Aliança China-Rússia muda geopolítica global
Passou despercebida, no meio de tantos tumultos políticos e existenciais imediatos que nos assolam no Brasil, a importância e a abrangência da “Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China”, de 2/2, quando o presidente russo, Vladimir Putin, visitou Pequim para a abertura dos Jogos de Inverno de 2022…
Por Márcio Santilli/via Mídia Ninja
A Declaração vai muito além de uma nota diplomática protocolar para registrar uma visita presidencial. É um documento extenso, que se posiciona sobre quase todos os temas quentes da agenda global atual: pandemia, mudanças climáticas, desigualdades sociais, tecnologia da informação, direitos humanos, novos eixos comerciais e, principalmente, os incômodos causados por iniciativas recentes da OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte – para incorporar a Ucrânia e para instalar submarinos nucleares na Austrália.
A Declaração reafirma a soberania chinesa sobre Taiwan, denuncia a contaminação do Pacífico por resíduos nucleares indevidamente descartados no mar pelo Japão e a incapacidade do Ocidente em combater as desigualdades sociais. Reafirma, ainda, o compromisso das duas potências com o globalismo, com a arquitetura dos organismos multilaterais e com a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, cujas metas correriam o risco de não serem atingidas em consequência da pandemia e das “agressões” diplomáticas dos Estados Unidos.
O texto é enfático em repudiar a expansão da OTAN, que estaria perpetuando o clima político da “Guerra Fria” e, ao mesmo tempo, desrespeitando os acordos que puseram fim à Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, as duas potências afirmam, implicitamente, a legitimidade da influência russa sobre os países vizinhos, inclusive no leste europeu. Trata-se de uma aliança estratégica global que altera a correlação de forças e peita a política externa dos Estados Unidos.
A tradução da Declaração para o português está disponível no site Galo Vermelho.
Ocidente Rachado
Essa cartada sino-russa ocorre no momento em que o governo do presidente Joe Biden acumula um prematuro desgaste, em início de mandato. O acirramento da polarização política interna o leva a querer afirmar a sua autoridade nos assuntos externos. A União Europeia sofreu o racha do “Brexit” e tenta, assim como os EUA, conter ondas crescentes de imigrantes, cuja presença estimula o crescimento da extrema direita em vários países.
A retirada atabalhoada das tropas americanas que ocupavam o Afeganistão e o discurso agressivo do Biden denunciando a invasão iminente de Taiwan, pela China, e da Ucrânia, pela Rússia, indicam que os EUA, embora mantenham um devastador potencial militar, estão perdendo a capacidade de enviar tropas e de sustentar, política e financeiramente, a ocupação física de regiões distantes.
A expansão tecnológica e comercial da China e a sua recuperação econômica provavelmente mais rápida no pós-pandemia, concorrem com as empresas transnacionais e os países ocidentais, do que a disputa em torno da internet 5G é apenas um exemplo. O padrão insustentável de consumo das elites e o aumento da pobreza, na maior parte do hemisfério, atrasam a sua reação à crise econômica e a sua adaptação às mudanças climáticas.
Não há anjos nessa história. Trata-se do mais alto nível de disputa de interesses. A Declaração é implacável na subordinação da soberania dos países vizinhos e vincula princípios universais, como o respeito aos direitos humanos, às particularidades culturais e históricas de cada povo. Reafirma o apoio à agenda da sustentabilidade, mas admite atraso no cumprimento de metas. Rejeita críticas públicas aos seus próprios atos, desvios, omissões e excesso de emissões.
Clima de guerra
A expectativa que se tinha, até bem poucos anos atrás, era de avanços consistentes nas agendas multilaterais. A globalização aprofundou a interdependência entre as principais potências econômicas, reduzindo as chances de conflito militar. Os impactos das mudanças climáticas pareciam ter substituído a corrida armamentista no ranking das prioridades estratégicas. São surpreendentes a deterioração das relações, a escalada nas declarações e a mobilização de armas e tropas.
