Demarcações de Terras Indígenas pode parar na justiça
![Demarcações de Terras Indígenas na justiça 1 índigenas em Brasília](https://ichef.bbci.co.uk/news/660/cpsprodpb/B225/production/_105050654_adrianomachado-reuters.jpg)
Nas primeiras horas de governo, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) editou uma medida provisória e um decreto que esvaziam as principais atribuições da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Ele deslocou para o Ministério da Agricultura, instituição que representa interesses do setor agropecuário brasileiro, a prerrogativa de delimitar terras indígenas e de quilombolas, e de conceder licenciamento para empreendimentos que possam atingir esses povos.
Diminuir a concessão de demarcações de terras e destravar obras, como ferrovias e rodovias, em áreas próximas a comunidades indígenas eram reivindicações da Frente Parlamentar Agropecuária da Câmara, que representa os interesses de produtores rurais. Mas a decisão do novo presidente saiu melhor que a encomenda, segundo parlamentares do grupo, a chamada “bancada ruralista”
“Essa decisão foi muito bem recebida por nós, mas foi uma surpresa. Não imaginei que iria bem para o Ministério da Agricultura”, disse à BBC News Brasil o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), que é integrante e ex-presidente da Frente Parlamentar Agropecuária.
“Eu tinha sugerido ao Bolsonaro criar uma secretaria do índio, ligada à Presidência. E havia a possibilidade de prerrogativa de demarcação ir para Ministério da Justiça, mas o Sérgio Moro não queria, então, prevaleceu a vontade daquele que foi eleito, de tratar a questão (da demarcação) sob a ótica produtiva.”
Mas, no Ministério Público Federal, a reação foi bem diferente. Procuradores que atuam na defesa dos direitos dos indígenas estudam, segundo a BBC News Brasil apurou, formas de contestar na Justiça as decisões de Bolsonaro.
![Demarcações de Terras Indígenas na justiça 2 Bolsonaro com Tereza Cristina](https://ichef.bbci.co.uk/news/624/cpsprodpb/10045/production/_105050656_nobrega-afp.jpg)
E a Procuradoria-Geral da República informou à BBC News Brasil que todas as decisões do novo presidente sobre demarcação de terras “serão analisadas” para verificar se há “retrocessos” ou violações a direitos. Se a interpretação for de que existem inconstitucionalidades, poderá ingressar com ações no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a derrubada integral ou parcial das medidas.
O procurador da República Júlio Araújo, que integra o grupo de trabalho sobre demarcação de terras indígenas da 6ª Câmara do MPF, avalia que a transmissão das funções da Funai para o Ministério da Agricultura viola a Constituição.
Segundo ele, essas medidas podem paralisar novas demarcações, já que o controle sobre a decisão estará nas mãos de uma instituição que representa ruralistas e que não teria, a príncipio, interesse em expropriar terras de produtores ou paralisar obras que possam beneficiar o escoamento da produção.
“Esse esvaziamento (da Funai), por si só, tem inconstitucionalidade, porque você torna inoperante a política de demarcação. Você está desestruturando uma política prevista na Constituição”, afirmou à BBC News Brasil.
“O governo está indicando que não vai mais demarcar terras. A decisão vai ficar sob controle de um ministério que é contrário a esse interesse e que responde a um governo contrário a esse interesse.”
![Demarcações de Terras Indígenas na justiça 3 índigenas em Brasília](https://ichef.bbci.co.uk/news/624/cpsprodpb/40DD/production/_105050661_cad36f9a-e056-40ab-a7ec-d39ba92cc231.jpg)
De acordo com Araújo, membros do Ministério Público Federal podem questonar as medidas de Bolsonaro em juízos de primeira instância nos casos concretos de demarcação. “Uma maneira de enfrentar esse cenário é que o Judiciário garanta as demarcações nos casos concretos”, afirma.
Ele explica que, atualmente, quando há demora na demarcação de uma terra, o Ministério Público ingressa com ações judiciais e o juiz determina que o Executivo proceda à avaliação das terras. Num cenário em que a decisão ficaria a cargo do Ministério da Agricultura, Araújo diz ser possível pleitear que o próprio Judiciário proceda à demarcação, sem esperar a atuação do Executivo.
“Hoje, a tendência é ter uma autocontenção. O judiciário reconhece que existe uma terra indígena e manda o Executivo demarcar. Mas eu acho que poderia ir além, fazendo perícias e determinando ele próprio a demarcação”, defendeu o procurador, que é autor do livro Direitos Territoriais Indígenas: Uma Interpretação Intercultural.
