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Homens podem ser feministas?

HOMENS PODEM SER FEMINISTAS?

Homens podem ser feministas?  

A autora neste artigo diz que, influenciada pelo pensamento de Chimamanda entende que todos devem e podem ser feministas.  Vivemos numa sociedade que constrói uma masculinidade doente, misógina. E isso tem que mudar. “Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, e econômica entre os sexos”.

Por Nara Bueno 

Começo esse capítulo com extremo cuidado. E explico o porquê: muitas teóricas e feministas que respeito, leio, absorvo e admiro muito defendem a ideia de que apenas as podem ser feministas. Para elas, os homens seriam, no máximo, apoiadores das demandas feministas.

Em minha vida pessoal, tenho professoras, amigas, alunas e colegas que respeito muito e que também defendem a impossibilidade de os homens serem feministas, pelo simples fato deles não possuírem útero. Daí que me inquieta a concepção de que o título de feminista só pode ser “vestido” por alguém que tenha útero.

Essa concepção restrita me incomoda muito porque ficam lacunas inexploradas e inexplicadas: e as mulheres transsexuais? E as drag queens?… Os exemplos seriam muitos. Mas acredito que você já entendeu meu ponto.

Há alguns anos, me encontrei com a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (calma, me encontrei virtualmente! Assisti ao seu vídeo no TED Talks (2013). O encontro “real” ainda é um sonho que não tenho certeza se vai ser concretizado algum dia…) e alguma chave virou, ouvi um clique!

Por conta disso, abri esse capítulo com a citação dela que tem me acompanhado desde então. Sua afirmação é que qualquer pessoa pode ser feminista.

O que me agradou na definição de feminista de Chimamanda é a humanidade e o estabelecimento claro dos fronteiras de batalha: qualquer pessoa pode ser feminista, desde que acredite na (e lute pela) igualdade social, política e econômica entre os sexos. Música para meus ouvidos!

Nessa definição, não há restrições, nem exclusão, nem regras para ser feminista. Acredita na igualdade entre homens e mulheres? Percebe que o tratamento dado atualmente às mulheres é desigual e injusto? Quer modificar esse cenários atuais de desigualdade econômica, social e política que submete mulheres de todo o mundo? Pronto. Você é feminista!

Em minhas leituras, como já disse, me deparei com inúmeros argumentos que limitavam o título de feminista apenas às mulheres: o perigo de apropriação oportunista da causa por homens mau intencionados e  os sofrimentos vividos pelas mulheres consistem nos principais deles.

Nessa mesma fala no TED Talks, Chimamanda faz questionamentos poderosos: “Porque, então, não questionar essa premissa? Porque o sucesso da mulher ameaça o homem?” (Adichie, 2015, p. 31)

Aqui, Chimamanda faz, no meu ponto de vista, o questionamento filosófico que me fisgou desde a primeira vez que a assisti e ouvi sua poderosa e inconfundível voz: questionar as premissas dessa sistemática opressora é essencial para termos condições de transformá-la: como o mundo foi configurado unicamente dentro da cosmovisão da masculinidade? Porque uma mulher exercendo o poder (ao invés de apenas ser submetido a ele) é uma ameaça direta à masculinidade dos homens?

Poderia aqui, complementar o termo “masculinidade” com o adjetivo “tóxica”, mas não seria fidedigno aos meus pensamentos. Prefiro a definição feita pela Professora Valeska Zanello, em uma recente live com minha professora Carmem Lúcia Costa (UFG, 2020): estamos em uma sociedade que constrói uma masculinidade doente, misógina. E isso tem que mudar.

Então, voltando à Chimamanda: ela questiona as premissas, os alicerces que esse mundo é firmado. Aí nos deparamos novamente com a Teoria Feminista do Direito (discutida no capítulo 5).

A igualdade enunciada por Adichie (2015, p. 19-20) não é a biológica, porque: Homens e mulheres são diferentes. Temos hormônios diferentes, órgãos sexuais diferentes e atributos biológicos diferentes — as mulheres podem ter filhos, os homens não. Os homens têm mais testosterona e em geral são fisicamente mais fortes que as mulheres.

Existem mais mulheres do que homens no mundo — 52% da população mundial é feminina —, mas os cargos de poder e prestígio são ocupados pelos homens. A já falecida nigeriana Wangari Maathai, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, se expressou muito bem e em poucas palavras quando disse que quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos.

