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CHICO MENDES: O GRITO VERDE QUE ANDA

CHICO MENDES: O GRITO VERDE QUE ANDA

CHICO MENDES: O GRITO VERDE QUE ANDA

Sabia que chegaria, a morte sem avisar,

Porém, a morte se enfrenta, quando há um povo por trás.

Canção Nicaraguense 

Por Zezé Weiss 

Pertencesse ainda ao espaço físico desta Terra, em 15 de dezembro Chico Mendes completaria 80 anos. Um tiro de escopeta, disparado à queima-roupa por um jagunço, a mando do latifúndio, no quintal de sua casinha azul e rosa, em uma rua pacata de Xapuri, no dia 22 de dezembro de 1988, tinha por pretensão interromper a jornada de resistência de Francisco Alves Mendes Filho. 

Não foi o que ocorreu. Passados esses 36 anos, os grãos de chumbo que estilhaçaram o peito de Chico Mendes ainda hoje ecoam aos ouvidos do mundo. Inabalável, seu legado permanece vivo na luta dos povos da floresta que, mesmo enfrentando iguais riscos e desafios, frutifica e prospera. 

Poetas e escribas dão conta da infinitude de Chico Mendes, que prescinde do corpo para prosseguir plantando e repartindo sementes, que perdura e segue conosco, dando fundamento ao porvir, conforme retratado nos belíssimos versos de Thiago de Mello, em:

O SONHO QUE CRESCE NO CHÃO DA FLORESTA 

Não frequentas mais,

de corpo comovido,

os espaços do mundo.

A medida do tempo não te alcança.

Já ganhaste a dimensão do sonho,

és luzeiro da esperança.

[Tantos] anos são só um sinal

que a memória nos serve

para dizer que te amamos,

Irmão dos mananciais.

Chegado foste ao mundo,

de coração já acreano

– a fronte estrelada,

o peito caudaloso –,

para que te cumprisses

na construção do triunfo

do que no homem é grandeza,

é orvalho e lúcida bondade.

Atendias e atendes

altivos chamados:

floresta e os seus povos

e, deixa que eu te diga,

o povo geral do mundo,

precisava e precisam

constantes da esperança

com que semeavas e semeias

o poder da descoberta

de que o amor é possível.

Os inimigos da vida,

com medo da aurora,

ceifaram ferozes

o teu caminho escrito

por indeléveis letras.

Só porque tiveste

o dom de sonhar,

como convém e é bom,

com os pés fincados

na verde verdade do chão

de cada dia.

Doidos por te dar sumiço

cuidavam que podiam

amordaçar a fé

no reinado da justiça

e converter em moeda

o esplendor da primavera.

Nem pressentir podiam

que és da estirpe de seres

destinados a durar.

No caminho dos homens,

agora inabalável,

prescindes do corpo

para prosseguir plantando

e repartindo sementes.

Perduras e és conosco.

Nos levas, te levamos.

Eis que a vida do homem

é o que ele faz e fala,

escreve e canta: Vives:

dás fundamento ao por vir.

A tua própria morte

nos alcança a fundura

mais azul do peito

com um brado companheiro,

que nos chama, nos clama,

é chama que nos chama

para amassar o barro,

preparar a pizzarra,

aparelhar os esteios

de massaranduba,

itaúba, pau d´arco

e, pacientes, construir

as esplêndidas cidades.

Com a mão da sagrada ira

escreves os algarismos sinistros

dos hectares de esmeraldas

devorados pela hedionda lâmina

de gás, fogo e ingratidão.

E logo nos atravessa

a espessura das cinzas

desviando os apelos

das veredas injustas.

Por isso te canto, irmão.

Tu nos fazes capazes

(o ferrão da fera dói)

de cuidar do chão e do céu

deste reino da claridão,

nosso berço e morada,

que nela e dela vivemos.

Avançamos pelas sendas

que ajudastes a abrir,

e para que não nos percamos,

cuidadoso dos atalhos,

deixaste os candeeiros

da perseverança acesos

nos troncos das seringueiras,

nas sacopemas das sumaumeiras,

nas palmas das inajazeiras,

nas folhas das imbaúbas

que guardam o segredo do sol

e até nas favas morenas

da acapurana menina,

tua companheira de empate.

É preciso dizer que às vezes

nos morde a sombra do desânimo

e nos estremece a fúria

dos terçados da opulência

que não dorme e é cheia de olhos.

É quando os pássaros da floresta

nos acodem confiantes

(as corujas prolongam

as suas despedidas das estrelas)

cantando as sílabas alegres

do teu nome de menino.

