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Branco pensa que índio não é gente, que é que nem passarinho…

ÍNDIO NÃO É GENTE: é passarinho…

Por: Domingos Bueno 

“Os brancos pensam que índio é igual passarinho: tá lá no mato vivendo livre, solto… É só disso que precisam…”
Dessa forma uma liderança Kaygang começou sua fala durante um encontro recente em Curitiba, PR, para discutir visibilidade e contra indígenas, que revela algo que eu já refletia em torno dessa relação ambígua que estabelecemos com as sociedades tradicionais.

Desde a invasão colonizadora das Américas até hoje, os indígenas ocupam um lugar difuso e liminar  tanto no imaginário popular como nas políticas oficiais. No chamado descobrimento oscilavam entre ingênuos desconhecedores do pecado, vivendo em estado de graça no paraíso Adâmico, até bárbaros selvagens (bárbaros porque etimologicamente eram estrangeiros que falavam uma diferente e selvagens porque viviam na selva), que praticavam canibalismo; uma gente sem fé, sem lei e sem rei que dá pra traduzir por herege, sem religião e igualitários, ou seja, que lutavam contra todos os valores e práticas de dominação que as sociedades “civilizadas” (domesticadas) utilizavam.

Após 500 anos de conquista, extermínio e lutas constantes contra a inescrupulosidade colonial da obtenção de braços para trabalhar como escravos do reino, ou pelos descimentos amansadores dos sábios religiosos , até as empreitadas ambíguas de Rondon, objetivando sua integração no cenário nacional, inclusive com os mirabolantes projetos de escoamento e povoamento da Amazônia, ainda não temos clareza, ou mesmo consciência, da forma mais apropriada e correta de, politicamente, concebê-los.

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A enorme violência sofrida pelos povos originários nos relatos de degolas, torturas e assassinatos de sociedades inteiras revela a negação do lugar que historicamente lhes cabe enquanto nações livres e soberanas, na direção de reflexões que o ISA já produziu, da necessidade de tratamento diplomático com essas sociedades, como nações que deveriam produzir reflexões sobre sua convivência baseadas não apenas no respeito mútuo, mas no reconhecimento dessa soberania.

As falas do encontro apontavam na direção das reflexões dos índios, nesse caso da região sul, sobre a percepção de seu papel na não índia e das formas de interação que creem desejáveis ou possíveis nesse cenário de lutas e embates que, se hoje nem sempre são sangrentos ou explícitos, são igualmente cruéis. Enquanto o contato violento dizimou milhares de vidas ao longo dos séculos, não foi capaz de exterminar suas teimosas culturas que insistem  em ressurgir aqui e ali, desafiando antropólogos e juristas, para desespero e revolta de ruralistas e governantes que lhes tomaram as terras.

Essa face aparentemente sutil da violência se expressa inclusive nos agentes que operam tanto através do estado como da religião. Professores,  agentes governamentais de todo ou religiosos representam, na visão deles, os principais obstáculos a sua autodeterminação e fortalecimento.

Operando através de políticas verticalizadas e ideologicamente comprometidas com uma visão desenvolvimentista terminam por produzir rupturas e descompassos danosos que se enraízam profundamente, necessitando de constante atenção por parte das lideranças e dos mais velhos para evitar que se disseminem e corroam a parte mais substancial dessa resolução de se manter vivos e senhores do próprio destino.

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Os relatos de jovens indígenas que sofrem discriminação nas escolas tradicionais é representativo dessa violência, que termina por produzir quadros de ansiedade e temor em relação ao seu futuro. Da mesma forma se sentem nas universidades que os recebem através do sistema de cotas, mas não lhes percebe como outros: vestem-se, falam, agem e pensam de forma diferente num sistema educacional marcado por meritocracia e divisão social.

Nas palavras dessa liderança “a intenção da escola, que a gente sabe, é acabar com o indígena. Ai eles vão se misturar, ficar tudo igual, e ai acabou a terra”. A religião nas aldeias também vai pelo mesmo caminho: “a religião também é pra ficar bonzinho, não ficar brigando. O pastor pede gente perdoar e orar”.

