As Paternidades do Homem Negro
“Querida, vou pintar o céu de azul
Minha melhor criação foi você” (Jay-Z, Glory)
Por: Henrique Restier, do Medium
A paternidade é um dos principais tópicos do campo de estudos sobre homens e masculinidades, assunto extremamente complexo e rico de caminhos. Sua produção é vasta, atravessando diferentes áreas do saber como a psicologia, sociologia, antropologia, direito, serviço social, etc. Existem, inclusive, instituições com esse foco como o Instituto Papai, Promundo e MenEngage além de campanhas internacionais como o Mencare.
As rápidas transformações no mundo contemporâneo vêm exercendo forte pressão sobre as “formas tradicionais” de ser pai. A figura austera, provedora, autoritária e distante, têm sofrido uma série de contestações, enquanto outros elementos vêm sendo valorizados, como a maior participação nos afazeres domésticos, na criação dos filhos e uma maior liberdade de expressividade emocional para consigo e com os outros.
É claro que entre esses extremos, há uma série de gradações que se produzem em diferentes contextos e relações. Além do mais, os debates sobre paternidade nas relações raciais, assim como suas intersecções com as sexualidades, têm trazido produtivas contribuições para o debate.
Esse texto empenha-se em apresentar uma breve análise crítica e propositiva sobre a paternidade exercida por nós, homens negros, sobretudo os heterossexuais; sobre a constituição da família negra no Brasil; as relações entre paternidade, masculinidade e humanidade, e as atribuições paternas contemporâneas.
Ademais, minha recente inserção nesse universo, me interpelou como homem e negro com a seguinte questão: Que tipo de pai quero ser? Me levando a repensar prioridades, projetos de futuro, responsabilidades e meu espaço afetivo. Assim, é como um pesquisador das masculinidades e pai novato que escrevo esse texto.
O homem negro e a família escravizada
Quando pensamos na escravidão, parte da historiografia aponta que, no Brasil, até 1850, havia um acentuado desequilíbrio entre os sexos, uma vez que a preferência senhorial recaia nos homens negros, jovens e adultos, vistos como mais adequados para o trabalho nas grandes propriedades. Só para termos uma ideia dessa disparidade, no Cais do Valongo um dos mais conhecidos mercados de escravizados das Américas, nesse mesmo período, a cada quatro africanos lá comercializados, três eram homens (FLORENTINO; GÓES, 2017, p. 53). O que pode ter provocado uma baixa taxa de natalidade entre a mão de obra escravizada.
Parcela considerável desses homens iria trabalhar até morrer, sozinhos e sem nunca terem tido a possibilidade de formarem uma família. Junte-se a isso, sua baixíssima expectativa de vida, a grande mortalidade de recém-nascidos e crianças negras, e teremos poucas chances de criação de vínculos afetivos com mulheres negras (muito menos com brancas) e raramente o exercício paterno. A partir da proibição do tráfico (1850) essa dinâmica começou a tomar outra forma. O preço dos cativos sofrera aumento, seu tempo de vida expandiu-se, as condições materiais “melhoraram”, os índices de sobrevivência dos recém-nascidos ampliaram-se e houve um crescimento demográfico do número de mulheres fazendo com que as oportunidades de construção de laços familiares se desenvolvessem.
Apesar do cenário terrível do período escravocrata, foi possível a formação de famílias negras escravizadas e livres. Os laços de parentesco foram elementos basilares não só para os escravizados como para a própria estrutura escravista, em ambos os casos, os vínculos de solidariedade e de auxílio mútuo que essas famílias formavam, contribuíram para instituir certa estabilidade social. No primeiro caso era interessante ao senhor escravocrata, uma vez que isso possibilitava a ordem necessária para o funcionamento do “sistema”. Por outro lado, para os cativos, esses laços políticos e afetivos das redes de parentesco, eram uma maneira de confrontar o senhor, repassar conhecimentos ancestrais e afrodiaspóricos, solidificar as relações entre o grupo, além do compartilhamento das pequenas alegrias da vida. Essas ambiguidades entre estabilidade e emancipação se perpetuam até os nossos dias.
