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Carta aberta ao General Mourão, o índio do Amazonas

Carta aberta ao General Mourão, o índio do Amazonas

Carta aberta ao General Mourão, o índio do Amazonas

Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói:

De qual tribo de índios é o general Mourão?

O senhor acaba de se identificar oficialmente como “indígena” ao registrar candidatura no Tribunal Superior Eleitoral. Isso foi logo após a repercussão negativa de sua fala a empresários da Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul, quando afirmou que o é subdesenvolvido, porque “herdou a de privilégios dos ibéricos, a indolência dos índios e a malandragem dos africanos”, o que desagradou seus próprios eleitores que não gostaram de se ver assim retratados. Parece que a mão tentou consertar, então, o que fez a mão direita, mas disso decorrem problemas de raciocínio. Por isso, desejando elucidar a lógica de sua estreia espalhafatosa no cenário político nacional, me inspiro no saudoso Waldick Soriano e lhe “escrevo essa carta, mas não repare os senões”.
– Eu sou indígena. Meu pai é amazonense – essa foi sua justificativa.
Ainda que mal pergunte: De qual etnia? Qual é a sua aldeia de referência? A interpelação faz sentido. Olhe só, vou desenhar: o “cidadão europeu” não existe em abstrato, no ar, ele vive em determinado país da Europa, com um território, língua e cultura que marcam sua identidade. O cara só é europeu porque é português, francês, alemão, etc. Da mesma forma com os índios. Sônia, nossa candidata a vice presidente (PSOL), só é índia porque é Guajajara, da aldeia Lagoa Quieta, Indígena Arariboia (MA). Não existem nem o europeu sem , nem o índio desfigurado sem relação étnica, ainda que historicamente distante.
Alguns esquecem, outros não. Muitos índios que vivem em contexto urbano há algumas gerações lembram muito bem de tais referências. É o caso de seu colega, criador do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o marechal Cândido Rondon. Consciente de que era bisneto de índios Bororo e Terena, ele mantinha vínculo afetivo com a aldeia das Garças de seus bisavós maternos. Quanto ao senhor, quais são as suas referências? Com qual povo e aldeia o senhor tece laços de afeto e de pertencimento? E nesse caso, admitindo que o senhor é um índio genérico, qual é a conclusão que podemos tirar de suas afirmações contraditórias?
Indolência
A implacável lógica aristotélica, ensinada na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército que o senhor cursou com tanto brilho, nos leva inexoravelmente a um raciocínio dedutivo:
Premissa maior: Todo homem é mortal – Mourão diz que todo índio é indolente.
Premissa menor: Sócrates é homem – Mourão diz que é índio.
Conclusão: Logo, Sócrates é mortal – Logo, Mourão admite que é indolente.
Foi assim que eu aprendi lá no curso clássico do Ginásio Amazonense, com a professora de Filosofia, Lindalva Mota, a “Lili Silogismo”, mais conhecida pelo apelido de “Por-conseguinte-então”.
Vosso candidato a presidente, o capitão Jair Bolsonaro, que na caserna seria seu subordinado, tentou consertar a trapalhada, inventando que “indolência”, em seu discurso, quer dizer “capacidade de perdoar”. Mas não soube explicar qual a relação do perdão com o atraso do Brasil e por isso foi obrigado a admitir que, no caso, indolência quer dizer mesmo preguiça. Para se legitimar, recorreu à autoridade de um economista: “Roberto Campos falou a mesma coisa no prefácio do livro Manual do perfeito idiota latino-americano”, que parece ser um livro autobiográfico. A emenda foi pior do que o soneto.
Talvez, general, seja recomendável ler outros pesquisadores, uma vez que o ministro do Planejamento na ditadura militar, Bob Fields, assim conhecido por sua subserviência ao imperialismo americano, nunca viu um índio em seus 84 anos de vida e repetiu preconceitos dos “perfeitos idiotas”. Recomendo-lhe a leitura de “A queda do céu” do e Bruce Albert (Cia. das Letras, 2015), cuja leitura certamente o fará pedir desculpas aos índios e aos negros que construíram esse país com seu sangue e seu suor:
– “Os brancos […] devem pensar que as plantas crescem sozinhas, à toa. Enquanto isso, chegam a nos chamar de preguiçosos, porque não destruímos tantas árvores quanto eles! Essas palavras ruins me deixam com raiva. Não somos nem um pouco preguiçosos! […] Sabemos trabalhar sem descanso em nossas roças debaixo do sol. Mas não fazemos do mesmo modo que os brancos” – diz Davi Yanomami (p.469)