Vêm no meu canto o rumor

dos remos dos pescadores

a alegria da palmeira

abraçada pelo vento;

o papagaio banda-de-asa

dos meninos da várzea,

barrigudinhos, magrelos,

mas que já estão na escola

(às vezes dormem com fome,

viva o chibé de erva-cidreira).

Trago o grito ensandecido

dos pássaros de asas queimadas

pelas brasas dos desumanos;

o suor contente

das quebradeiras de coco,

das fazedoras de farinha d´água

das amassadoras de açaí.


E termino este aceno de mão agradecida

com o abraço das crianças amazônicas

que ainda vão nascer, abençoadas

pelo majestoso arco-íris de amor,

que se segue, úmido de seiva,

das terras firmes do alto-Xapuri

com as cores de todas

as raças humanas.

corte da seringa
Foto: Marcos Jorge Dias

ERRO DE AVALIAÇÃO

Gomercindo Rodrigues, assessor, amigo e companheiro de lutas, afirma que a morte de Chico Mendes foi um erro de avaliação dos fazendeiros que mandavam matar para, à custa de vidas humanas, abrir espaço para a destruição das florestas do Acre.  

“Os caras acharam que ia acontecer em Xapuri o mesmo que aconteceu em Brasiléia, quando mataram o Wilson Pinheiro e o movimento arrefeceu, tendo que mover seu eixo de resistência para Xapuri. Só que o próprio Chico já tinha dito várias vezes: ‘Se eu morrer, nós temos que mostrar que vai ter mais 300 Chico Mendes’. 

Chico Mendes voting 1988
Foto: Miranda Smith,

Todos nós assumimos o compromisso de continuar o trabalho dele. Decidimos que não ia ter mais uma liderança para ser forte e dividimos o trabalho por todo mundo. Foi isso o que os companheiros fizeram. Ficou todo mundo sobrecarregado, foi difícil no começo, mas o Movimento continuou em pé.

Quanto ao Chico, o único erro de avaliação dele foi quando, em sua última entrevista, disse que se a morte pudesse ajudar a salvar a Amazônia, ele morreria de bom grado, mas que enterro não ia salvar a floresta. Chico está vivo porque nós continuamos trabalhando com o mesmo ideal dele: erramos no meio do caminho, tropeçamos muitas vezes, mas seguimos trabalhando. 

A gente trocaria tudo o que conquistamos para ter o Chico aqui hoje, porque com ele entre nós nossa organização estaria mais forte, mais coordenada, e com muito mais aliados. Porque nenhum/a de nós, nem individualmente, nem juntando todo mundo, nós não conseguimos fazer o que o Chico fazia. 

Mas nós nos transformamos em 300 Chico Mendes e conseguimos fazer com que o Movimento não caísse. Chico Mendes Vive!” 

UM SÍMBOLO DE TODO O PLANETA 

“O país que produziu alguns dos mais famosos mitos olímpicos e dionisíacos deste século – Pelé, Tom Jobim, Ayrton Senna, Ronaldinho – criou também um herói trágico e transformou-o no protomártir da causa ecológica, um homem que precisou morrer para ser conhecido em sua pátria, ele que já era, como escreveu The New York Times, ‘um símbolo de todo o planeta’”.

Chico Mendes at home 1988

De fato, o seringueiro Chico Mendes foi quem mobilizou não só o Brasil, mas também o mundo para a defesa da floresta amazônica, à qual acabaria dando sua vida. Certo de que estava marcado para morrer, ele não só denunciou a trama, como achava que morreria em vão. 

Se descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta, até que valeria a pena. Mas ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero viver

Ele disse isso e, pouco depois, às 18h45 do dia 22 de dezembro de 1988, foi assassinado aos 44 anos, na porta da cozinha de sua casa em Xapuri, uma pequena cidade de cinco mil habitantes no estado amazônico do Acre. ‘Ele vinha com as mãos na cabeça, todo vermelho de sangue’, contou Ilzamar, que ouviu um estouro e correu para o marido. ‘Quando eu quis pegar no seu braço, ele caiu e ficou se debatendo. Aí vi que estava morrendo’. 

Além de 18 perfurações no braço, ele fora atingido no peito direito por 42 grãos de chumbo de uma espingarda de caça. O autor confesso do disparo, Darci, era filho de Darly Alves da Silva, o fazendeiro mandante do crime.

Só então, e diante da grande repercussão internacional, é que o Brasil começou a desconfiar, cheio de culpa, que tinha perdido o que se custa tanto a construir: um verdadeiro líder.

Como um Gandhi dos trópicos, Chico organizou pacificamente os seringueiros para lutar pela preservação da floresta, que vinha sendo derrubada no Acre desde a década de 1970 para dar lugar às grandes pastagens de gado. O movimento de resistência usava uma tática simples e eficaz: o empate, que consistia em impedir os desmatamentos, colocando os seringueiros, seus filhos e mulheres, todos desarmados, entre os peões armados de serras e as árvores.

