BIBIANA ESTÁCIA, 112 ANOS: A DOCE MATRIARCA DE VILA BOA DE GOIÁS
Com nossa gratidão para José Ivan,
que nos apresentou Dona Bibi,
e para Carlinhos do Baru,
que facilitou nosso feliz encontro com dona Bibiana
Por Maria Letícia Marques e Zezé Weiss
No sábado, dia 15 de fevereiro deste ano da graça de 2025, Bibiana Estácia de Oliveira, a anciã mais idosa da Associação Quilomboa (Associação dos Remanescente de Quilombos de Vila Boa), completou 112 anos de vida. Para a festa, realizada no domingo, dia 16, dona Bibi, como é carinhosamente chamada, exigiu fartura, “pra alimentar todo mundo que chegasse”, e, de cardápio, carne assada e maionese, seus pratos favoritos.
Atenta e lúcida, sobre a festa, dona Bibi dá notícias de tudo, de quem veio – de Vila Boa, de Formosa, de Goiânia e até do Rio de Janeiro – e de quem, pelas diversas razões que lhe explicaram, não pôde estar presente. Espirituosa, conta nos dedos o povo que já confirmou presença para os 113 anos, “se é que eu chego lá”, completa bem-humorada.
Com seu inseparável lenço na cabeça, sentada em uma confortável cadeira de plástico branca, no beiral da varanda de sua casinha com janelas azuis e paredes sem pintura, em uma rua serena da cidadezinha de Vila Boa de Goiás, sede do município, localizada no quilômetro 147 da Rodovia BR-020, boa de prosa, Bibiana Estácia vai desvelando o novelo de sua longa vida.
Nasci por aqui mesmo, por essas beira do rio Canabrava, na zona rural do município. Pai, eu tive, mas não cheguei a conhecer. O nome dele era Militão, mas morreu bem cedo, quando minha mãe ganhou eu, ele já tinha morrido.
Fui criada entre mulheres, por minha mãe, Tiburtina, que era chamada de Tiburça, e por minhas tias, Maria Gorda, Bibiana, Lisbina e a velha Joana; eu me lembro delas todas, eram mulheres muito festeiras.
Com elas, eu ia em festa, folia, ia em tudo, ia numa reza, ia em outra. Minha mãe também ia. Minha mãe era rezadeira. Aí ela ia e levava eu, antes de eu casar. E mesmo depois que eu casei, eu ainda ia nas festas, nas rezas.
A roupa, a gente lavava com sabão de tingui. Pegava aquelas frutas, descascava, botava pra pubar, depois botava na dicuada e fazia o sabão. Era bom, a muiezada fazia muito sabão de tingui pra lavar roupa, às vezes vendia, a roupa ficava alvinha, lavada na beira do rio.
O tingui (Magonia pubescens), amplamente utilizado na fabricação artesanal de sabão na juventude de dona Bibi, continua sendo uma prática tradicional passada de geração em geração. Suas sementes contêm saponinas naturais, que geram espuma e possuem propriedades detergentes, permitindo a produção de um sabão biodegradável e ecológico, ainda hoje muito apreciado pelas famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais da região.
Remédio, dona Bibi conta que era só de ervas do Cerrado. “Era remédio do mato que a gente arrancava. Não tinha negócio de remédio de farmácia, não. Era remédio do mato que curava e o povo era mais sadio. Fazia chá de um, fazia chá de outro, fazia tintura, tudo caseiro, tudo sem veneno.”
VIDA NA ROÇA

Casar, eu casei bem moça, mas do ano eu não me lembro. Com meu marido, morei muitos anos na roça, criando vaca, porco, galinha, até uns carneiros, e plantando e colhendo de tudo um pouco. Tivemos três filhos, o Roseno, o Jonas e o outro, que morreu novinho (recém-nascido).
A comida de primeiro, lá na roça, era muito deferente, era comida boa, não tinha essa coisa de botá veneno no alimento da gente. A gente comia feijão, arroz, carne de gado, e verdura era a que nóis plantava. As carne, nóis secava no sol. O peixe, fora o pescado pra comê na hora, também era seco.
