A transição que nunca fizemos: 64 é aqui
Por Mariana Janot e Jorge Oliveira Rodrigues/brasildefato
O 31 de março de 2022 acordou com a publicação de uma ordem do dia pelo Ministério da Defesa. O texto, assinado pelo ministro, general Walter Braga Netto, e pelos comandantes das Forças singulares, aludia ao golpe militar de 1964. Em tom de exaltação, afirmava-se que “o Movimento de 31 de março de 1964” era um “marco histórico da evolução política brasileira”. A menção ao “movimento” sinalizava o revisionismo histórico. A data, deliberadamente modificada a fim de evitar o dia 01 de abril, dia da mentira, confirmava a farsa gestada nos quartéis.
Não foi a primeira vez. A vida política brasileira não é estranha às comemorações e exaltações do Golpe de 1964. Desde a reabertura, não foram poucas as manifestações de oficiais militares que explicitavam seu descontentamento com o que consideravam ser uma versão deturpada sobre o processo político. Basta lembrar dos episódios em torno da Comissão Nacional da Verdade. A disputa pelo passado o reinsere no presente e afeta nossos futuros. 58 anos depois da tomada de Estado em nome de um projeto autoritário, responsável por desaparecidos, mortos e torturados, seguimos firme no compromisso com o critério científico e, sobretudo, na luta pela construção de uma democracia plena de direitos, diversidade e inclusão, que não se sujeite aos desígnios de uma instituição armada.
A ascensão do governo militarizado de Jair Bolsonaro, por certo, representou um desafio a mais nesse processo e é nesse cenário, no bojo dos fantasmas do passado ditatorial que não conseguimos expurgar, que devemos tomar a nota em celebração ao golpe de 64. Golpe, não movimento. Se é certo que a ingerência dos militares e das Forças Armadas na política nacional é um fenômeno histórico, é fato que o governo de Jair Bolsonaro deu outras dimensões e aprofundou o processo de articulação dos quartéis. Hoje, uma organização que se entende acima do povo e dona da nação, se articula em diferentes grupelhos, cada um buscando fazer valer seu próprio projeto político, mas todos visando um único projeto corporativo de poder. As Forças Armadas, no Brasil, defendem sobretudo a própria organização.
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As reminiscências da ditadura vão além de um quadro militarizado na administração pública e dos arroubos autoritários do presidente e dos generais-ministros. Ela estava presente no uso frequente da Lei de Segurança Nacional contra opositores políticos. Está evidente no alto nível de autonomia que gozam as forças armadas em setores como a Inteligência e Justiça Militar. Mas talvez seja no exercício da violência estatal, em si, que o “legado” ditatorial se faz mais explícito, coadunando-se nos traços de violência estruturais que nos são constitutivos enquanto sociedade.
O que a ordem do dia chama de legado de paz e liberdade, é, na realidade, um legado de violência militar sobre a população brasileira. O resultado do lobby militar pelo artigo 142 e a previsibilidade de atuação para re-estabelecer a lei e a ordem foi uma válvula de escape de ação política militar. É verdade que seu objetivo primário era garantir a presença da administração pública, e não realizar policiamento nas ruas. Contudo, o que se observa com o rumo das Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) após 24 anos, este objetivo foi cumprido. Apesar de originalmente concebidas como episódicas e de caráter excepcional, as GLO somam 145 ocorrências desde 1996 para os mais diversos fins em todo o território nacional. Ao longo dos anos 2000, cresceram em número e, principalmente, em escopo, se transformando em operações complexas, interagências, sobrepostas à operações de Pacificação e Ações Cívico-sociais que desembocam na Intervenção Federal de 2018, junto à oficialização da candidatura de Jair Bolsonaro apoiada pelas forças armadas, que, enfim, retornam oficialmente ao protagonismo político. Não esqueçamos, também, que neste processo de militarização da política, o Ministério da Saúde foi ocupado por oficiais militares, protagonistas da gestão da pandemia no país que resultou em mais de 600 mil mortos.
Além das Forças Armadas propriamente ditas, outro legado do período ditatorial que aflige a população brasileira são as Polícias Militares (PMs), pois é neste período que se reorganiza a corporação para reforçar sua subordinação ao Exército para cumprir uma dupla função de inteligência anti-subversão e policiamento ostensivo nas ruas. A lógica de combate interno que vigorou durante a ditadura perdura nestas corporações, em um ciclo de violência que, anualmente, tem matado mais de 6 mil pessoas – em sua absoluta maioria, pretos e pardos.
O legado de democracia, na realidade, é um legado antipopular e de violência racial. A Doutrina de Segurança Nacional, cristalizada durante a ditadura e conservada na mentalidade militar, é uma doutrina racista, que exalta valores associados à civilização ocidental e cristã, como um processo civilizatório a ser imposto pela liderança militar.
