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Os Incendiários

Os Incendiários

Por Lúcio Flávio Pinto

Um grupo com mais de 70 pessoas combinou por Whatsapp iniciar um ato público. De ameaça? Advertência? Mobilização? Pedido de apoio ao presidente da República? Tudo isso embaralhado, declarado, sugerido ou intuído, mais alguns objetivos inconfessáveis de integrantes desse grupo.

Dele participavam fazendeiros, madeireiros, agricultores, grileiros e especuladores. Talvez até algum criminoso, como parece inevitável numa fronteira marcada pela destruição da natureza, a , o desrespeito aos , a corrupção – o caos.

O local de concentração era estratégico: em Novo Progresso, no sudoeste do Pará, cidade de 20 mil habitantes localizada à margem da BR-163. Com mais de 1,5 mil quilômetros de extensão, a Santarém-Cuiabá foi escolhida para ser o local de um projeto pioneiro, que se propunha evitar que uma grande estrada-tronco, que corta a espinha dorsal da , fosse também vítima das irracionais frentes nacionais de ocupação da fronteira.

Verbas estrangeiras combinadas com recursos nacionais, ONGs de fora e de dentro do país, instituições científicas brasileiras e estrangeiras, pessoas de boa vontade, elaboraram um plano diretor para apoiar empreendimentos considerados como coerentes com o . Para isso, agiriam em paralelo o que interessa é transformar, no final das contas, os bens naturais em mercadorias, o abstrato de poetas e sonhadores em moeda sonante, o dólar de preferência.

Novo Progresso era a prova irrefutável de que os “desenvolvimentistas” venceram – e de goleada – os “conservacionistas”. A cidade serviu de base para todos os tipos de atividades, as lícitas e as ilícitas, mais estas, como a abertura de longas estradas para dar acesso à mata nativa, mesmo que em unidades de conservação e reservas indígenas.

Engrossada pela chegada constante de novos habitantes, sua população pensa pela cabeça do pioneiro desbravador – em última instância, o bandeirante que desbravou os sertões brasileiros, à cata de riquezas, indiferente ao meio que enfrentava e derrubava, sobretudo a floresta. Por isso, não pareceu anormal que os mais de 70 pioneiros programassem, no dia 5, transformar em fogueira as áreas nas quais pudessem atear fogo cinco dias depois.

 

Afinal, eles queriam mostrar ao presidente Jair Bolsonaro que iam dar forma concreta ao discurso que ele vinha fazendo já antes da campanha eleitoral de 2018 e intensificara ao assumir o poder: queria ver a Amazônia repleta de fazendas, mineradoras, madeireiras, plantios de soja e outras atividades rentáveis economicamente. Se índios, caboclos ou mesmo as árvores estivessem à frente, perdão, mas é preciso ir em frente com os tratores, motosserras e peões.

O “dia do fogo” deveria ser o marco da radicalização desse pragmatismo à moda do capital, mesmo o mais descontrolado, usualmente batizado de selvagem. Seria mais uma etapa da corrida “a oeste”, que deixou uma trilha de devastação da natureza e do nativo, mas expandiu a fronteira, garantiu a soberania nacional, enriqueceu o país, consagrou a doutrina de segurança nacional e fez o Grande dos geopolíticos, com a mente sempre preparada para absorver teorias conspirativas sobre a ameaça iminente de internacionalização, reavivadas pelo oportunismo e certa irresponsabilidade eleitoreira do presidente da França, Emmanuel Macron, em torno de uma soberania brasileira restrita na Amazônia.

Agora, até o Pacífico, vencida a barreira do último Estado, o maior do país, a reserva que sobrevive da floresta tropical nativa e virgem, ainda a maior do mundo. O está sendo comido, com a mesma velocidade imposta aos demais estados, pelo sul do seu território. O fogo do dia 10 era para iluminar o caminho das formigas humanas da destruição.

O problema é que no intervalo entre a convocação dos incendiários e o dia do fogo, uma súbita e radical mudança fora do país reverberou intensamente no Brasil. Antes mesmo das orquestradas, os incêndios já se espalhavam pela Amazônia, conforme alertara o INPE. As imagens assustaram os que acompanham o que acontece na região, chocaram quem dela sabe ocasionalmente e foram a oportunidade para a inclusão do tema na Europa, desviando a atenção para outros problemas locais, sobretudo na França, em processo eleitoral, na Alemanha e na Noruega, ofendidas por Bolsonaro.

