As cores que vestem o Brasil de primavera
“Estampas falam, cores suspiram… mas só a chita canta e dança. ” Ronaldo Fraga
Formas florais exageradas. Tramas simples. Cores vibrantes. Traços imperfeitos. Exuberância tropical. Da cultura, da arte e da alma do artesanato brasileiro, o tecido de chita é o que mais encarna o espírito da primavera, a estação do ano que, daqui do lado de baixo do Equador, aparece nos calendários como o período da natureza em festa, que vai de 23 de setembro a 21 de dezembro.
Escravos, escravas, trabalhadores e trabalhadoras rurais, serviçais da corte imperial, subempregados da República, artistas, modelos, personagens da literatura, do cinema, da televisão e da vida cotidiana… há cerca de 200 anos, o viço encantador dos florais da chita vestem cenários e gentes da nossa História, refletindo em seus traços singelos, quase irreverentes, o espírito do povo brasileiro.
Hoje barata e acessível, a chita, definida por sua padronagem floral montada sempre sobre o tecido de algodão conhecido como morim (se não for em base de morim, não é chita), fez um longo caminho desde sua criação na Índia, até ser encontrada em Calcutá, na África, pelo navegador Vasco da Gama, e ser trazida para Lisboa, em 1498.
De Portugal, a chita se espalhou pelos países da Europa, tornou-se objeto de desejo das elites e, um pouco mais tarde, foi usada como moeda de troca no tráfico de escravos africanos para o Brasil, onde chegou com os europeus nos anos 1800 e foi-se consolidando gradualmente no gosto da nossa gente até tornar-se símbolo de nossa cultura popular.
Amplamente utilizada pelas mulheres escravas, nos primeiros tempos da República, a chita chegou ao vestuário das famílias “caipiras” e das pessoas mais pobres das áreas urbanas, o que a fez ser desprezada pelas elites e ficar conhecida, por muitas décadas, como pano da pobreza brasileira.
O desenvolvimento do setor têxtil e da alta produção nacional de chita nas primeiras três décadas do século XX (20.595.375 metros em 1885; 256.982.203 metros em 1908), permitiu seu uso também em colchas, cobertas e toalhas de mesas, principalmente nas casas simples das áreas rurais, mesmo nas regiões mais remotas, consolidando, assim, seu status como pano de pobre até o ano de 1959, quando a estilista Zuzu Angel adotou o uso da chita em saias femininas.
Das passarelas do mundo fashion de Zuzu para o seu uso pelo movimento hippie e pelo tropicalismo, ao final dos anos 1960, o caminho foi mais que natural. A adesão ao chitão, a expressão mais exuberante dos tecidos de chita, por artistas como o apresentador Chacrinha e os cantores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, deu ao seu uso a simbologia da resistência aos tons tristes e sombrios dos tempos bicudos da Ditadura Militar.
O grande auge da paixão pela chita aconteceu, entretanto, na metade da década de 1970, mais precisamente no ano de 1975, quando a fogosa Gabriela, interpretada pela belíssima Sônia Braga na novela “Gabriela, Cravo e Canela”, baseada no livro homônimo de Jorge Amado, encantou o Brasil, e logo depois o mundo, vestida com singelos vestidinhos de chita.
Nas décadas seguintes, a chita perdeu parte do glamour pop, mas seguiu firme na liderança como o tecido mais popular das vestes e da decoração de grande parte das festas populares brasileiras, formando, com sua filhota chitinha (estampas bem miudinhas) e com seu irmão chitão (flores enormes), um ícone da identidade cultural brasileira.
O livro “Que Chita Bacana” e a exposição “Chita na Moda”, lançados em 2005 pela galerista Renata Mellão no Museu da Casa Brasileira, trouxeram à baila a importância da chita para nossa cultura.
Mais recentemente, a obra “Uma Festa de Cores – Memórias de um Tecido Brasileiro”, lançada em 2014, sobre a história da chita, ampliou os espaços de popularização do tecido, expressão mais pura da nossa brasilidade, pano que veste o Brasil de flor e de cor, acessível para todos os bolsos e todos os gostos.
O resgate histórico e cultural da chita, particularmente nessas primeiras décadas do século XXI, eleva-a de elemento principal de decoração das festas brasileiras, sobretudo das festas juninas e julinas do Nordeste, a produto nobre, referência estética na decoração, em passarelas, palcos, vitrines, galerias de arte.
Cada vez mais, o talento de artistas, artesãs e artesãos brasileiros recria a chita que vestiu escravas, fazendo dela a cara orgânica da primavera brasileira.