A transição que nunca terminamos retorna hoje feito fantasma, assombrando o futuro.
Sem esquecer e sem perdoar, haveremos de extirpá-lo. Ditadura nunca mais!
Mariana Janot é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas. Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/Unesp) e do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec).
Jorge Oliveira Rodrigues é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas. Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/Unesp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato., onde foi publicado originalmente, nem da Revista Xapuri.
Não foi a primeira vez. A vida política brasileira não é estranha às comemorações e exaltações do Golpe de 1964. Desde a reabertura, não foram poucas as manifestações de oficiais militares que explicitavam seu descontentamento com o que consideravam ser uma versão deturpada sobre o processo político. Basta lembrar dos episódios em torno da Comissão Nacional da Verdade. A disputa pelo passado o reinsere no presente e afeta nossos futuros. 58 anos depois da tomada de Estado em nome de um projeto autoritário, responsável por desaparecidos, mortos e torturados, seguimos firme no compromisso com o critério científico e, sobretudo, na luta pela construção de uma democracia plena de direitos, diversidade e inclusão, que não se sujeite aos desígnios de uma instituição armada.
A ascensão do governo militarizado de Jair Bolsonaro, por certo, representou um desafio a mais nesse processo e é nesse cenário, no bojo dos fantasmas do passado ditatorial que não conseguimos expurgar, que devemos tomar a nota em celebração ao golpe de 64. Golpe, não movimento. Se é certo que a ingerência dos militares e das Forças Armadas na política nacional é um fenômeno histórico, é fato que o governo de Jair Bolsonaro deu outras dimensões e aprofundou o processo de articulação dos quartéis. Hoje, uma organização que se entende acima do povo e dona da nação, se articula em diferentes grupelhos, cada um buscando fazer valer seu próprio projeto político, mas todos visando um único projeto corporativo de poder. As Forças Armadas, no Brasil, defendem sobretudo a própria organização.
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As reminiscências da ditadura vão além de um quadro militarizado na administração pública e dos arroubos autoritários do presidente e dos generais-ministros. Ela estava presente no uso frequente da Lei de Segurança Nacional contra opositores políticos. Está evidente no alto nível de autonomia que gozam as forças armadas em setores como a Inteligência e Justiça Militar. Mas talvez seja no exercício da violência estatal, em si, que o “legado” ditatorial se faz mais explícito, coadunando-se nos traços de violência estruturais que nos são constitutivos enquanto sociedade.
O que a ordem do dia chama de legado de paz e liberdade, é, na realidade, um legado de violência militar sobre a população brasileira. O resultado do lobby militar pelo artigo 142 e a previsibilidade de atuação para re-estabelecer a lei e a ordem foi uma válvula de escape de ação política militar. É verdade que seu objetivo primário era garantir a presença da administração pública, e não realizar policiamento nas ruas. Contudo, o que se observa com o rumo das Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) após 24 anos, este objetivo foi cumprido. Apesar de originalmente concebidas como episódicas e de caráter excepcional, as GLO somam 145 ocorrências desde 1996 para os mais diversos fins em todo o território nacional. Ao longo dos anos 2000, cresceram em número e, principalmente, em escopo, se transformando em operações complexas, interagências, sobrepostas à operações de Pacificação e Ações Cívico-sociais que desembocam na Intervenção Federal de 2018, junto à oficialização da candidatura de Jair Bolsonaro apoiada pelas forças armadas, que, enfim, retornam oficialmente ao protagonismo político. Não esqueçamos, também, que neste processo de militarização da política, o Ministério da Saúde foi ocupado por oficiais militares, protagonistas da gestão da pandemia no país que resultou em mais de 600 mil mortos.
Além das Forças Armadas propriamente ditas, outro legado do período ditatorial que aflige a população brasileira são as Polícias Militares (PMs), pois é neste período que se reorganiza a corporação para reforçar sua subordinação ao Exército para cumprir uma dupla função de inteligência anti-subversão e policiamento ostensivo nas ruas. A lógica de combate interno que vigorou durante a ditadura perdura nestas corporações, em um ciclo de violência que, anualmente, tem matado mais de 6 mil pessoas – em sua absoluta maioria, pretos e pardos.
O legado de democracia, na realidade, é um legado antipopular e de violência racial. A Doutrina de Segurança Nacional, cristalizada durante a ditadura e conservada na mentalidade militar, é uma doutrina racista, que exalta valores associados à civilização ocidental e cristã, como um processo civilizatório a ser imposto pela liderança militar.
A transição que nunca terminamos retorna hoje feito fantasma, assombrando o futuro.
Sem esquecer e sem perdoar, haveremos de extirpá-lo. Ditadura nunca mais!
Mariana Janot é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas. Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/Unesp) e do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec).
Jorge Oliveira Rodrigues é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas. Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/Unesp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato., onde foi publicado originalmente, nem da Revista Xapuri.
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