A MENINA COM O BIFE NO PESCOÇO

A MENINA COM O BIFE NO PESCOÇO

A MENINA COM O BIFE NO PESCOÇO

Faz mais de trinta anos que guardo na memória esta cena comovente: a de uma menina de oito meses engatinhando pelo chão espesso de um barraco sem móveis e carregando no pescoço, pendurado num cordão grosso, um pedaço de bife malpassado. A mãe explicava que fora sugestão de um estudante de medicina para prevenir contra a anemia

Por Elson Martins

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O barraco que visitei muitas vezes ficava por trás do presídio São José, em Belém, num terreno alagado com esgoto a céu aberto e cujo acesso só era possível equilibrando-se sobre palafitas. Além dos aspectos deploráveis da construção e do mau cheiro em volta, o local era vigiado por estranhas figuras armadas, agentes da polícia política do regime militar de 1964.

Os pais da menina pertenciam à ALN (Aliança Libertadora Nacional) e haviam sido presos ao tentar sair do Estado do Pará para a região onde militantes desencadeariam uma guerrilha para restaurar a democracia no País. Acusado de ser perigoso guerrilheiro, o pai foi mantido no presídio enquanto a mãe ficou em liberdade vigiada para cuidar da filha que estava por nascer.

Completava um ano que a mãe, sempre que podia, ia visitar o marido na prisão passando por todo tipo de vexame. Policiais militares a achacavam e faziam ameaças insinuando que o fim do casal estava próximo. Quando se ausentava do barraco, uma irmã ficava com a menina, sempre sobressaltada com a vigilância que cercava a pequena e vulnerável família.

Antes de completar um ano de prisão, entretanto, o pai conseguiu, com a ajuda de amigos de esquerda, articular uma fuga. A estratégia era adoecer para ser levado a um hospital público onde alguns médicos simpatizantes prolongariam o tratamento. E com o passar do tempo se tentaria ganhar a confiança dos guardas encarregados da vigilância do preso.

A confiança foi conquistada ao ponto de o preso sair duas ou três vezes do Hospital da Santa Casa, de madrugada, junto com um policial, para ir até o barraco ver a mulher e a filha. 

Numa noite dessas, o policial ficou deitado numa rede armada na sala enquanto o preso, a mulher e alguns amigos conversavam na cozinha. Um generoso copo de cuba-libre (Coca-Cola com rum) era levado para o policial pelo próprio preso, que lhe pedia que não fosse identificar o restante do pessoal.

Numa certa noite, o preso saiu pela porta da frente do hospital vestido de médico. Um velho fusca, dirigido por uma amiga, já o aguardava nas proximidades com a mulher e a filhinha para levá-los até o Porto do Sal. 

Logo, uma pequena canoa de feirante deixou o porto singrando as águas do Amazonas rio acima, até Guajará-Mirim, na Bolívia. A pequena família iniciava a aventura de 10 anos de exílio no Chile, Canadá e África.

Minha participação nessa história foi a de estar presente em pelo menos duas conversas no barraco, enquanto o guarda tomava seu drink na sala; e de ter providenciado um bom rancho de leite em pó, biscoitos e outras iguarias, sobretudo para a menina do bife pendurado no pescoço. Após a fuga do casal, abriguei em minha casa a tia dela, procurada pelo Exército e pela Polícia Federal.

Não sei dizer o que aconteceu com os policiais que faziam a guarda no hospital. Sei apenas que alguns ficaram sabendo da fuga e até manifestaram o desejo de fugir também. O certo é que no dia seguinte viu-se grande aparato bélico em volta do silencioso e abandonado barraco sobre palafitas.

Essas lembranças foram despertadas por um e-mail que recebi da Artionka Capiberibe, a menina do bife que hoje é doutora em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), professora do departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora do livro Batismo de Fogo: os Palikur e o Cristianismo (2007), indicado ao prêmio Jabuti.

Educada no Chile, Canadá, África e nas várzeas amazônicas do Amapá antes de tornar-se acadêmica em São Paulo, a antropóloga Artionka carrega na alma as marcas dessa luta que não terminou.

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p style=”text-align: justify;”>Elson Martins conselho editorial 1Elson Martins – Jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, foi o criador do Varadouro na década de 1970. Também foi correspondente de O Estado de São Paulo para a Amazônia. Teve passagens pelas imprensas do Acre, do Amapá e do Pará. Agora, volta a escrever nas páginas digitais do novo-velho Varadouro. Conselheiro da Revista Xapuri. Capa: Gustavo Rossi/Revista Fabesp. Matéria publicada em https://ovaradouro.com.br/a-menina-com-bife-no-pescoco

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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