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Autodecolonização – Uma pesquisa pessoal no além coletivo 

Autodecolonização – Uma pesquisa pessoal no além coletivo 

Aplicar pesquisa em pensar a minha passagem no mundo como alguém minimamente consciente de si tem me levado a lugares surpreendentes. A dinâmica do me levar faz um movimento retroalimentar considerando que eu não iria sem meu coletivo anterior, isto seja, a minha identidade ancestral.
Mais que um circuito entre ancestralidade e atualidade, essa questão é uma base para se navegar em águas revoltas, visto que, se não bem entendidas ou explicadas, essas duas palavras acabam por fazer parte do jogo epistemológico colonial.
Essa forma de pensar o meu trajeto pode evidenciar a importância de se conhecer diversas trajetórias. Também pode servir de elemento encorajador para sujeitos em processo de afirmação de identidade. Rastrear suas raízes mais profundas é um exercício que se faz quando se decide pela hora de enfrentar de fato as camadas de soterramento que a tentativa de apagamento depositou sobre os corpos coletivos.
A afirmação de uma performance decolonial no todo envolvente prescinde que estejamos conscientes de que nossa forma de desenvolver as nossas relações sociais e políticas são pautadas em valores que antecedem o estabelecimento do . Assim, certamente teremos embates constantes com a questão legal, sendo muitas das vezes tidos como rebeldes e antinacionalistas quando não criminalizados e punidos.
Estes fenômenos de resistência são como olhos d’água, que, como bem mostra a geologia, são pontos de erupção de algo muito mais completo e complexo, fazendo parte de uma intricada rede que se forma e se mantém muito mais abaixo ficando, portanto, protegido da ação aniquiladora vindo uma hora a irromper à superfície. A ideia de uma infiltração em uma estrutura aparentemente sólida é como as performances decoloniais se consolidam.
A em nossa identidade é algo que se tem que assumir e assumir pressupõe agir a partir de seu próprio campo de possibilidades. A estrutura sólida instransponível é a identidade nacional, essa que todo habitante deve assumir por força de lei. Ser um brasileiro deve estar antes de qualquer outra forma de identidade e negá-la é uma contravenção. Mas compreendemos bem que essa proposta de identidade nacional não é uma unanimidade, deixando uma lacuna para a validez de uma outra crise identitária.
Negar a identidade nacional e reivindicar identidade anterior é uma atitude que desperta uma série de elementos que nos faz conscientes de nossa condição de primeiros e talvez configure uma das ações decoloniais mais potentes pois são aberturas para “os veios das águas” da ressurgência. São várias as tonalidades sob as quais se constrói ou reconstrói uma ou várias identidades e ter consciência de sua reconstrução é ter provocado a disruptura com o estado pleno da colonização.
Este texto tem o intento de fazer valer o bom uso dos espaços conquistados e, como medida de justiça das coisas, eu o escrevo sob a licença dos vivos que buscam com suas lutas honrar o sacrifício dos mortos, mártires de todos os gêneros que foram silenciados em suas vozes no exercício de resistir e manter sempre presentes os primeiros. Uma postura decolonial talvez nos oriente para esse comportamento, a ciência de que nada mais vivemos que a sequência de uma luta justa muito antes travada para se fazer sempre presente.
Como pesquisador eu adotei as linguagens artísticas como forma de fazer política e a escrita na do colonizador é uma maneira de tornar traduzível para as mais diferentes línguas possíveis aquilo que por si só não tem bastado. São recorrentes as cenas de injustiça secular velada, negada e estruturalmente legalizada contra nossas nações originárias por parte do Estado nacional com a conivência internacional.
Acaba que é preciso desenvolver uma nova forma de fazer tais denúncias, pois, os movimentos clássicos de resistências chegam em um patamar de estagnação. Não temos conseguido causar indignação na opinião pública e nossas demandas são engavetadas no parlamento por falta de pressão popular.
Percebendo isso, escrevo minhas próprias leituras de mundo sendo esse sujeito híbrido com pés e mãos em campos opostos, o que me exige um alongamento amplo para dar passadas de um equilibrista. Tornar evidente a minha trajetória, portanto a trajetória de um povo, é valer-se com outros propósitos da já tão pesada exposição de vida a qual fomos e somos ainda submetidos. A diferença talvez esteja em nosso próprio protagonismo pois falar da própria história deve soar diferente de quando outros falam ou escrevem o que apenas imaginam.