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Sangue índio
Quem deu mais detalhes foi o etnólogo francês Jacques Lizot, que viveu mais de 20 anos com os Yanomami e cronometrou o tempo que dedicam à atividade produtiva: uma média diária de três horas e meia para viverem em abundância com todas necessidades satisfeitas, sem buscar lucro ou acumular riquezas. O tempo que sobra é empregado em outras atividades espirituais de estudo e lazer: observam e estudam a fauna e a flora, pesquisam, elaboram hipóteses, experimentam, produzem conhecimentos sofisticados, desenvolvem cultura artística e mitológica, cantam, dançam, rezam, brigam e brincam, praticam rituais, namoram, se divertem, riem, descansam. Enfim, vivem.
Alguns acham, general, que sua auto identificação como indígena é oportunismo eleitoreiro e manifestam desconfiança, posto que o senhor só assumiu tal identidade agora, aos 65 anos de idade, ignorando sempre o índio que agora diz ser e sem saber que índio é. Outros acham que é pura chacota, gozação com os índios. Prefiro acreditar, mesmo sob o risco de parecer ingênuo, que se trata de uma descoberta tardia, mas sincera, de quem conhece os índios e a floresta, pois já comandou a 2ª. Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (AM) e fez o curso de guerra na selva.
– No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é – já disse um dia Eduardo Viveiros de Castro, um antropólogo que vale a pena ler. O senhor, general, não se considera exceção, porque seu pai é amazonense, o meu também, portanto compartilhamos o sangue indígena, que todo brasileiro tem, uns nas mãos, outros nas veias, outros na alma. O saudoso marechal Rondon não tinha sangue indígena nas mãos. Seu lema era: “Morrer se for preciso; matar, nunca”. Essa é a do glorioso que precisamos resgatar.

Mas nesse momento alguém está com as mãos ensanguentadas. No domingo passado (12/8) foi assassinado Jorginho Guajajara, líder do movimento contra a invasão do seu território por madeireiros que destroem a floresta. General, não basta se declarar indígena. Não basta parecer índio. Não basta colocar um cocar: isso até a senadora Kátia Motoserra Abreu fez. É preciso ser índio. Para isso, temos que ser solidários com os parentes. Aguardamos urgentemente seu pronunciamento vigoroso cobrando a punição dos assassinos. É alentador, depois de cinco séculos de massacres e de roubo de terras, ter na vice-presidência alguém com sangue índio na alma e nas veias.
Lutar até morrer
Afinal o senhor, que se diz indígena, é general. Bolsonaro, que não gosta de índios, é apenas capitão. Use a hierarquia para ordenar que seja incorporado aos programas do PSL e do PRTB a exigência pela demarcação das terras de seus parentes, fazendo cumprir a Constituição de 1988.
Contamos ainda com seu apoio ao movimento suprapartidário de 73 candidatos índios, de diversos partidos, em quase todos os estados brasileiros: 25 a deputado federal, entre os quais Eunice Kerexu (Psol-SC), Toninho Guarani (PT-ES),Francisco Piyanko (Psol-AC), Joênia Wapixana (Rede-RR), Almir Surui (Rede-RO) e Rondon Terena (Psol-GO); 45 a deputado estadual ou distrital, entre eles Hyral Moreira (Rede-SC), Anapuaka Tupinambá (PPS-RJ) e Gersem Baniwa (Rede- AM); Uma (1) candidata ao Senado, um (1) a governador e uma (1) a vice presidente da República, todos agrupados na Frente Parlamentar Indígena (ver lista abaixo).
Não incluímos seu nome na lista, general, porque aguardamos sua posição firme em defesa da demarcação das terras indígenas. Vamos barrar o avanço dos ruralistas que querem tomar as terras dos que aqui vivem antes da chegada do Cabral.. Por enquanto, de cabeça erguida e peito estufado, podemos cantar juntos, general, o nosso hino de guerra, de autoria do Flávio de Souza:
Vamos à luta, lutar para vencer.
Se for preciso, lutar até morrer.
Lutar com disciplina e destemor
Mostra a todo mundo o teu valor.
Esse é o hino do glorioso Nacional Clube, de Manaus, pelo qual o senhor também deve torcer, que lidera hoje o Grupo A3 da Série D. No contexto da atual luta política, podemos ressignificá-lo. Amos. Atos. Obros.
P.S.: O número de candidatos indígenas em comparação a 2014 é maior de acordo com o TSE. São 129 inscrições contra as 85 da última eleição. Já pelo mapeamento feito pela Articulação dos do Brasil (APIB) há, até o momento, 75 indígenas indicados. Conforme o assessor jurídico da APIB, Luiz Eloy Terena, está sendo construída uma plataforma online, que vai trazer informações sobre o perfil dos candidatos, a história dele com o movimento indígena e de seu povo, dados do partido e principais propostas. (Informações de Lilian Campelo – Brasil de Fato)
ANOTE:  José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do Direto da Redação.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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