A igualdade que buscamos é outra e tem mais a ver com a igualdade substantiva, com o combate às desigualdades e com a justeza do mundo (por isso chamo de reconfiguração de nosso sistema vigente). Para defender esses valores não acredito que precisa ter um útero. Precisa ter um cérebro pensante e um alma cheia de afetos. Qualquer pessoa, em minha opinião, pode tê-los.

Outro ponto importante é que não faz sentido, para mim, uma minoria política (como nós mulheres somos) descartar 48% da população na luta feminista. Aliás, descartamos uma porcentagem muito maior, porque dos 52% de mulheres, nem todas são feministas.

Qual seria o objetivo dessa estratégia de descartar potenciais pessoas replicadoras que farão transformações ativas? Nós não precisamos de 100% das pessoas para fazermos uma sociedade livre, justa, plural e solidária? Não precisamos de homens e mulheres para vivermos em uma sociedade segura?

Por conta disso, realmente defendo que homens podem — e devem! — ser feministas.

Em relação às mulheres machistas, que são muitas, acredito que devem ser ensinadas, dissuadidas e acolhidas para que possam também ser vetores da transformação.  Mas temos que ter cuidado redobrado com mulheres machistas, sobretudo as que alcançam o poder, porque mulheres machistas são usadas para desvalidar, deslegitimar toda a luta feminista.

Basta uma mulher machista afirmar que “temos direitos demais”, ou qualquer absurdo dessa natureza, para vermos muitos esforços caírem por instantaneamente. Os atores da opressão masculina adoram mulheres que pensam — e propagam — os absurdos da invisibilidade de gênero e naturalizam as desigualdades.

Mulheres machistas ensinam e naturalizam a misoginia. Mulheres machista conformam homens e mulheres a uma sociedade de privilégios e opressão masculinos, assim como homens também ensinam homens e mulheres a serem machistas.

Gostaria de usar essa mesma lógica para um ensino mais humano: o ensino feminista! Homens e mulheres ensinando outras mulheres e outros homens a serem entusiastas zelosos da igualdade social, econômica e política entre os sexos, sendo vetores de ideias que reconfiguram a cosmovisão de nosso mundo, o exercício do poder entre os gêneros.

Márcia Tiburi (2020, p. 107) identifica que a “equação política continua evidente: de um lado estão as mulheres e a violência doméstica, de outro, estão os homens e o poder público”. E continua “enquanto a violência é ‘sofrida’ pelas mulheres, o poder é ‘exercido’ pelos homens”. Daí que esse sistema de opressão e hegemonia masculina cria uma lógica de privilégios aos homens e de ausência deles às mulheres.

É nesse sistema de privilégios que Tiburi aponta a existência de “vantagens provenientes de posições sociais, políticas, econômicas, de gênero, raciais, etárias” (Idem, p. 108). Inclusive, as mulheres — que não são poucas — que ainda defendem a hegemonia e a opressão masculinas gozam de alguma vantagem desse sistema, ou pensam que gozam.

Por outro lado, embora defenda que tanto mulheres, quanto homens possam ser feministas, temos que estar atentas às ciladas que os mal-intencionados nos pregam. Também devemos redobrar atenção para que nossos discursos feministas não sejam mau versados e distorcidos pelos que estão acostumados a agir com desonestidade intelectual.

Dou um exemplo de uma vivência de uma situação desconfortável: há pouco tempo, recebi um convite para compor uma comissão, para organizar e ministrar um curso exclusivamente voltado para o tema da participação das mulheres na política.

Fiquei envaidecida e orgulhosa, porque esse curso seria promovido por uma associação nacional que defende o filão das mulheres nas carreiras jurídicas e é reconhecida por promover eventos acadêmicos de altíssimo nível.

Preparei o projeto, a convite de uma professora que respeito e admiro muito, me reuni com as demais membros da comissão organizadora para finalizarmos os detalhes e aperfeiçoar o projeto apresentado.

Tal comissão era composta por 6 mulheres altamente qualificadas academicamente, todas profissionais estudiosas e pesquisadoras das questões de gênero em alguma medida. Em maior ou menor grau, todas ali se autoidentificavam  feministas.

Ocorre que, no momento de definirmos as palestrantes dos módulos, uma das integrantes defendeu que incluíssemos homens. Ora, veja bem… o curso era realizado por uma associação de mulheres, com o tema da participação das mulheres na política, oferecido para mulheres. Fiquei horrorizada. Atônita!