Nós matava a vaca e botava as carnes todas pra secar, aí, depois de seca, a gente guardava. Era mês e mês nós comendo aquela carne, cozinhada no sebo de gado ou na gordura de porco. Não tinha esse negócio de óleo, não. Fritava sebo e botava na vasilha para temperar de comer. Carne de porco a gente fritava e botava nas lata. E fazia muita linguiça, a gente tinha costume de fazer linguiça e chouriço.
Isso sem dizer que a gente usava muito tutano na comida [substância gordurosa e gelatinosa encontrada no interior dos ossos longos de mamíferos, principalmente de gado, sendo uma rica fonte de colágeno, ácidos graxos essenciais, vitaminas e minerais como ferro e fósforo], aí nós botava no feijão, nós misturava no arroz, comia, o povo era mais forte.
E o café, o café nosso era adoçado com rapadura. Era rapadura, não tinha açúcar, rapadura feita em casa. A gente tinha o costume de fazer essas coisa toda. Tudo sem veneno. Hoje por umas coisa ficou mió, dá pra comprá quase tudo na venda, mas pra saúde não tá valendo de nada.
VILA BOA DE GOIÁS
E dona Bibi segue desfiando o novelo:
Sempre fui do Goiás, por muito tempo andei zanzando por essas barranca do Cana-brava. Depois que minha mãe morreu, nós saiu caminhando pra riba e para baixo, morava num canto, morava num outro. Mas chega um tempo em que a gente tem que quietá, e então apareceu essa Vila Boa e nós viemo pra cá. Meu marido era vivo, ainda, e nós viemo junto.
Isso foi no tempo da construção da rodovia (nos anos 1960). Quando cheguei, por aqui não tinha casa, não tinha nada, era só mato, só Cerrado. Aí nós ia pra Santa Rosa, pra Formosa, comprar trem pra comer. No começo, a vida aqui em Vila Boa pra mim ficou difícil, porque perdi meu marido, atropelado na rodovia.
O povo que tava trabaiando na poeira da estrada, ainda não tinha asfalto, sempre avisava pra gente tomá cuidado, que as máquina era perigosa. Mas acabou acontecendo, fiquei viúva, com dois filho pequeno pra criá.. Depois disso, não quis saber desse negócio de casamento mais não.”
Aqui em Vila Boa fui fazendo amizade, conheço todo mundo, meus filhos cresceram, casaram, formaram família, me deram sete netos e uma quantidade de bisnetos. A maioria mora por aqui mesmo, mas também tem gente minha morando em Formosa e em Goiânia.
Hoje, com 112 anos, eu ainda durmo sozinha, mas minha neta mora aqui do lado e tem uma moça que arruma a casa pra mim. De manhã cedo, eu mesma faço o meu chá, é só colocá o saquinho comprado no mercado na água quente, mas já tem uns anos que trazem comida pra mim, que não me deixam fazer meu arroz, diz que é pra eu não me queimar.
POR QUE UMA VIDA TÃO LONGA?
As razões da longevidade, dona Bibi explica:
Primeiro, porque Deus qué, é Deus que tá me segurando, muié. Depois, porque eu gosto muito de vivê. Hoje tenho a vista fraca, escuto pouco, pra andá preciso da bengala, e pra dormir é difícil, o meu corpo dói muito, dói inteiro.
Mas, tirando essas coisa, comparada com muita gente, minha saúde ainda é boa e eu vou fazendo a minha parte: antes eu fumava um cachimbo, um cigarrim de paia, e gostava bem dum café. Hoje eu nem bebo, nem fumo, e já faz tempo que larguei do café.
Eu acho também acho que tô durando esse tanto porque fui criada comendo muita comida de roça, muita comida boa, sem veneno. Hoje planta mandioca, bota veneno, planta arroz, bota veneno, planta verdura, bota veneno, e vai tudo pro intestino, pro osso e pro sangue. O povo adoece rápido e acaba morrendo cedo.
Então é isso, minhas fia, eu hoje levanto cedo, tomo meu solzinho, converso com as visita [tem sempre gente chegando na casa de dona Bibi], depois eu almoço, descanso, depois proseio mais um pouco, e assim vou tocando a vida, até quando Deus quisé. Vô pisando devagarinho, mas ainda estou de pé!

Maria Letícia Marques – Funcionária pública. Estudante de Direito. Voluntária da Revista Xapuri.
Zezé Weiss – Jornalista. Editora da Revista Xapuri.
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