CANAL DO PANAMÁ: DINHEIRO POR BAIXO E POR CIMA

Canal do Panamá: Dinheiro por baixo e por cima

Do Alasca à Patagônia; de polares, temperados, equatoriais e tropicais; de taigas, pradarias, desertos, florestas, cerrado, e estepes; de rios, montanhas, planícies e planaltos; de povos originários e contemporâneos; de ricos e pobres – uma América somente, lindamente um bloco de  terra continental de quase duas dezenas de milhares de quilômetros, mas rompido por um canal.

Por Antenor Pinheiro

O Canal do Panamá é este momento de fratura continental, liderado, financiado e administrado pelos sucessivos governos intervencionistas dos Estados Unidos.

Os interesses geopolíticos e a ganância econômica ganharam forma quando a região ainda era território colombiano (1902), o que culminou com a proclamação da independência do Panamá (1903), resultado manipulado e forjado pelos EUA e as grandes corporações capitalistas que estimularam os movimentos separatistas daquele país com esta finalidade.

Consolidou-se a doutrina do big stick que transformou o país em protetorado dos EUA, mirou a parte sul do continente e ainda ameaça a Amazônia.

Da cirurgia imposta ao solo, o corte profundo da conexão terrestre que juntava toda a América resultou no surgimento da Puente de las Americas (1962) – também obra estadunidense, por 42 anos, a única ligação rodoviária permanente entre as duas margens do canal. Agora o dinheiro passaria por baixo… e por cima!

Antenor Pinheiro – Geógrafo. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. Foto: Agência Matarazzo. 

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Navio em porto do Canal do Panamá

Crédito,Getty Images – Legenda da foto,Hidrovia inaugurada há mais de um século foi ampliada em 2016

Inaugurado há mais de um século, em 15 de agosto de 1914, o Canal do Panamá foi a maior obra de engenharia de sua época – e uma das mais ambiciosas de todos os tempos.

A passagem, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, encurtou as rotas marítimas entre portos em diversas regiões e revolucionou o comércio mundial.

Mas seu impacto vai muito além do transporte marítimo de cargas.

Da independência do Panamá da Colômbia e o desenvolvimento da ilha caribenha de Barbados ao nascimento da empresa de aviação Boeing no noroeste dos Estados Unidos, a empreitada gerou uma série de consequências inesperadas, destaca Noel Maurer, um dos autores do livro The Big Ditch (“O grande fosso”, em tradução livre), que conta a história política e econômica do Canal do Panamá.

Conheça, a seguir, cinco delas.

Imagem em preto e branco de duas embarcações trafegando no canal do Panamá

Crédito,Getty Images – Legenda da foto,O Canal do Panamá foi inaugurado no dia 15 de agosto de 1914

1. Um novo país na América Central

O Panamá foi, por muito tempo, uma província da Colômbia. Sua independência se tornou realidade em novembro de 1903, graças ao interesse norte-americano pelo projeto do canal.

O governo dos Estados Unidos já havia adquirido os direitos da companhia francesa, proprietária da primeira concessão, mas não conseguia chegar a um acordo satisfatório com as autoridades colombianas.

O presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919) decidiu resolver o impasse apoiando as pretensões de independência dos habitantes da região, que retribuíram o favor rapidamente com um novo acordo, bastante generoso.

Bandera de Panamá

Crédito,Getty Images –Legenda da foto,O interesse norte-americano pela construção do canal foi fundamental para a independência do Panamá

“Não existe nada que indique que, se os Estados Unidos não tivessem ancorado seus navios nas duas costas do Panamá, impedindo a chegada das tropas colombianas, o movimento pela independência do Panamá teria sido bem-sucedido”, explica Maurer.

“E é quase 100% certo, tão certo quanto possível ao analisar os documentos históricos, que, se os Estados Unidos não tivessem tomado esta decisão, o Panamá ainda hoje faria parte da Colômbia”, declarou o acadêmico à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

As análises de Maurer em seu livro indicam, entretanto que o novo país por muito tempo não se beneficiou especificamente do canal escavado no seu território. Foi apenas com a entrega da hidrovia ao Estado panamenho, no dia 31 de dezembro de 1999, que a obra passou a ser um verdadeiro motor de desenvolvimento para a nação centro-americana.

Além da receita direta (mais de US$ 8,59 bilhões – cerca de R$ 53 bilhões, do ano 2000 até hoje), o canal gera inúmeras oportunidades.

2. Progresso para uma pequena ilha do Caribe

Os números compilados por Maurer indicam que, surpreendentemente, o maior beneficiário da construção do Canal do Panamá fica a cerca de 2,3 mil km de distância para o leste, na ilha de Barbados.

Segundo dados do Banco Mundial, a ilha tem um PIB per capita de cerca de US$ 24 mil (cerca de R$ 148 mil), muito acima dos seus vizinhos do Caribe, como a Jamaica e o Haiti.

Isso se deve, em grande parte, à construção do canal. Foi em Barbados que os Estados Unidos encontraram a mão de obra necessária para levar adiante seu ambicioso projeto.

Vista de Barbados
Legenda da foto, A ilha caribenha de Barbados possui um dos maiores PIBs per capita da região – em parte, graças ao Canal do Panamá

A obra contratou cerca de 19,9 mil barbadenses. Eles representaram 44% de toda a mão de obra empregada na construção.