Argumentei que em um evento realizado na capital de , Goiânia, no dia 28 de novembro de 2019, intitulado de VI Encontro Nacional de Juristas da Eleitoral, a composição da mesa na solenidade de abertura tinha prestado sabe quantas mulheres? Nenhuma. Mandei uma foto da mesa, composta única e exclusivamente por 13 homens. Na foto, a única mulher avistada é uma copeira negra, servindo uma das autoridades.

Essa foto que tirei fala muito: a única mulher está com uma bandeja na mão, servindo a um dos engravatados. Treze homens. Treze autoridades linear e vaidosamente sentados com seus ternos e sorrisos. A maioria dos que fizeram uso da palavra, enalteceu o trabalho da então Presidente do TSE, Ministra Rosa Weber.

Muitos enalteceram o trabalho das mulheres, inclusive das juristas que compõem os Tribunais Regionais Eleitorais pelo Brasil. Mas nenhum criticou a falta de representatividade à mesa. Nenhum fez a ressalva que deveriam estar sentadas várias mulheres dentre aquelas autoridades. Nenhum.

Enviei a foto ao grupo e, em resposta, recebi a mensagem que a composição da mesa era “horrível”, assim como “uma mesa só de mulheres seria horrível também”. Não acreditei quando li. Para coroar o raciocínio — e defender o convite de homens ministrando o referido curso — a colega concluiu que “não se combate desigualdade com desigualdade”.

Depois disso, tivemos uma troca intensa de mensagens. Todas respeitosas e de altíssimo nível de discussão… Mas não pude deixar de responder — e perceber — que os discursos feministas de igualdade entre os sexos ainda são maliciosamente utilizados para nos manter “sob controle”, nos manter atadas às violências cotidianas que nos colonizam e nos submetem dia após dia e continuam nos distanciando do poder e dos cargos poderosos.

Respondi que as situações não se equivalem e que não, não seria igualmente horrível uma mesa só composta por mulheres. Aliás, costumo afirmar em minhas falas que nossa luta estará cumprida, quando naturalizarmos mulheres ocupando 100% de locais de poder (como Parlamentos, Chefias de Executivo, Diretorias de grandes empresas, ícones da intelectualidade e da esfera acadêmica etc.). Todas, todas mulheres.

Porque eu desejo uma hegemonia de mulheres? Não. Porque eu desejo ver a mesma naturalização social da ocupação por esses espaços por mulheres. Ou nós não vimos esses espaços naturalmente sendo ocupados exclusivamente por homens?

Então, respondi à colega, nessa ingrata ocasião, que uma mesa composta só por mulheres seria um avanço. Mas, mais avanço ainda seria, se o evento não fosse para mulheres sobre mulheres. Mais avanço seria se o evento não fosse para mulheres, sobre mulheres.

Mais avanço seria se fosse um evento jurídico comum, de âmbito nacional e que as mulheres compusessem exclusivamente a mesa. Disse, também, que eu concordaria convidar homens para ministrar o curso, desde que não conseguíssemos encontrar mulheres referências em cada área.

E adivinhe, leitora? Sobravam referências de mulheres cânones em suas áreas. E a verdade é que sempre sobram. O que falta mesmo é ter boa vontade e boa lembrança, para fazer-lhes o convite.

Para quem crê que qualquer pessoa pode ser feminista, acredita que tanto mulheres quanto homens são aptos a combater esse sistema de privilégios e favorecimentos que os homens gozam, para aquelas que também defendem que as mulheres são aptas a administrar o poder, conclamo: precisamos reconfigurar os espaços públicos e as fronteiras do espaço privado.

Já é passada a hora de ocuparmos os espaços de poder e sermos naturalizadas neles.

Discurso que se transformou no Sejamos todos feministas, que indico a leitura! Adichie, Chimamanda Ngozi: Sejamos todos feministas. Tradução de Cristina Baum. 1ª edição. : Companhia das Letras.

Fonte: Excerto extraído do livro:  Pequeno Manual das Mulheres no Poder – O que você precisa saber para participar da política Brasileira. EDITORA MATRIOSKA , 2020. Capítulo 9 – pp . 93 a 100.

Nara Vilas Boas Bueno Marques e Lopes –  Ama poesias e prosas poéticas, gosta de cachorros, capoeira, yoga e karatê, apreciadora de comidas gostosas feitas com , advogada eleitoralista, ativista dos direitos das mulheres, especializada em Direito e Processo Eleitoral pela Faculdade de Direito da Federal de Goiás – FD/UFG, mestranda em Direitos Humanos na UFG, pesquisadora de gênero e , autora do livro *Pequeno Manual das Mulheres no Poder – o que você precisa saber para participar da política brasileira*, Matrioska Editora.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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