Esse ensaio é a extensão de uma pesquisa de vida, um empenho pessoal em prestar um serviço coletivo às diversas nações indígenas vivas, àquelas que foram dadas por extintas, bem como acolher a angústia da população afrodescendente desse . É uma forma de denúncia mas também uma busca por empatias, uma tentativa de sensibilização para que a partir do nosso caso abram-se precedentes para que outros grupos étnicos tenham suas demandas visibilizadas.
Não custa lembrar que o Brasil foi o último país da a abolir, ao menos oficialmente, a escravidão. Não custa lembrar que se essa nação não tem um tratamento digno para o reconhecimento de sua população originária, tampouco teria com os descendentes de escravos que seguem também sem acesso à condição de dignidade social e política dentro da estrutura que arduamente construíram.
Eu falo da questão da negritude também por pertencimento pois meu é uma composta, em parte, de uma genética ascendente negra. Eu tenho um avô negro e da Venezuela. Eu não poderia deixar essa parte de mim de fora do meu eu.
Esse composto não tira, portanto, o enraizamento central da minha ancestralidade , norte, amazônica e caribenha, onde estão os ossos de minhas avós. É deste espaço geocosmogônico que sou nutrido e a partir dele tenho aspirado alcançar os caminhos para percorrer a vastidão dos mundos postos em atrito.
Tenho decidido participar ativamente das discussões globais certo de que de onde eu parto é o centro móvel de uma periferia imposta. A periferia imposta de que falo é quando já consideramos aceitar as medidas impositivas dos valores externos sobre nossa sociedade de origem. E quando aceitamos ser categorizados como minorias estamos acatando a imposição de uma esfera outra de valores que se fazem maiores sobre nós.
Acaba que não se ver nessa periferia e entendê-la como um componente de ação política é se armar com as armas do invasor. Eu certamente não poderia alcançar esta clareza de pensamento se não tivesse estado tão perto da violência como estive. Eu não poderia ter desenvolvido o meu senso mínimo sobre a necessidade de uma reparação histórica se tivesse que esperar que a escola me contasse sobre essas questões. A ideia de minoria também pode fazer com que deixemos de usufruir, em benefício de nossa defesa, as nossas vivências e memórias.
Eu tive um tipo de privilégio às avessas, diria. Poder presenciar ainda muito criança a violência contra meu povo certamente me fez abrir os olhos e alcançar as visões que muitos ainda buscam; uma razão para se manter estrategicamente rebelde sem se perder na radicalidade. Assimilar muito cedo que o jogo se faz com cartas certas na manga e que sentar-se à mesa principal pressupõe percorrer outros caminhos pode fazer uma grande diferença.
O caminho que nos foi deixado é um caminho oculto mas não é inexistente e impossível de se percorrer. Em nosso caso os caminhos são duplos pois temos identidades duplas e a via da violência acaba sendo um lugar de encontro inevitável. Se somos indígenas podemos percorrer os caminhos de nossos antecessores e se estamos, a priori, imersos no “mundo dos brancos” é pela via da educação que devemos contra-atacar. Para nos educarmos e educarmos aos outros um novo ciclo de violência é aberto. Discorrer sobre fatos violentos vividos ou presenciados mexe em feridas abertas pois ainda hoje esperamos por uma justiça que nunca vem.
Os fazendeiros que queriam, e que ainda querem, expulsar parte de meu povo para tomar nossas terras não ficaram apenas nas ameaças. Eles continuam se proliferando por todo o território além Brasil, ao passo que nossa população não se mantém também por uma espécie de “evasão”, ou um tipo de êxodo, que se configura quando nossos irmãos de sangue renegam suas próprias origens e se submetem a aceitar as periferias sociais da grande sociedade como seu lugar de existir, reforçando assim a máquina de opressão.
Eles e a omissão das autoridades ceifaram com violência diversas vidas, marcando para sempre os corpos de muitas mulheres por estupro diante de crianças que hoje são adultos e certamente não podem ainda hoje falar sobre estes crimes que seguem impunes.
Para a batalha por se manter estrategicamente rebelde sem se perder na radicalidade bem nos servem os propósitos das artes; dentre estes, a cura, um tipo de serviço que a arte presta por meio da voz de expressão ou do fator expositivo de vários eventos cumulativos que precisam ser visibilizados.
Suas diversas possibilidades, quando bem aplicadas, podem nos dar a chance de galgar postos antes impossíveis, visto que os caminhos para ir aos grandes palcos onde se modulam as referências de pensamentos influentes ainda são um desafio grande. Não conseguiremos sem a força das artes pois uma autonarrativa ainda é privilégio para poucos e não fazemos parte desse universo por não atendermos aos critérios da meritocracia.