Toda a atual celeuma sobre a Amazônia, com seus absurdos, desinformações, deformações e tudo mais, inclusive boas intenções, não existiria se Bolsonaro, nos seus rompantes irracionais, não tivesse negado os resultados do monitoramento das queimadas pelo INPE com seu “achismo” autoritário, de capitão-do-mato. Era uma estultice, além de um absurdo, uma bizarria.

O INPE, a caminho dos 60 anos, é uma instituição científica de respeito internacional, O acompanhamento que faz das mudanças no com base em interpretação de imagens produzidas por dezenas de satélites, é um dos mais antigos e mais competentes do mundo. Bolsonaro, negando as informações produzidas pelo instituto e divulgadas desde 1988, provocou estupor de amplitude planetária.

Feito o estrago lamentável, ele quis se desviar do cometimento alegando que ficara irritado porque o diretor do INPE não informou o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, antes de fazer o anúncio público das informações. Uma instituição científica pública é uma entidade do Estado, não do governo. O compromisso que a sociedade lhe delegou é perquirir pela verdade, traduzindo em números e análises a mais segura reconstituição da realidade, o que exige métodos científicos, como os satélites. A base de Bolsonaro parece ser a astrologia.

Todos os presidentes aceitaram essa premissa, inclusive Fernando Collor de Mello. O impacto ainda mais brutal, quando o INPE constatou o maior (com as maiores queimadas) de todos os tempos (inclusive na história da humanidade), na pesquisa de 1988. O presidente José Sarney reagiu com o programa Nossa Natureza. Muito confete e fogo-fátuo, mas era a resposta que lhe cabia dar. Bolsonaro foi o primeiro que quis apagar da história o balanço do INPE. Com isso, o debate deixou de ser principalmente científico para se desviar por veredas políticas. E alcançar o patamar de uma crise mundial.

O presidente da Câmara Federal, deputado Rodrigo Maia, com o veneno que parece ter herdado do pai, César Maia, deu a sua estocada. Negou que os atos do governo ou do parlamento sejam para estimular ou mesmo apoiar a destruição da Amazônia, muito pelo contrário. O problema é a “narrativa” (a expressão da moda) de Bolsonaro. Ou seja: o melhor que ele pode fazer é seguir o conselho dado pelo rei da Espanha a Hugo Chávez – por que não te calas?

Tirando todo glacê das declarações de última hora, paradoxais em relação ao que fora dito até a véspera, e ignorando as dificuldades do presidente até para ler o texto preparado pela sua assessoria, o único fato concreto do pronunciamento de Jair Bolsonaro de duas semanas atrás, que delimitou a passagem da fase da agressividade destrutiva para a falsa preocupação pelo meio ambiente, sexta-feira foi o anúncio de que as forças armadas estarão à disposição dos governadores dos estados da Amazônia Legal que as requisitarem, para um combate direto aos destruidores da natureza.

Bolsonaro adotou o mesmo modelo utilizado no combate ao crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro, estendendo-o agora ao interior da Amazônia. Com a possibilidade de alcançar o mesmo resultado: o fracasso.

Não por culpa das forças armadas, mas porque lhes dão uma missão incompatível com a sua organização e suas finalidades, exceto em caso de agressão externa ou em cataclismos e situações de urgência e emergência. Acho que seria diferente se Bolsonaro anunciasse a instalação – o mais rápido que fosse possível – de 10 ou 15 bases de helicópteros (com 20 ou 30 aparelhos), espalhadas pelas áreas críticas da Amazônia, a serem operados por pessoal da Aeronáutica, com suporte da mais sofisticada tecnologia para detecção de desmatamentos e queimadas (e de qualquer outro crime ambiental), sob o controle de cientistas, e a ação de campo de uma forte, numerosa, bem armada e bem remunerada polícia florestal, que ele criaria, seguindo o modelo canadense, acompanhada pelo Ibama.

Aí, sim, Bolsonaro mudaria a situação. Seria mais fácil chegar de imediato aos locais onde os crimes estivessem sendo cometidos, prender os criminosos, submetê-los a um processo judicial sumário, sob todas as garantias constitucionais, mandá-los para a cadeia e impor-lhes pesadas multas.

Se ouvisse uma proposta dessas, provavelmente Jair Bolsonaro reagiria com o desdém e a superioridade dos que se consideram realmente um mito, um messias, com direito a dizer tudo que quer e fazer o que lhe vem à cabeça sem outra consequência que não a realização da sua vontade. A reação mundial o fez mudar de rumo e de retórica, convicto de que, passada a gritaria histérica, ele retomará as rédeas do oitavo maior país do mundo. Mas ele pode estar enganado – felizmente.

Lúcio Flávio Pinto (www.lucioflaviopinto.com.br)– Jornalista desde 1966. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica. Único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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