Produziram inúmeras peças teatrais, foram gravados 13 volumes de CDs, hoje raridade nacional, 22 documentários audiovisuais, incontáveis reportagens em jornais e revistas.

O entusiasmo era tanto que uma ingênua embriaguez tomava a mente de todos. E, assim, muitos acreditavam que a implantação daquele centro poderia servir como exemplo para frear parte da degradação que, já naquele tempo, tal qual um iceberg, já mostrava de forma bem visível seus picos reluzentes.

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Foto: Divulgação/ Fernando Souza/ Wikimedia

O Cerrado viçoso esparramava o cheiro dos frutos que aromatizava as fontes, que jorravam águas para as veredas. Aqui e acolá, avistavam-se bandos de emas, veados do campo e tantos outros animais, e os olhos brilhavam de alegria.

Era tempo de árvores, 

tempo de rios, tempo de brisas,

tempo de inspiração 

e tempo de muita esperança. 

Esperança nos homens e, 

acima de tudo, 

esperança nos caminhos 

que a Universidade estava tomando. 

 

Era tempo de busca. 

Busca de novos horizontes, 

busca de saberes novos, 

e a Universidade se abria 

às vozes, aos sons e à sabedoria 

das populações tradicionais que, àquela época, 

ainda estavam fincadas 

naqueles longínquos rincões.

 

No caminho das águas 

uma árvore velha 

observa a velha senhora. 

Elas são do mesmo tamanho, 

elas têm a mesma raiz, 

e estão sentadas sobre as pedras. 

As rugas das cascas 

do tronco da velha árvore 

confundiam-se com as rugas 

da pele da velha senhora.

Vem a chuva, 

e elas abrem a boca. 

Vem a tempestade, 

e elas se fincam nas pedras.  

Vem o sol, e elas bebem a chuva.  

Se curvam diante do sol, 

como se murchassem. 

Elas reverenciam.

 

Nos dedos mais finos da árvore 

estão os rostos dos filhinhos dela, os brotos. 

Nas mãos velhas da velha, 

velhas linhas simbolizando 

os antigos caminhos percorridos 

para além dos dias, muito além dos sonhos. 

 

Tudo está escrito na Terra

Tudo está na ponta dos dedos, na palma da mão,

Tudo tem seu tempo de amanhecer.

Se é broto, ao mesmo tempo é mãe.

Se é mãe, ao mesmo tempo é Deus.

Se é Deus, ao mesmo tempo é chuva.

 

No coração da árvore tem uma flor.

Na flor da velha, um coração.

A velha põe sua flor nos cabelos 

e sai embelezando o caminho. 

E o coração da árvore brotou todo dentro dela

 

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Foto:Divulgação/Canindé de São Francisco

O tempo, lentamente, quase que imperceptível, foi corroendo aquele paraíso, onde a vida passava devagar, bem devagar, silenciosa e calma, macia e suave como um afago de criança. 

Nesse cenário, o Sonho, que por aquelas bandas passava, percebendo o prenúncio de uma situação devastadora, vendo os riachos de água cristalina secarem, o agonizar das gramíneas e das plantas herbáceas que revestiam as inúmeras campinas, a queda de árvores como pequizeiros, mangabeiras, jatobazeiros, cagaiteiras, baruzeiros e tantas outras plantas arbóreas, que era impossível identificar e quantificar, ficou pensativo, tristonho, desorientado e sentado num canto, quietinho, como se estivesse conversando sozinho… Esperou uma noite de lua prateada e saiu pelo mundo afora.

Depois de andar vários dias, já cansado, procurou descanso numa encruzilhada de uma estrada de areia branca e ali garrou no sono. Depois de algumas horas, foi despertado por um ruído semelhante ao do silêncio absoluto. 

Foi então que percebeu que aqueles sons eram provocados por uma velha amiga que empunhava uma grande bandeira branca. Era a Utopia, que por ali passava. Ao avistar o Sonho tão deprimido, ela indagou:

– O que faz por essas bandas, meu amigo? 

O  Sonho, mergulhado em sua tristeza, com o olhar vago e o coração partido, narrou sua história, sua amarga decepção com tudo que assistira: a tragédia com os rios, a devastação das matas e cerrados, tudo comandado pela ganância infinda dos homens.