Discutir a decolonização talvez seja dar um primeiro passo em negar a sua totalidade, ou, que discuti-la não seria exatamente o que se tem a fazer quando desconstruí-la acaba parecendo mais razoável. Essa segunda opção pode dar a nós um sentido mais enérgico ou mais ativo que discutir o que acaba nos deixando apenas nos campos passivos de validar uma teorização.
Se somos um povo constituído com tudo o que nos garante navegar no universo, estamos então na grande batalha para compor com a polidiversidade, vivos e presentes e não meramente elencados como sociedade ou civilizações que não mais existem. Se mesmo por poucos meios influenciamos outras sociedades, cultivamos em alguma medida a abertura de horizontes.
Quando foi exatamente que deixamos de ser nós próprios e passamos a ser como os outros, os outros ou dos outros? Se ainda somos um povo constituído, digo eu ciente de que sou parte de uma nação viva, os Makuxi, devo dizer que, sobre nós, o processo de colonização não conseguiu ainda se fazer plenamente. A nossa maneira de resistir e continuar interagindo com os mundos deve servir de bom exemplo de como subverter os efeitos da supremacia que chegou com o invasor, o unilateralismo imperial e monoteísta cristão.
Travamos uma batalha histórica contra o Estado brasileiro. É preciso avisar aos esquecidos que permanecemos em guerra. A luta para defender parte do nosso território tradicional, a hoje Terra Indígena Raposa Serra do Sol, foi marcada, como disse, por muita violência por parte dos colonizadores.
Para o nosso povo a luta foi composta por resistência e muita estratégia decolonial. E como um bom exemplo prático de como jogar com as armas do invasor contra ele mesmo, buscamos no direito as soluções para o nosso caso. Sensibilizamos a alta corte para decidir pela legalidade de nossa luta. Não revidamos a violência. Nenhuma vida de invasor foi ceifada pela nossa mão.
Buscamos pôr a nosso serviço os mesmos organismos que antes nos enfraqueceram, como a igreja católica por exemplo. Tivemos uma grande vitória, embora o fato tenha despertado muito mais a ira dos nossos agressores que as suas consciências. Depois da homologação da Raposa Serra do Sol os inimigos dos povos indígenas passaram a melhor se articular politicamente.
Hoje temos um retrato catastrófico de país com altíssimos índices de desmatamentos, portanto, de genocídio. Temos ao menos um inimigo declarado, o Presidente da República; o que aliás pouco diz para nós. Saber disso deve servir para que entendamos que a nossa luta está sim para muito além de nossas fronteiras.
Nossa luta é global, somos a repetição do que acontece em todos os territórios nativos invadidos nesse último milênio. Estendemos para milênios nosso marco temporal apenas para ilustrar a nossa capacidade de consciência jurídica quando sabemos que somos atemporais. Os ciclos de violência se perpetuam. Eles são baseados em mídias estratégicas e sua força de ação é muito mais forte e eficiente que a nossa.
Porém ainda estamos de pé e ainda somos uma nação constituída e isso configura para os nossos opositores o maior de seus desafios, nos desarticular enquanto identidade. Nisso se configura uma boa performance decolonial.
Certamente é um jogo duplo essa tentativa de conquistar por imposições. Uma artimanha de dupla ação de desqualificação que imprime sobre nós, indígenas, em dois territórios distintos. Um é mais performático, a imposição de corpos sobre corpos com violência declarada.
É a chegada invasiva quando não se respeitam os valores dos locais por se achar que eles não existem. O outro é mais subjetivo, joga com os componentes da fixação de uma inconsciência coletiva, a morte ao território avançado ou aos campos das cosmogonias, complemento direto do composto identitário. Crer que os outros não possuem alma ou que se a possuem estão postas a serviço de uma oposição, são pagãos libertinos tendo, portanto, que se aplicar a eles, por força que seja, a conversão.
A diferença abissal entre os mundos oriental e ocidental deve servir para alertar sobre a necessidade de se preservar algum equilíbrio geoecológico e sociocosmogônico. O entendimento sobre conhecimento, território, natureza e tecnologia, por exemplo, continuam sendo disseminados segundo a indicação do mundo invasor. As epistemologias outras devem achar um meio de se fazerem presentes deste lado de cá.
Talvez seja aqui no campo das validades onde a escrita ainda domina que estas questões comecem a ser pautadas. Quando um de nós, os tidos como minoria, consegue ventilar essas questões é muito mais legítimo que quando pesquisadores ‘brancos’ o fazem. Não é uma questão de desqualificar ou negar as agência do outro, é uma questão de prática decolonial.