Ser Homem, Ser Humano
São nessas condições históricas que os homens negros procuraram de diferentes maneiras desempenhar a paternidade. No entanto, a figura do pai significa, também, autoridade e responsabilidade. Dois elementos que tradicionalmente têm sido obstruídos do horizonte de potências do homem negro. O sociólogo jamaicano Stuart Hall frisa esse aspecto, sobre o período escravocrata inglês:
“… o senhor branco frequentemente exercia sua autoridade sobre o escravo negro privando-o de todos os atributos da responsabilidade paterna e da autoridade familiar, tratando-o como uma criança…A infantilização também pode ser entendida como uma forma de “castrar” simbolicamente o homem negro (ou seja, privá-lo de sua “masculinidade”); (HALL, 2016, p. 198, grifos nosso)
Essa passagem é interessante, pois mostra que ao homem negro não caberia a figura do pater familias. No imaginário ocidental, a representação do pai é a de um homem maduro, equilibrado, viril, responsável e branco, em suma: “a plenitude máscula”. Esse pai também seria um espelho no qual, outros homens, mulheres e filhos iriam admirar. O processo de infantilização, da qual Hall nos fala, seria nesse sentido mais uma das estratégias racistas visando a emasculação do homem negro, e, portanto, uma forma de eliminá-lo como possibilidade concreta de ser pai, marido e homem. Se o patriarca é central para pensarmos poder (legítimo ou tirânico), porque ao homem negro seria assegurada essa condição?
Masculinidade e Humanidade também estão interligadas, não pelo significado habitual, onde o homem é representante do gênero humano, mas de um entendimento em que a masculinidade nos “torna humanos”. Aquele homem que “perde” sua masculinidade (os atributos reconhecidos socialmente como de um homem) perde também sua humanidade. Paul Gilroy no seu já clássico O Atlântico negro descreve um confronto físico, extraído da autobiografia de Frederick Douglass, entre um homem escravizado, o próprio Douglass, e seu ex-senhor, Covey. Ao fim da peleja, Douglass consegue sua liberdade e segue a seguinte reflexão:
“Eu não era nada antes; agora eu era um homem. Ela [a briga] trouxe de volta à vida meu respeito próprio e minha autoconfiança esmagados, e me inspirou com uma determinação renovada de ser um homem livre. Um homem sem força está sem a dignidade fundamental da humanidade… Eu não era mais um covarde servil, tremendo sob a carranca de um verme irmão de poeira, mas meu espírito havia muito acovardado foi despertado para uma atitude de máscula independência. Eu havia alcançado um ponto no qual não tinha medo de morrer.” (DOUGLASS, apud, GILROY, 2001, p. 139, grifo nosso).
Isto é, através de uma luta, Douglass que já não se julgava um homem e nem era considerado como tal, reconquistou essa condição e consequentemente sua humanidade. Nas palavras de Gilroy “A luta física também é a ocasião na qual é produzida uma definição libertadora da masculinidade.” (GILROY, 2001, p.139). Apesar das especificidades da escravidão, confrontos físicos e intelectuais, principalmente aqueles nos quais a liberdade está em jogo, são situações particulares de afirmação masculina e humana, a paternidade é uma delas, um confronto consigo mesmo.
As atribuições paternas: o homem provedor
Os rearranjos familiares no mundo contemporâneo, do meu ponto de vista, tendem a dilatar a função tradicional do pai provedor, englobando não só o provimento material (ainda socialmente cobrado), mas também de elementos não tão palpáveis, como: atenção, carinho, maior participação nas atividades domésticas com sua parceria e no desenvolvimento de seus filhos. Assim, o homem provedor não está perdendo força, na verdade está ganhando.