Vista aerea do Ranchao ilha as margens do Rio Correntina ponto turistico da cidade
Foto: Divulgação

Depois de ouvir atentamente a história, a Utopia retrucou:

– Amigo Sonho, quem sabe há esperança ainda, talvez naquela minúscula semente que o vento aleatoriamente carrega, na força da vida infinda, e renasça por todos nós em qualquer lugar do planeta. Muitas vezes, amigo Sonho, também fico igual a você, com vontade de virar as costas para os homens e ir embora juntamente com a estrela da manhã, mas esta bandeira branca sempre impede a minha atitude, porque ela carrega no coração o brilho da esperança, que nos faz pensar que uma biquinha de água pode se transformar numa torrente rugidora.

Foi então que o Sonho indagou: 

– O que a amiga Utopia pode fazer para que eu possa recuperar a juventude do sonhar? Sonhar com as bonanças, com a igualdade entre os homens, com os passarinhos um dia novamente nos galhos das árvores, com os riachos de água limpa, sonhar com a bondade brilhando nos cantos desse mundão?

– Amigo Sonho, precisamos mais uma vez abrir o coração e os olhos com coragem e esperança para sentirmos novamente o pulsar da vida e do tal mundão em nosso peito e, quem sabe, com amor, esperança, coragem e crença curarmos os males tão graves que assolam essa terra. Entretanto, para concretizar isso tudo, precisaremos da companhia do amigo Trabalho – concluiu a Utopia.

– Por onde anda esse nosso companheiro? – indagou o Sonho.

Nesse meio tempo, no centro de um redemoinho, eis que vai passando o Trabalho. Ao ver seus amigos na encruzilhada, ele pergunta: 

– O que vocês estão fazendo por estas bandas?

Numa voz uníssona, o Sonho e a Utopia responderam: 

– Estávamos falando no seu nome, para nos ajudar a construir um cantinho no mundo, onde os viventes pudessem navegar nos seus sonhos e a utopia pudesse despertar nas pessoas a vontade de construir uma nova mentalidade.

O Trabalho, pensativo, responde: 

– Eu também ando vagando, quase sem direção. Os tempos de ociosidade me corromperam na essência. Desiludido, resolvi pegar carona nos redemoinhos dos ventos, buscando também algo que preencha minha felicidade. Nós três até podemos fazer algum alicerce, mas se quisermos construir o caminho, a vida, o despertar de um mundo novo, temos que urgentemente encontrar aquela nossa velha companheira denominada Sabedoria.

– E por onde ela anda? – indagaram o Sonho e a Utopia.

De pronto, respondeu o Trabalho:

– Não sei… A última notícia que tenho é que ela foi vista vagando numa canoa de casca de jatobá, lá para os rumos do Lagoão do Veio Aprigio onde, com um remo de aru-apucuitá, fica rodeando os últimos pés de buritis que ainda existem por lá. Se vocês quiserem, podemos procurá-la. 

E assim, saíram os três: o Sonho, a Utopia e o Trabalho, em busca da Sabedoria. Após jornadas de caminhada, eis que a encontram repousando, maltrapilha, nas pequenas grutas das escarpas da Serra Geral.

Depois de algum tempo, os três narram as suas desilusões. E, após alguns minutos, indagam:

– O que podemos fazer?

Foi quando a Sabedoria falou: 

– Vocês têm caminhado no rumo do norte? Para além do rio Grande, aquele que lava a cidade de Barreiras, lá na Bahia? Mais ao norte, bem no centro do Piauí, existia um rio bonito, conhecido pelo nome de Gurgueia, com suas fontes jorrantes e com seus brejos de carnaúba. Há quanto tempo não andam por lá? 

E, continuando a narrativa, a Sabedoria emenda: 

Dobrando no rumo do oeste, bem no centro da Chapada das Mangabeiras, nasciam vários rios, o mais importante era o Parnaíba, que tomava o rumo norte. No mesmo local, nascia o rio do Sono, que corria para o Tocantins, e também no mesmo local nascia o rio Gurgueia, que se juntava novamente ao rio Parnaíba, depois de alegrar a vida do sertão piauiense. Hoje aquelas águas emendadas não existem mais. Nossas vistas se perdem nas imensidões de plantações.