Claro que nunca houve congelamento na disputa geopolítica entre as potências. A Rússia ocupou a Crimeia e fincou mais os pés na Síria, a China absorveu Hong Kong e adensou a sua presença na África, e os EUA ocuparam o Afeganistão e avançaram pelo leste europeu. Mas havia um certo equilíbrio tácito, que, agora, está prestes a ser rompido.
A Declaração indica que as pendências fronteiriças anteriores entre a Rússia e a China foram superadas ou aplacadas, liberando recursos e atenções para os fronts contra os EUA e a OTAN. A aliança entre elas representa, hoje, uma coalizão de forças bem maior do que a do antigo Pacto de Varsóvia.
O clima político ficou muito tenso e há o risco de algum incidente degenerar em conflito direto. Mas, mesmo que não se chegue a um confronto militar, a tensão já é suficiente para politizar e radicalizar as disputas comerciais e prejudicar as negociações internacionais sobre outros temas, como ocorreu com a ausência do presidente chinês, Xi Jinping, na conferência sobre mudanças climáticas (COP-26) da ONU, realizada em Glasgow, Escócia – limitando os seus resultados.
A essas alturas, a eventual eclosão de um conflito armado, na Ucrânia ou no Pacífico, teria impacto altamente negativo para a recuperação da economia mundial após a pandemia, agravaria a crise migratória e afetaria as liberdades democráticas e o comércio internacional. Nenhum país deixaria de sofrer as suas consequências. Para o Brasil, seria mais um enorme agravante para superar a múltipla crise que nos assola e para reconstruir o país, devastado pelo trágico governo de Jair Bolsonaro.
O pateta da corte (alheia)
O confronto e a guerra não interessam ao Brasil, que deveria se manter o mais distante possível disso. Estamos na zona de influência estratégica dos EUA, mas a China é a nossa maior parceira comercial. Recursos que estão disponíveis para investimentos produtivos ficariam congelados, ou seriam drenados para outras prioridades emergenciais. Temos a perder nos dois lados do conflito, que até poderia nos abrir novas oportunidades comerciais, mas sujeitas a retaliações da outra parte.
Mas o voluntarismo idiota do Bolsonaro não tem limites. Com esse clima todo, ele fez uma visita relâmpago a Putin, nesta semana, acompanhado de uma grande comitiva, mesmo sem dispor de um objetivo diplomático palpável, estando em final de mandato. Diante da notória inoportunidade da visita, o Itamaraty explica que ela estava marcada desde setembro, não tendo qualquer relação com o agravamento do conflito. Os diplomatas sabem da sua inconveniência, mas a teimosia presidencial se impôs.
O governo americano manifestou desagrado com a iniciativa de Bolsonaro, deixando claro que a interpreta como uma opção diante de um eventual conflito. Ele não usou a palavra retaliação, mas ela ficou implícita. Embora se alegue inocente, a agenda da visita incluiu contatos de alto nível entre as autoridades militares do Brasil e da Rússia.
O governo da Ucrânia e a comunidade ucraniana que vive no Brasil, demonstraram a sua estranheza pela exclusão do país da agenda da viagem. Além da indelicadeza, sugere parcialidade diante do agravamento da crise. Mesmo assim, Bolsonaro, que sequer está vacinado, preferiu se submeter à exigência russa de cinco testagens prévias para poder expressar, pessoalmente, sua admiração secreta a Putin.
Toda corte que se preza tem um bom palhaço de plantão. Xi Jinping já demonstrou que não tem apreço pela ignorância agressiva de Bolsonaro, mas Putin parece disposto a administrá-la, se interessar à aliança para minar a influência dos EUA. No mínimo, se utiliza de um idiota para irritar Biden e ostentar, para o seu público interno, algum poder sobre o quintal do adversário. Para isso, serve até um palhaço em final de mandato.