As maneiras como as populações não-ocidentais se comunicam entre si e com os cosmos oferecem vasta bibliografia referencial de como se conquistar a autonomia, mas elas não aparecem descritas ou armazenadas em livros ou outros arquivos físicos.
Nem por isso esse cabedal de conhecimento deixa de ser uma plataforma de conquista, um feito de que se devam se orgulhar seus detentores, como fazem os ocidentais com suas pomposas bibliotecas. Eis aqui uma substancial diferença, a estrutura que os sistemas, ou os mundos adotam. Uns se valem do conhecimento empírico, da tradição prática como escola de vida, a manutenção constante de uma evolução essencialmente oral de transmissão e a capacidade de se comunicar diretamente com os elementais da natureza que acabam sendo parte de suas populações.
Nosso povo ainda sabe negociar com o “sobrenatural” e essa relação de estreitamento faz dos territórios um só campo possível. A outra forma de manter a vida, o mundo ocidental, o desenvolvido ou o tecnológico, passou a ter na estrutura material sua garantia de sobrevivência e então a busca por desbravar matérias primas em terras longínquas foi o motor para o fracasso de ambos, o mundo deles e o nosso. A aproximação descuidada de mundos distintos, uma abordagem não consentida, portanto, delinquente e severamente agressiva para todos, mexeu drasticamente no equilíbrio das existências.
A capacidade de nos mantermos uma nação autêntica, mesmo sob uma pesada campanha bélica secular de destruição, é a nossa melhor resposta quando se exige uma performance de lidar com um mundo tão violento como a ocidentalização. Afinal o que ou quem faz os povos autóctones resistirem mesmo sem parte substancial de seus territórios tradicionais, condição básica para a plena existência?
O que os faz permanecer sendo quem são, mesmo com boa parte de sua estrutura cosmogônica, muitos sem a língua mãe, pleitear essa identidade? Certamente são essas ligações estreitas de territórios que ensaiei falar lá atrás. O território, eis uma das questões chaves para essa narrativa.
Tratamos desse lugar referencial como ponto de partida, mas devemos saber que existem questões anteriores e que talvez sejam elas que nos levam a resistir mesmo quando tentam nos convencer de que essa é uma guerra definitivamente perdida. Tratamos então do Território como um ponto de ancoragem, um termo referencial para nos abastecermos no meio desse longo caminho, o da contra-narrativa.
As leituras gerais que se fazem sobre a colonização são de um movimento sequencial e coreografado a partir da ideia de um velho mundo, onde de tudo já foi desenvolvido e, para dar continuidade à existência e ao entretenimento, tenham que buscar atrativos em outros mundos. Então alguém sonhou com a riqueza do mundo dos ‘selvagens’, um lugar onde a consciência sobre o sabor de possuir bens materiais ainda não chegou. Seriam terras inteiras à disposição de espólios e, se bem soubessem fazer, ainda seriam os próprios nativos a carregar até seus navios o que bem entendessem de levar.
A hoje conhecida e decadente Europa deve a todos os cantos do mundo uma resposta prática aos seus saques. Exigimos uma devolutiva de nossos valores, isso que para eles são acervos etnográficos que constam em seus museus como peças exóticas. É apenas uma das medidas que exigimos de uma série de reparos históricos que precisam ser feitos.
O entendimento sobre o valor maior desses símbolos retornando para seus locais de origem certamente é uma força reversa ao ato sanguinário de tê-los levado sob condições escusas. No campo da cosmologia, que para nós não se distingue da vida plena, seria uma cura para feridas profundas abertas e assim deixadas por onde se infiltram no organismo maior bactérias como as que causam pandemias como as de agora.
Essa continua sendo essencial. Alguém continua a explorar, escravizar, a impor como um marco histórico. Ainda hoje esse mapa de exploração se mantém em efeito mesmo que o modus operandi dos ataques, a sua distribuição geopolítica, tenha se diversificado e a Europa tenha se perdido em si mesma. A imaginação de se criar um mundo imperial dominante ainda permanece.
Essa ideia de ter sempre um lugar de onde se explorar, e que uma vez retirado o bem não pertence a mais ninguém senão aos novos donos, e que o resto do mundo está longe demais para chegar a reaver algum valor, ainda se mantém. Que a esse mundo só se vai quem é levado, e não pode ser para propagar ideias de retomada ou algo do tipo que fuja aos seus critérios de necessidade de manutenção de domínio e supremacia; racial, inclusive.
