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Ruas de ninguém

É característica do brasileiro conceber o bem público como “coisa” que a ninguém pertence, quando na verdade tudo que é público é patrimônio de todos, e por esta razão merecedor do cuidado e zelo de todos que convivem em sociedade. Não se trata de capricho de uma população pouco educada e desinformada, mas realidade induzida pelo próprio poder público, cujas ações aprofundam essa adversa   percepção que se expressa a cada passo que se dê nas ruas das cidades brasileiras.

Tome-se o recorrente desprezo pelo planejamento urbano que por lei deveria dirigir o desenvolvimento das cidades em seus territórios urbano e rural. Planos até existem, mas aqui no teimamos em não concretizá-los, a despeito de serem bons no aspecto geral. Peca-se pelo excesso de leis, regulações e metas que, quando merecem a devida atenção, geralmente não encontram o êxito desejável em razão da contumaz descontinuidade das gestões seguintes. Chega a ser paradoxal um país ocupar o escore das 10 maiores economias do mundo e ainda conviver com carências básicas como mobilidade, , saneamento, urbana, não obstante possuirmos instrumentos e tecnologias para sua definitiva superação.

Realidade assim leva as pessoas a não conviverem em plena comunidade, amedrontadas e desmotivadas que estão com sua cidade de espaços inseguros, perigosos, encardidos, esteticamente pouco atraentes e de serviços ineficazes. Isso leva a uma situação grave, pois as pessoas passam a ter condutas agressivas e a se esconder na sua própria cidade. “Não mais ocupam seus espaços públicos, não se encontram nas ruas, se locomovem enclausuradas em seus carros, interagem apenas em shopping centers”, como bem sugerem as anotações dos urbanistas Carlos Leite  e Juliana Marques (Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes, Editora Bookman, 2012).

Esse preocupante sentimento está se cristalizando ao longo da história da formação das comunidades urbanas e corrompe o sentido de urbanidade que deveria unir as pessoas em seu território, especialmente em suas ruas. Rapidamente o fenômeno pode culminar na morte das cidades, pois, ao contrário do que se imagina, não são as pessoas que estão evitando ocupar e conviver nas ruas das cidades, mas sim o tipo de cidades que estamos construindo é o que enclausura sua gente.

Logo, a inépcia e desprezo com que são geridas as cidades brasileiras é que as tornam estúpidas e violentas, egoístas, individualistas, consumistas e burras, a ponto de produzirem nichos de discórdias, rixas gratuitas, grupos hostis. Em lugar de jardins, concreto e asfalto; em lugar de convivência, gangues e exclusão. Maculam o significado das ruas, cujos espaços sagrados formam as esquinas e balizam as praças às quais deveriam confluir gente de todos os lados.

O que anda acontecendo com as ruas de Goiânia, capital goiana (só pra ficar num exemplo), cabe perfeitamente nesse figurino. Por serem as ruas espaços públicos, seus viventes lhes deferem o desprezo e usurpam o direito à sua justa utilização. Nos referimos à sombra. Isso mesmo, a sombra das árvores plantadas nas proximidades dos cruzamentos semaforizados. Aqui impera o manjado comportamento do “primeiro eu, o resto que se f…”. É quando o motorista imobiliza seu automóvel sob a mancha de sombra desenhada no leito da rua para se proteger do sol, sequer importando a distância a lhe separar do cruzamento. Não precisa ser técnico para deduzir que esta reprovável atitude é um dos fatores a contribuir para o agravamento das retenções de fluxo de trânsito. E assim as tensões surgem nas ruas, reproduzindo o egoísmo sem fim.

Como se não bastasse, nas “ruas de ninguém” bares, restaurantes e galerias passaram a invadir seus leitos privatizando-os para a prestação de serviços de manobristas por empresas “especializadas”. Delimitam fisicamente bons espaços viários à frente de seus negócios, instalam uma plaquinha de serviços de “parking”, plantam ali um senhor de terno e gravata para se lhes acomodar o automóvel, e pronto! Emprestada está a sensação de pertencer ao primeiro mundo. Para os que têm preocupação social, no mínimo uma concorrência desleal com os “flanelinhas”. Para os que militam pelo bom senso coletivo, a dor de observar a cidade cada vez mais corrompida, cada vez mais confinando as pessoas.

Foto: ChoquePhotos

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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