Hábil político e homem de diálogo, Chico conseguiu também desfazer uma inimizade histórica entre seringueiros e índios, que sob sua influência se aliaram numa grande frente conhecida pelo nome de Povos da Floresta. Condecorado pela ONU e respeitado pelas organizações internacionais de proteção ao meio ambiente, Chico demonstrou que era possível promover um desenvolvimento racional para a floresta amazônica, sem transformá-la em santuário intocável, mas também sem devastá-la.

Criou para isso o projeto de reservas extrativistas, espaços para garantir os direitos mínimos que os seringueiros nunca haviam tido: escola, postos de saúde, melhores condições de comercialização de seus produtos, maior produtividade de extração, segurança contra as ameaças de expulsão dos latifundiários.

Chico sabia que precisava de aliados, não podia ficar isolado em Xapuri lutando contra poderosos interesses de fazendeiros e pecuaristas. Alguns antropólogos e representantes de entidades ambientalistas dos Estados Unidos e da Europa se encarregaram de projetá-lo no circuito internacional.

Em 1987, ele foi o primeiro brasileiro a receber o prêmio Global 500 das Nações Unidas, em Londres. No ano seguinte foi convidado a participar da reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Com a mesma desenvoltura com que andava nas ruas toscas de Xapuri ou pelas espessas matas da floresta amazônica, Chico passou a se movimentar por cidades como Nova York, onde chegou a se hospedar no mesmo hotel em que estava o então presidente Ronald Reagan. Os convites de viagens se sucediam, e sua causa ficou conhecida no mundo.

Na reunião do BID, ele convenceu os conselheiros do banco a suspenderem os financiamentos para a construção de uma grande rodovia no Acre, argumentando que sem as devidas precauções ambientais a iniciativa seria um atentado à floresta, aos seringueiros e aos índios.

Se por um lado o prestígio externo reforçou a sua luta interna, por outro, pode ter contribuído para sua desgraça.

Aplaudidas pelo BIRD, pelo BID e pelo Congresso americano, suas ideias enfrentavam a oposição violenta dos latifundiários, dos madeireiros e dos grandes projetos agropecuários que vivem do desmatamento desordenado da Amazônia.

A fama que ele alcançara junto a instituições e entidades estrangeiras, o seu carisma, tudo isso aliado aos incômodos empates que organizava em Xapuri, devem ter dado a seus inimigos a certeza de que a única maneira de barrar sua ação catalisadora era a morte.

Por isso ele sabia que seria assassinado e denunciou incansavelmente a ameaça ‘Não quero flores no meu enterro, pois sei que vão arrancá-las da floresta’, escreveu no dia 5 de dezembro numa mensagem-despedida. ‘Quero apenas que meu assassinato sirva para acabar com a impunidade dos jagunços, sob a proteção da Polícia Federal do Acre e que, de 1975 para cá, já mataram mais de 50 pessoas.’

Poucas vezes a polícia brasileira contou com uma lista tão completa de acusados, fornecida pela própria vítima. Nem isso, porém, serviu para impedir a morte anunciada. Chico Mendes acertou quando afirmou que ia ser morto, mas errou ao achar que sua morte poderia ser inútil. 

Se ela não salvou a Amazônia, serviu pelo menos para intensificar o debate planetário sobre o destino da região. E mais esse assassinato, antecedido por dezenas de execuções de outros líderes rurais, terá servido para denunciar que em um rico e extenso país ainda se mata por questões de terra.

Aquele estouro que Ilzamar ouviu chegou ao mundo todo. Nunca um tiro dado no Brasil ecoou tão longe.”

O texto acima, do escritor Zuenir Ventura, não só relata a trágica morte de Chico Mendes, mas, também, registra a transcendência do grande líder, que perdura entre nós, um grito verde que não cessa, como no poema de Pedro Tierra: 

O GRITO VERDE QUE ANDA

Francisco. Chico. Chico Mendes.

Seringa. Seringueiro. Seringal.

Legião de homens e sonhos.

Verde rompendo o verde.

Punhal aceso na memória

da água, da pedra, da madeira.

Dos homens?

A sumaúma, a seringueira,

a pedra do monte Roraima,

o sangue que mina do tronco

nos seringais de Xapuri indagam:

onde anda a sombra exilada de Chico Mendes?

Organizador dos ventos gerais

que combatem depois das cercas,

de todas as cercas da terra

Chico: um grito verde que não cessa.

zezeZezé Weiss Jornalista. Editora da Revista Xapuri

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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