Junto com os navios vieram os homens da fé, a lei suprema para a unificação da humanidade em uma crença só, mesmo que para tal fosse preciso a guerra santa. E assim foi feito. A colonização pela fé é uma forma das mais nefastas pois sobre ela ainda pesa a força da violência bruta. A inquisição queimou vivo muitos mestres, curandeiros e magos diante daqueles de quem deles dependiam.
Para o invasor a nossa forma de viver era improdutiva. Era inconcebível que uma sociedade vivesse sem cultuar um deus representado. A elevação de uma cruz como símbolo acima de um prédio sacramentava a ordem de mudar uma lógica de plenitude. Desde acreditar que nós não cultuávamos a fé, a saber que a nossa fé estava distribuída em igualdade com cada tipo de planta, animais ou fenômenos naturais também não os fez considerar.
O fato é que ainda hoje precisamos iconografar nossas lutas para que elas sejam visibilizadas. Que ainda hoje temos que tecer verdadeiras odisseias para alcançar os “púlpitos” que são o que chamam de lugar de fala ou o lugar da expressão. Mesmo ainda sendo uma produção tida como menor, uma produção de periferia ou de minorias, são as artes dos nativos a lhe ampliarem as vozes e isto deve constar como práticas decoloniais.
Nossas publicações navegam em ritmo próprio e percebo que temos avançado ao passo que nos dedicamos a intensificar nossos estudos naqueles dois territórios que citei acima. O território de nossa ocupação milenar e o território cosmogônico, esse que está ainda mais fragmentado, mas que temos buscado recuperar com o pouco acesso que temos tido às nossas medicinas tradicionais, como a bebida que ganhou o mundo com o nome de , por exemplo.
Mesmo este exercício não tem sido fácil e sobre ele ainda pesa a discriminação, pesa o desconhecimento ou a malícia das milícias que sabem que com esses acessos podemos intensificar nossas contra-narrativas. Então o jogo sujo incorre sobre essas práticas e em alguns países se estabelece a criminalização. Essas pesquisas com as medicinas tradicionais acabam ficando a cargo de cada indivíduo, pois ainda vêm cercadas de efeitos coloniais, uma vez que estão paralelizadas com a ideia de uma religião dogmática, portanto, restritiva e hierárquica. O meu povo vem de uma tradição própria.
Para nós, somos parte de um todo maior e a falta de simbologias não faz sentido, pois temos em nossos territórios evidências materiais de nossa origem e continuação. O contato de nossos antepassados com os primeiros pesquisadores europeus foi marcado exatamente por essa condição. Foram devidamente apresentados a eles os nossos deuses, semideuses e entidades gerais que nos mantiveram até ali dentro de um sentido de equilíbrio e plenitude.
Há notícias vagas sobre a ida de alguns chefes de nossos povos até a Europa, uma viagem que, claro, foi mais vantajosa para o espetáculo deles que para nossa missão em ir investigar aquele mundo. Mesmo não tendo o efeito esperado, posso acreditar que essa viagem ao além-mar, na embarcação deles, tenha sido uma atitude de muita coragem por parte de meus antepassados.
Iniciaram eles então há alguns séculos o exercício de se aventurar no mundo dos estrangeiros usando suas próprias estruturas. É o que acredito estar fazendo exatamente agora, ao construir este texto para uma publicação acadêmica, na forma como ela se abre, que não deixa de ser um convite a viver uma aventura arriscada no mundo do conhecimento epistemológico dominador ainda eurocêntrico.
O exercício de passear por essas memórias tendo nelas o meu referencial bibliográfico me assegura usufruir de outros métodos. Seria uma extensão da prática da oralidade, embora eu tenha, por estratégia, que usar a língua culta do colonizador.
Não me sinto em débito por não lhes trazer em nota de rodapé nomes, datas e circunstâncias, mas convido a considerar a minha assinatura como representante de um povo que ainda preza pela validade da coisa narrada. Se este texto não coubesse na linha editorial, desta forma, saberíamos que as aberturas para as práticas de performances decoloniais nos ambientes e espaços acadêmicos ainda não seriam uma realidade mínima.
A conclusão é que nada há de concluído. Nem a colonização conseguiu nos exterminar, nem reunimos elementos consistentes para nos aventurar com desenvoltura no intermeio de mundos tão opostos, mas estar vivo e tentando é a nossa grande conquista.
Publicado originalmente no blog de Jaider Esbell em 9 de agosto de 2020
Revisão: Parmênio Citó/Paula Berbert
Foto: Salissa Rosa.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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