É preciso somar a este número cerca de 25 mil pessoas que emigraram da ilha por conta própria. Na época, a população total de Barbados era de pouco mais de 150 mil habitantes.

A prosperidade chegou à ilha não apenas com as remessas de dinheiro enviadas pelos emigrantes. Houve também impactos sobre o mercado de trabalho local.

Foi preciso começar a pagar melhores salários, incorporar as mulheres e modernizar a indústria açucareira, que é a principal atividade econômica do país.

Para Maurer, uma consequência significativa foi o dramático aumento do número de pequenos proprietários e o rápido crescimento do setor bancário da ilha.

O “dinheiro do Panamá” também ajudou a consolidar a previdência social de Barbados. Em 1921, o sistema já cobria 94% da população e serviu para aumentar significativamente seu nível educacional, transformando a ilha para sempre.

3. Campanha modelo de saúde pública

A tecnologia e o projeto mais adaptado à complexa geografia panamenha não foram os únicos fatores que permitiram aos Estados Unidos triunfar no local onde os franceses já haviam fracassado.

Foi igualmente importante sua capacidade de eliminar a malária e a febre amarela, que dizimaram os trabalhadores da malograda empreitada francesa.

O médico cubano Carlos Finlay (1833-1915) já havia identificado, alguns anos antes, o vínculo entre os mosquitos e as doenças. E os princípios de controle do contágio foram colocados em prática em Cuba durante a guerra hispano-americana de 1898.

Mas foi o sucesso da sua aplicação no Panamá que permitiu ao modelo atingir visibilidade mundial.

Foto em preto e branco de trabalhadores na obra da construção do Canal do Panamá

Crédito,Getty Images – Legenda da foto,Mais de 25 mil pessoas morreram durante a construção do canal, a maioria de febre amarela

Os números falam por si. Estima-se que tenham morrido, ao todo, 25.609 pessoas durante os trabalhos de construção do Canal do Panamá.

Destas, 22.819 mortes ocorreram durante a administração francesa. A maioria foi causada pelas mesmas doenças que os Estados Unidos viriam a combater de forma eficaz posteriormente.

O mérito se deve fundamentalmente ao epidemiologista norte-americano William Gorgas (1854-1920). Ele já havia sido destacado para Cuba anteriormente e foi encarregado de projetar a campanha de saúde pública mais ambiciosa da época.

Para Maurer, o esforço para erradicar a malária e a febre amarela seria o principal benefício do projeto para o Panamá, depois do próprio canal. E as lições aprendidas no processo foram levadas para todo o mundo.

4. Um império… da aviação

Não é segredo que, desde o princípio, os Estados Unidos conceberam o Canal do Panamá como uma peça fundamental para sua consolidação como potência mundial, no plano econômico e militar.

Os números reunidos por Maurer indicam que o canal não foi um fator fundamental para a expansão norte-americana no início do século 20 – embora os Estados Unidos tenham recebido a maior parte dos seus benefícios financeiros, equivalentes a 0,2% do Produto Interno Bruto anual, nas duas primeiras décadas.

Mas o canal trouxe efeitos transformadores para algumas regiões do país, especialmente o noroeste, que aumentou consideravelmente o mercado interno para sua produção de madeira.

Estes lucros permitiram que William Boeing (1881-1956), então presidente de uma madeireira no Estado norte-americano de Washington, fundasse e mantivesse uma pequena empresa aérea nos seus primeiros anos de operação.

Prédio da sede da Boeing

Crédito,Getty Images – Legenda da foto,A gigante da aviação Boeing, de certa forma, é fruto da construção do Canal do Panamá

“Na época da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], a Boeing já havia alterado radicalmente a economia de Seattle”, explica Maurer.

“Sem o Canal do Panamá, toda a região do noroeste dos Estados Unidos e uma parte importante do Canadá teriam se desenvolvido com muito mais lentidão, de uma forma muito diferente do que aconteceu.”

5. Aproveitar o crescimento da China

Seattle não é o único exemplo de uma região transformada graças ao Canal do Panamá. E os benefícios da sua construção também não se limitaram aos Estados Unidos.

O Chile e o Japão, por exemplo, estão entre os primeiros favorecidos. Isso se deve à redução dos custos de transporte dos seus produtos até a costa leste dos Estados Unidos e, em menor escala, ao litoral atlântico da Europa.

O canal também é utilizado por países como o Brasil e a Argentina, além de certas regiões dos Estados Unidos.

“A demanda de carvão, por exemplo, diminuiu muito nos Estados Unidos”, segundo Maurer.

“Mas o Canal do Panamá permite que muitas regiões produtoras de carvão exportem seu produto para o leste asiático. Não é o melhor para o planeta, mas é bom para as mineradoras do leste dos Estados Unidos.”

Vista aérea de Shanghai, na China

Crédito,Getty Images – Legenda da foto,O canal permitiu que a América Latina se beneficiasse do boom econômico da China

O impacto do canal sobre produtos como a soja brasileira não é tão significativo, já que as necessidades da China garantem a demanda, independentemente do canal.

Mas Maurer acredita que os custos que precisariam ser cobertos se o canal não existisse teriam reduzido e desacelerado a demanda por commodities que tanto beneficiou a América Latina.

“Não podemos dizer que, sem o Canal do Panamá, as coisas seriam totalmente diferentes, mas muitas mudanças certamente teriam ocorrido com mais lentidão”, conclui o acadêmico.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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