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ADELINA CHARUTEIRA

Adelina Charuteira é mais uma negra que lutou contra a escravidão. Conseguiu envolver muitos negros escravizados contando sobre os comícios assistidos por ela e muitos destes deram guarida e comida aos fugitivos. Por sua audácia, esperteza e consciência de classe, deixo para Adelina um reverberado: Salve!

Por Iêda Vilas-Bôas

Maranhão. São Luís, final do século XVIII para início do século XIX. Casarão grande e abastado, a frente forrada por azulejos portugueses, azuis e brancos. Casarão com primeira entrada, pórtico, sala da frente, sala do meio, escritório e mais para o fundo… o inferno suarento e penoso da escravidão.

As esteiras no chão, os panos encardidos, o mofo do porão. E “aiai” meus deuses, se houvesse reclamação: a chibata fazia desenhos geométricos nas peles negras e luzidias dos rebeldes.

Ali morava um rico senhor, como outros tantos da capital. Roupa de linho casimira branco, chapéu panamá, bengala bem trabalhada em chifre de rinoceronte, que mostrava com orgulho e a poucos deixava que manuseassem. Cabo lavrado com capricho. Uma belezura!

Esse senhor tinha sua esposa, filhos, propriedades. Um verdadeiro “cidadão de bem”… mas também era dono e senhor, senhor e dono de uma escrava muito bonita, que comprara não somente para o serviço, mas para aplacar sua luxúria. Compra feita e paga. Pela rua estreita e de pedras caminhava o senhor na frente, seguido pela linda negra que tinha por apelido “Boca-da-Noite”. Orgulhoso de si, o senhor e dono da negra mal esperaria a “Boca-da-Noite” para tomar seu corpo, sua e coração.

Pois assim se deu, o dono e senhor ficou apaixonado por “Boca-da-Noite”, cujo nome verdadeiro era Josepha Tereza da , e não demorou para que a barriga dela saltasse do cós da apertada saia de juta. Mas “Boca-da-Noite”, aproveitando que seu dono não possuía filha, tratou de garantir, ainda que verbalmente, que a filha tivesse regalias.

Chegado o certo, Adelina surgiu ao mundo num choro comprido e alto. Todos diziam da menina: “Essa aí, bocuda como é, ninguém vai lhe fazer de besta”.

Assim como sua mãe, era escrava. Mas logo sua mãe conseguiu do seu senhor a promessa de que alforriasse a menina quando ela completasse 17 anos; essa promessa nunca foi cumprida, Adelina continuou sendo escrava de seu próprio pai. Entretanto, teve a regalia de aprender, com o pai, a ler e escrever, o que era incomum.

Os tempos e a mudaram, e o pai de Adelina empobreceu. O homem enquanto rico comerciante vivia de lucros da compra e venda de charutos e fumo, em geral. Sendo assim, passou ele mesmo a fabricar os charutos e Adelina, pela esperteza e pelo dom da oratória e de convencimento, passou a ser a encarregada das vendas.

Adelina se arrumava com capricho e com o mesmo capricho ajeitava a cesta de charutos e seguia passeando pelas ruas da cidade, parando de bar em bar, conversando com todos os transeuntes, principalmente conversando com os estudantes do Liceu que eram seus clientes, oferecendo e vendendo seus charutos. A bela moça Adelina conquistou a de ir e vir. Em São Luís não existia um só recanto que não conhecesse e todos também a conheciam.

Com essa liberdade de movimentos por grande parte de suas ruas e com a cabeça fervendo pela sua tomada de consciência de escrava, Adelina aproveitou para se engajar em prol da libertação dos escravos. Com sua latente audácia e sabedoria, passou a ajudar uma associação de estudantes conhecida como Clube dos Mortos, que possibilitava a libertação dos escravos, pela compra de alforrias ou mais comumente cuidando de sua fuga.

O Largo do Carmo era sua rota preferida. Ali, com ouvidos atentos e olhar apreensivo, ela assistia aos comícios abolicionistas promovidos pelos estudantes. Tanta coisa ela ouvia e imediatamente identificava com sua vida, com a vida de sua mãe, com a vida da mãe de sua mãe e do seu povo negro. Adelina já não demorava mais na rua ou nos bares, terminava sua tarefa com avidez para parar no Largo do Carmo. E assim, ela passou a ser uma frequentadora assídua de manifestações em prol da abolição da escravatura. Adelina, a vendedora de charutos, não levantava suspeita sobre si.

O conhecimento de Adelina sobre as ruas da cidade, sua facilidade de transitar por elas e sua rede de relações conquistada através da venda de charutos foram um trunfo para a luta abolicionista. Adelina tornou-se fiel informante da causa libertária. Ela informava aos ativistas quais ações estavam previstas pela polícia. Também articulava fugas de escravos.

Adelina Charuteira foi uma mulher que se envolveu diretamente em algumas fugas, entre elas, a da negra , que fugiu para o Ceará. Conhecedora dos meandros da cidade de São Luís, foi peça importante nos esquemas de fuga de escravos arquitetados pelas lideranças abolicionistas.

Adelina é um nome pouco conhecido mesmo dentro da luta abolicionista, mas seu papel e atuação foram imprescindíveis para que muitos escravos fossem libertos e livres da morte. Conta-se que Adelina também gostava de fumar, sem tragar o charuto. E fazia tal ação todas as vezes que tinha uma boa para os estudantes maranhenses do Liceu. Esta era sua senha e era bem compreendida pelos estudantes revolucionários.

Adelina Charuteira é mais uma mulher negra que lutou contra a escravidão. Conseguiu envolver muitos negros escravos contando sobre os comícios assistidos por ela e muitos destes escravos deram guarida e comida aos fugitivos. Por sua audácia, esperteza e consciência de classe, deixo para Adelina um reverberado: SALVE!

ADELINA CHARUTEIRA
Foto: Acervo IVB

 

Iêda Vilas-Bôas (in memoriam) – professora, escritora, poeta e ativista do movimento negro, defensora dos ´povos indígenas, amiga e protetora das árvores e dos animais. , com orgulho. Faleceu em 08/04/2022.

Imagem de capa Ilustrativa: como não há registros fotográficos de Adelina,  esta ilustração foi baseada em fotografias de mulheres escravizadas que viviam no Maranhão naquela época. 

 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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