Bariani Ortencio: Masterchef goiano

Bariani Ortencio: Masterchef goiano

Ao completar 91 anos de idade, Bariani Ortencio escreve uma coluna semanal em jornal, faz compras em supermercado, está publicando novos livros e passa os dias em seu escritório-biblioteca recebendo quem o procura. É uma rotina de mais de 70 anos desse paulista que virou goiano da cepa desde o início da construção de Goiânia.

Por Jaime Sautchuk 

Waldomiro Bariani Ortencio é conhecido pela sua produção intelectual, onde revela a verve afiada de pesquisador e escritor ou a sensibilidade de autor musical, dependendo do ambiente. Entre seus mais de 40 livros publicados estão preciosidades indispensáveis a qualquer biblioteca ou universidade que pretenda debater e difundir conhecimentos sobre o Central.

Sua trajetória de vida é, ela própria, repleta de belas histórias. Sua família tinha madeireira em Igarapava, cidade paulista colada em , e vinha se debatendo com a escassez de madeira pra serrar naquela região. Era preciso mudar, mas, pra onde, ninguém sabia direito. Pesquisas em cidades do Sul e Sudeste prometiam, mas tudo apontava ao Centro-Oeste, onde Goiás construía uma nova capital. Eram muitas as vantagens oferecidas a empreendedores.

Corria o ano de 1938 quando a família chegou ao canteiro de obras, uma aventura e tanto, como muitos amigos previam. O rapaz deixava a tesoura de alfaiate que usava numa das iniciações profissionais que tivera em sua terra, sem lamentações. Entretanto, uma perda por ele lamentada era a dos jogos de futebol, como ele lembra:

– Eu tinha só 15 anos, mas jogava com os adultos lá na minha cidade, por causa do corpo avantajado.

Mas a tristeza pela falta dos amigos da bola durou pouco. Dias depois de ter chegado, Bariani ouviu gritos e barulhos típicos do futebol e foi ver o que era. Por , era o treino do Atlético Goianiense, time que nasceu com a cidade, e por mais sorte ainda ele ouviu o técnico reclamar que o goleiro havia faltado ao treino. De pronto, ele gritou:

– Eu sou goleiro!

O técnico mirou o candidato de cima a baixo, aparentou ter sentido firmeza e perguntou de onde ele era. Diante da resposta de que tinha acabado de chegar de , o treinador ordenou ao auxiliar:

– Coloca esse paulistinha aí, no gol.

Pronto, ganhou uma vaga, e um apelido também. E assim o goleiro Paulistinha jogou por dez anos no time. O apelido agradou os locutores de rádio e a torcida, tornando-se um símbolo do futebol goiano.

Todavia, ele não vivia do futebol. Cursou o segundo grau no Liceu de Goiás, colégio referência no estado, mas nunca concluiu nenhum curso superior, por considerar que suas outras atividades dispensavam esse esforço. Lecionou Matemática e outras disciplinas em várias escolas dos aglomerados humanos que se formavam.

Virou, em verdade, uma espécie de universidade ambulante, sempre disposto a difundir as informações que lhe chegam às mãos, muitas buscadas com dificuldade, e denodo. Um grande número de escolas, bibliotecas e logradouros públicos hoje levam seu nome, apesar de sua aversão a homenagens desse tipo a pessoas ainda vivas. E são incontáveis as comendas, títulos e medalhas com que já foi agraciado.

Impossível, também, é citar alguém que tenha se dedicado às artes – e em especial – em terras goianas, nas últimas sete décadas, que não tenha cruzado com Bariani em algum momento, quase sempre pra lhe pedir algo. E ninguém sai de mãos abanando, seja qual for sua orientação ou ideológica. “Meu negócio é somar, nunca dividir”, diz, justificando seu desprendimento.

Muitos escritores e músicos famosos Brasil afora já desfrutaram de sua amizade e de sua sempre generosa ajuda. Bernardo Élis, por exemplo.

Ele lembra, aliás, que um de Élis, o mais famoso, foi escrito em forma de romance, com o título “São Miguel e Almas”. Houve enorme rebuliço entre membros da família de Bernardo, que o acusavam de contar histórias privadas, de modo que ele sustou a obra. Mas, de novo, a paciência de Bariani ajudou o autor a refundir o texto, que virou vários contos e recebeu o nome de um deles, “Veranico de Janeiro”.

Ainda bem jovem, em 1945, Goiânia já estava consolidada e clamava por ideias criativas que movimentassem a economia e ocupassem as pessoas. Bariani conta que avaliou suas vontades, suas aptidões e as possibilidades de algum negócio rentável. Assim, emprestou o nome de seu alterego desportista e fundou o Bazar Paulistinha, uma loja de instrumentos musicais, discos, livros e tantas coisas mais, que virou uma poderosa rede comercial em Goiás e Minas Gerais.

A loja principal, porém, no centro da capital goiana, passou a ser um importante ponto cultural, lugar de encontro de artistas e produtores locais e do Brasil inteiro. É citada em músicas de grande sucesso nacional, como “Saudade de Minha Terra”, de Goiá e Belmonte, e “Pagode em Brasília”, de Teddy Vieira e Lourival dos Santos, em que é tratada como “bazar do Waldomiro”, pra não ser considerada peça publicitária.

Por falar nisso, no dia de inauguração da nova capital federal, em 1960, a música “Brasília, 21 de Abril” virou hino da cidade, cantada por todos. Seu autor: Bariani Ortencio. Mas ele não dá tanto valor a esse fato, talvez porque seja apenas mais uma dentre as setenta e tantas músicas de sua autoria gravadas por diversos artistas famosos.

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Também é dessa época a espaçosa casa em que ele ainda hoje mora, na Praça Cívica, o coração de Goiânia, dividindo território com as sedes dos governos estadual e municipal. O pátio na parte posterior da habitação é um verdadeiro centro cultural, com biblioteca, exposição de fotos históricas e amplo espaço pra eventos.

Entretanto, a presença maior do ex-Paulistinha no cenário cultural brasileiro talvez esteja em suas obras de pesquisa, todas volumosas, que revelam grande fôlego ao dissecar a vida humana nesta região do país. “Cozinha Goiana”, lançado em 1967, com reedições sucessivas desde então, é muito mais que um livro de . É um verdadeiro tratado antropológico que revela um povo através da sua variada comida.

No mesmo rumo, ele editou pela primeira vez em 1994 o “Medicina Popular do Centro-Oeste”, que navega pela crendice e pela sabedoria que vêm do indígena nativo, do caboclo, do escravo e de outros imigrantes. Ou o premiado “Cartilha do Folclore Brasileiro”, de 1997. E coroa tudo como uma edição nova, reformatada, do clássico “Dicionário do Brasil Central”, editado pela primeira vez em 1984.

Ao chegar a uma idade mais avançada, Bariani segue lépido e fagueiro, produzindo novos trabalhos e propondo outros. Ele acaba de lançar, por exemplo, um pequeno livro em que resume as principais polêmicas que travou, na mídia, em sua trajetória, e que vai dar o que falar. E ri do que ganha escrevendo na imprensa hoje em dia.

Bariani orgulha-se de nunca ter dependido de dinheiro público, pois sempre foi bem-sucedido nos negócios, que incluem fazenda de lavouras e bois e empresa mineradora. Além, é claro, do Bazar Paulistinha, que ainda hoje marca presença na Avenida Anhanguera, próximo ao Teatro Goiânia, sob os cuidados dos três filhos homens – teve também três filhas e uma batelada de netos e bisnetos.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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