Outra forma de violência é a constante alternância e insegurança jurídica em que vivem. Num momento em que trabalhadores privados e estatais encontram-se em franco embate com forças reacionárias que tentam tolher seus direitos em nome de uma suposta modernidade e  isonomia, os índios sofrem permanentemente a tensão de, a qualquer momento, serem retirados de suas terras, perderem seus direitos e status diferenciado em nome de uma igualdade étnico-jurídica, que nada mais é que uma grande falácia defendia por grandes e inescrupulosos investidores de olho nas terras e no subsolo.

Existem até os bem intencionados que lhes propõe fórmulas mirabolantes de obter riquezas, através do pagamento de royalties, arrendamento ou processos  milionários de expropriação de terras. E a eles foi sugerida uma questão: Vocês perguntaram para os índios se eles querem ser ricos? E mais além, o que significa para um índio ser rico? Qual é o conceito de riqueza que é suficiente?

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A questão do direito à terra,  determinado pela de 1988 lhes permite usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Usufruir implica, nesse sentido, em retirar dela o necessário para o sustento e não gerar riqueza, sendo necessária a edição de leis ordinárias para a mineral e de recursos hídricos nas Terras Indígenas (art. 176, § 1).

Me parece digno de nota como essa forma de assegurar os “direitos” dos povos indígenas, em que pese o avanço jurídico que significa e importa, não lhes dá a propriedade da terra e nem o direito de explorá-la da forma necessária à sua sobrevivência.

Um dos argumentos da bancada ruralista é justamente esse: se os índios arrendarem suas terras, se não estiveram fisicamente sobre elas, junto com todo o imaginário do signifique ser índio (andar pelado pintado de ver num eterno domingo…), perdem seu direito a terra: A constituição naturaliza o índio, reificando seu papel de passarinho do início do texto.

Essa visão liminar do bárbaro e ingênuo selvagem nunca desapareceu: ela ainda move as políticas de governo, teses acadêmicas, disputas jurídicas ou missões religiosas: eles precisam se integrados, compreendidos como são dentro de uma redoma, expulsos por não se enquadrarem nos molde de produção capitalista ou convertidos…

Como diz a D. Julia Kaygang, o jeito de ajudar atrapalha: os índios querem continuar a viver como índios mas conhecendo a do branco. Se não for assim vai entrar droga, bebida e destruir nossa vida. Ela relata que foi pedido a uma indígena de uma escola fundamental que pintasse o que mais gostava da vida de índio e da vida do branco.

A criança respondeu que não iria pintar a vida de índio porque não gostava da vida de índio. Para ela índio só sofre, não tem conforto, passa frio, não tem comida…. Não gosto da vida de índio.

Nesse momento me recordei de outro lugar onde refleti sobre a questão do suicídio entre os Kulina e de como eles pediram a presença de um pastor na aldeia para tentar retirar o capeta que supostamente provocava os suicídios pois, sendo uma entidade de fora – o capeta -, eles não tinham meios de combatê-lo: os capetas somos nós.

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Jairo Domingos Bueno

Domingos Bueno é Etnomusicólogo, professor da Universidade Federal do Acre e Doutorando pela Universidade Federal do Paraná.

As imagens utilizadas nesta matéria foram selecionadas por nosso parceiro Jairo Lima e são da autoria da artista Diana Yaka Paris e podem ser adquirido através de sua fanpage “Diana Yaka Artes”: https://www.facebook.com/dianayakartes/ Jairo Lima publica, semanalmente, textos fundamentais sobre o povos indígenas em seu blog: cronicasindigenistas.blogspot.com.br, e esses textos, com seu consentimento, são reproduzidos aqui no site da Revista Xapuri. Vale a pena conferir!

 

 

ANOTE:  Este site é mantido com a venda de nossas camisetas. É também com a venda de camisetas que apoiamos a luta de Brasil afora. Ao comprar uma delas, você fortalece um veículo de comunicação independente, você investe na Resistência. Visite nossa Loja Solidária: http://xapuri.info/loja-solidaria. Em , encomendas com Geovana: 61 9 9352 9191. Em Brasília, com Janaina: 61 9 9611 6826.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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