“O Judiciário tem condição de declarar que um território é indígena e tem condição, por entendimento do Supremo, de discutir os limites dessa demarcação. Não é algo que naturalmente ocorre, mas num cenário inconstitucional de não efetivação desse direito esse seria um caminho.”
Por sua vez, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal organização indígena do país, recomendou às suas representações nos Estados que organizem “o ingresso [na Justiça] de uma ação popular requerendo judicialmente a nulidade dos atos praticados pelo presidente Jair Messias Bolsonaro”.
Para a Apib, as decisões do novo presidente “destroem praticamente toda a política indigenista brasileira”. No caso das ações civis públicas, os pedidos de nulidade também seriam feitos a juízes de primeira instância.
‘Desequilíbrio'
Nilson Leitão, da bancada ruralista, reconhece que a questão possivelmente será judicializada, mas defende as decisões de Bolsonaro.
“Com certeza vai ter reação. Uma boa parte da PGR é ativista.” Segundo o deputado, sob a coordenação da Funai, pedidos de licenciamento ambiental acabam “engavetados”, travando, com isso, projetos como asfaltameto de rodovias em áreas de interesse do setor agropecuário. Ele também critica o que chamou de foco “excessivo” da Funai em expropriar terras para reservas indígenas.
“Estava muito desequilibrado para um lado. Muitos vão achar essa decisão radical, mas existe um enfrentamento ideológico e a Funai muitas vezes segurava por anos a concessão de licenciamentos, além de focar demais em demarcação, em vez de cuidar da saúde, educação e qualidade de vida do indígena”, disse.
Perguntado se o deslocamento da atribuição de licenciamento e demarcação para o Ministério da Agricultura não resultaria num “desequilíbrio” para o lado oposto – dos ruralistas -, Leitão afirmou:
“Pode ser que desequilibre, sim. Mas eu prefiro apostar que vai resolver. Posso assegurar que grande parte dos índios quer produzir. Ele quer ter o dinheiro dele, quer trabalhar, não quer ser fotografia na capa de revista europeia.”
A Funai disse à BBC News Brasil que não se manifestaria sobre as declarações de Leitão. Sobre as decisões de Bolsonaro acerca de demarcação e licenciamento, disse que “respeita a decisão do novo governo e continuará a cumprir a missão institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas”.
O que dizem as medidas assinadas por Bolsonaro
Editada pouco depois da posse de Bolsonaro, na segunda-feira, a Medida Provisória 870 amplia as competências do Ministério da Agricultura para incluir “reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e quilombolas”.
Segundo a MP, caberá ao Ministério da Agricultura “a identificação, delimitação, demarcação e os registros das terras” tradicionalmente ocupadas por indígenas e pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Antes, a demarcação das terras era feita pela Funai, após estudos antropológicos e avaliações de técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Concluído o parecer pela demarcação, ele era encaminhado para o ministro da Justiça, para assinatura da declaração da demarcação. Em seguida, seguia para homologação pelo presidente da República.
![Demarcações de Terras Indígenas na justiça 4 Indígenas](https://ichef.bbci.co.uk/news/624/cpsprodpb/14E65/production/_105050658_adrianomachado-reuters2.jpg)
Com as mudança feitas por Bolsonaro, o Ministério da Agricultura controlará todo o processo.
Depois de editar essa MP, o presidente assinou um decreto repassando para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, subordinada ao Ministério da Agricultura, a função de coordenar a concessão de licenciamentos ambientais a empreendimentos nas terras indígenas e de quilombolas.
Esse licenciamento incluiria, por exemplo, permissão para construção de hidrelétricas perto de comunidades indígenas, ferrovias e rodovias. Antes, essa função era da Coordenadoria-Geral de Licenciamento Ambiental da Funai.
Na terça-feira, pelo Twitter, Bolsonaro criticou a extensão das terras demarcadas no Brasil e defendeu que povos indígenas e quilombolas sejam “integrados”.
“Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”. afirmou.
Para o procurador Júlio Araújo, essa visão de defender a “integração” dos povos indígenas viola o artigo da Constituição que diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
“Os povos indígenas devem ter autonomia para viver na terra deles ou viver na cidade, retornar ou não para a aldeia. Essa premissa de forçar os indígenas a serem integrados é inconstitucional”, afirmou. “É uma visão autoritária de que melhorar de vida é morar na cidade ou seguir um mesmo padrão de comportamento”, avalia Araújo.
A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria da Presidência da República e do Ministério da Agricultura, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46749222?fbclid=IwAR3bmxra0Q9STvYXGkksF-k4aDN-3e_Dfzptm0wnsIf969b18v-RFAbqNDI
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