Água, mais água

Água, mais água

A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o império da água. Água que corre no furor da correnteza, água que leva, água que lava, água que arranca, água que roda no rebojo, água que vai abaixando, ainda bem que começou a baixar, mas de repente volta em repiquete…

Por Thiago de Mello

Água de rio que quase não corre, um perigo quando vem o geral. O vento não avisa, vai chegando e fazendo dela o que bem quer. Água que se agarra ao vento para poder voar, água que gosta de ficar parada no silêncio do igapó.

Água de muita fundura, mais de cem braças de fundo, no silêncio do abismo se movem, lentas, as gigantescas piraíbas cegas.

Água de igarapé estreito, como o querido Pucu, com o encanto de suas curvas que me conhecem tanto. Pode vir a maior vazante, que ele nunca mostra o fundo do seu leito. Água rasa transparente, água rasa barrenta, onde as arraias de ferrão de se espalham de manhã cedinho.

Água atravessada de capim, de margem a margem. De capim canarana, de capim perimembeca, fechando a passagem, na curva do Paraná. No Baixo Amazonas, chamam esse capim de banzeiro. No Negro e no Solimões, banzeiro é a batida das ondas no barranco, quando passa motor de linha, lancha veloz.

Água coberta de chavascal, de aninga de folhas grossonas. A gente caminha por cima da espessa vegetação entrelaçada, a gente chega e escuta embaixo dela o barulho dos assustados.

Água de : água de ameba, água de febre negra, febre que só dá em rio de água preta. Ela mata a em dois dias, mordida pelo veneno de um vegetal aquático, parente do timbó, usados pelos índios Saterê quando saem de madrugada para surpreender a piracema dos tucunarés: o timbó adormece os peixes.

Água de cacimba, friazinha: no ardor tímido da mata, o olho d´água se oferecendo, nunca para de minar. As águas medonhas das cachoeiras do Alto Apurinã.

As águas barrentas do Solimões, do Madeira, do Juruá, do Purus. As águas azuis do Tocantins, as verdes do Tapajós. As águas negras (que amanhecem azuis e de repente ficam cor de cobre) do rio Andirá, o rio do meu coração.

As águas do Amazonas varando impetuosas o Estreito de Breves, no Pará, onde saem se alargando, se espalhando desmedidas pela baía de Marajó. As suas ondas chegam a parecer de mar alto. O gaiola, de dois passadiços, motor de centro potente, balança que nem palmeira quando o vento vem. É ali que o rio convoca, orgulhoso, todas as suas energias para o encontro com o mar Atlântico e empurra as águas do por distâncias quilométricas.

Thiago de Mello – maior do e da , em “Amazonas – águas, pássaros, seres e milagres do pedaço mais verde do ”. Editora Salamandra, 1998.

 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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