Sinteticamente, o provimento simboliza e materializa as possibilidades de um pai em oferecer aos seus filhos e companheira oportunidades e segurança. Servindo-se para isso de recursos materiais e psicológicos. O etnólogo Carlos Moore, entende que o racismo tem como objetivo fundamental “…regular os modos de acesso aos recursos da sociedade de maneira racialmente seletiva em função do fenótipo.” (MOORE, 2008, p.11). Recursos preciosos para inclusive, realizar a paternidade, pois a falta daqueles importantes para a família e socialmente valorizados, provoca em muitos casos, uma sensação de culpa e vergonha nos homens e penúria familiar.
Esse é um processo que atinge diretamente os homens negros, já que, via de regra, não somos vistos como pais provedores, homens capazes de “sustentar” sua família, em termos financeiros, e também emocionais. Não só, não é prudente desconsiderarmos os efeitos nocivos do racismo sobre nossa capacidade de sermos pais, como desconfio das interpretações que menosprezam o papel do provimento no bem-estar da família negra. Deve-se também distinguir o homem provedor que usa sua capacidade de provimento para tiranizar sua família, daquele que enxerga no prover uma ferramenta de potencialização familiar e coletiva.
Pais e filhos
Variados estudos têm destacado os efeitos positivos e negativos do pai na vida dos filhos. A psicóloga Edyleine Benczik (2011) após uma significativa revisão bibliográfica defende que “o pai é um pilar muito importante no desenvolvimento de qualquer criança” (p. 71). Sua participação ativa forneceria a confiança e segurança necessárias aos filhos para enfrentar as dificuldades da vida cotidiana. Em contrapartida, sua ausência prejudicaria o desenvolvimento psicológico e comportamental, agravando casos de violência, depressão e sofrimento emocional. Além, é claro, de sobrecarregar as mulheres que teriam que se dedicar a inúmeras funções.
O enfraquecimento da figura paterna e a desorganização da família negra, um núcleo fundamental de segurança e aprendizado, foi (e é) uma estratégia fundamental para a subalternização dos negros. Precisamos, estar atentos aos mecanismos ideológicos e propagandísticos que colocam o homem negro, quase que invariavelmente, como aquele que é ausente e violento, negligenciando nossa presença e afetuosidade. Penso que uma das principais pautas a ser discutida pelas entidades ligadas às causas negras poderia ser a paternidade do homem negro.
Os desafios dos pais negros são inúmeros, mas penso ser mais relevante trazer certas mudanças de percepção de si e do mundo que podem acontecer quando se torna pai. Um cuidado maior com a saúde para desfrutar de sua família é uma delas. Outra, é o desenvolvimento de um forte senso de urgência e responsabilidade, muito devido a noção de nossas novas atribuições sociais e aos laços de amor em construção. Um outro é o aperfeiçoamento da capacidade de doar e receber amor.
Há um significado muito profundo ao mobilizarmos essas forças para encorajar que emerja o melhor dos nossos filhos. Ensiná-los a serem fortes, audaciosos, sensíveis e honestos é uma grande responsabilidade. Amor e compaixão devem vir acompanhados de desprendimento e coragem para deixarmos que encarem o mundo por si sós. Mantendo-se a prontidão e os sentidos aguçados quando for necessário acudi-los.
Estrutura e proteção, dois pilares importantes da socialização paterna. Que os pais, sobretudo, os negros, possam cada vez mais se ressignificarem como homens, combinando sabedorias ancestrais e contemporâneas. A esmagadora maioria das coisas que realmente, demoram, são uma jornada longa e árdua de aprendizado. Ser pai é uma delas. A paternidade cria significado e propósito na vida de um homem. Que os deveres paternos não sejam amarras, mas, uma chance ímpar para o desenvolvimento de nossa humanidade.
“E eu me desenvolvo e evoluo com meu filho eu me desenvolvo e evoluo com meu pai” (Marcelo D2, Loadeando)
Fonte: https://medium.com/@henriquerestier/as-paternidades-do-homem-negro
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