Quem passa por aquelas bandas, dizem que avista um grande portal, onde se lê: MATOPIBA, que é um grande projeto para produzir grãos no lugar do Cerrado, unindo os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 

Dizem também os mais supersticiosos que esse portal representa a passagem de um mundo real para um mundo sem utopias e que uma vez lá dentro, os sonhos se tornam prisioneiros nas mentes tenebrosas das pessoas.

Contam os mais sábios, que teimosamente por lá ainda sobrevivem, que esse portal funciona como uma tempestade que aterroriza as pessoas na escuridão.

Então, meus amigos, tudo isso presenciei, por isso vivo maltrapilha, neste

cantinho de gruta. Do lagoão onde eu gostava de remar minha canoa, só sobrou o areão, para alimentar as poeiras.

As plantas do verdejante cerrado foram jogadas ao chão, muitas se transformaram em carvão. As nascentes que outrora fervilhavam minguaram lentamente, deixando exposto em alguns locais um torrão endurecido, semelhante a formigueiro abandonado. 

As lagoas se transformaram em poças d’água, os covais e os chapadões do local ostentam agora extensas monoculturas na época das águas. Quando chega a seca, só se veem sombrias nuvens de poeira.

A velha e a árvore se mudaram, não sei pra onde. No coração certamente não mais carregam uma flor, talvez uma grande dor.

O tempo da destruição trouxe para a Universidade, que acreditávamos ser uma luz para os novos tempos, o tempo do paradigma da inutilidade. E a união da inutilidade com a incapacidade trouxe a impossibilidade de ressuscitar o tempo da esperança e da busca.

Neste processo, o tempo dos homens falou mais alto, os políticos foram guiados pelo tempo do imediatismo, as transformações vieram pelo tempo acelerado da tecnologia que acentua o tempo do capital excludente, que incentiva a concorrência desleal, que gera o tempo da alienação, que criou o tempo do “estranho no ninho” que se debate esperando o tempo…

Foi bom vocês terem aparecido aqui e me encontrar, estava desiludida. Outro dia desses estava pensado que a contemporaneidade nos pegou de surpresa, ficamos sem reação, parece que só nos sobrou o conformismo, pai cruel da angústia neurótica.

A chegada de vocês é como se fosse a estrela guia, despencada do céu.

Vamos pensar soluções e lutar pela vida, pois a água que pinga na bica pode se transformar numa torrente rugidora, como sempre falou nossa amiga Utopia.

SantaRosa OLD SKOOL
Foto: Divulgação/ SantaRosa Old Skool

RIO SÃO FRANCISCO

Rio que nasce no meio das minas e gerais,

bebe do Corrente, do Arrojado, do Urucuia 

e outros

e continua, cortando serras,

cidades, vilas e vales, 

roçando capins, 

areias, pedras e paus,

inspirando poemas, histórias 

e canções.

 

São Francisco, mais que um rio, 

um santuário,

unindo brasileiros e brasileiras 

de cinco estados.

Seu sinuoso curso é um belo desenho.

Velho Chico, 

memória das carrancas,

das Gaiolas, de violas 

e cantadores.

 

São Francisco, São Chico 

é nome de Santo

e são tantos e quantos 

os Santos e beatos

que se banham 

nas águas deste rio,

que se entregam

às misteriosas águas

cumprindo seus rituais e desafios.

 

Rio São Francisco,

o Velho Chico rio da vida,

palco de tantos atos, fatos e estórias.

Velho Chico, leva força e esperança

a quem tem fome, crença e sede.

 

Rio São Francisco, 

rio de Homens, Mulheres,

Sonho e Trabalho, 

de vastas águas e terras férteis

oferecendo 

aos povos ribeirinhos 

vida e Utopia.

E assim vai do sul ao norte 

em busca do mar,

cortando o sertão 

levando fartura e Sabedoria.

 

São Francisco, 

diga aos irmãos 

Parnaíba, Gurgueia 

e outros

que o Sonho não acabou.

Sao Francisco
Foto: Divulgação/ Carol Duque

altair salesAltair Sales Barbosa Dr. em Antropologia e Geologia do Quaternário pelo Smithsonian Institution, Washington DC. Pesquisador do CNPq.  Pesquisador convidado da UniEVANGÉLICA de Anápolis. Sócio Emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.


imagesÁlvaro Catelan Doutor em Literatura. Instituto Cultural Bernardo Élis para os Povos do Cerrado.

 

 

Capa: Marleide Silva da Costa. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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