Canção para os fonemas da alegria
A Canção para os Fonemas da Alegria, escrita por Thiago de Mello em 1964, faz referência ao trabalho do educador pernambucano Paulo Freire, que se juntaria ao exílio chileno do poeta em novembro do mesmo ano.
Por Thiago de Mello
Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente, para desfraldar
este canto de amor publicamente.
Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.
Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,
e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas
são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis girando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.
Às vezes nem há casa: é só o chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:
porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,
e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão
que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena que paga por ser homem,
mas um modo de amar – e de ajudar
o mundo a ser melhor. Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:
ele atravessa os campos espalhando
a boa-nova, e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte,
contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.
Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:
canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.
Santiago do Chile, verão de 1964
MELLO, Thiago de. In: Faz Escuro Mas eu Canto – Porque a Manhã Vai Chegar. Poesias, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965.

A Canção para os Fonemas da Alegria, escrita por Thiago de Mello em 1964, faz referência ao trabalho do educador pernambucano Paulo Freire, que se juntaria ao exílio chileno do poeta em novembro do mesmo ano. Hoje, o texto abre as edições de Educação como Prática da Liberdade, primeiro livro de Freire, concluído um ano depois de sua chegada ao Chile e obra embasadora de seu pensamento.
O livro, publicado no Brasil em 1967, retoma reflexões já propostas na tese Educação e Atualidade Brasileira, com a qual o Freire concorrera, em 1959, à cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife.
“Podemos afirmar, sem desconhecer a importância dos textos anteriores do autor, que se propõe aqui pela primeira vez uma visão global de suas ideias pedagógicas”, afirma Francisco Weffort no ensaio “Educação e Política”, que prefacia a obra desde sua primeira edição.
O primeiro grande trabalho do educador pernambucano lança, de fato, as linhas mestras da visão freiriana sobre o ser humano, sobre o Brasil e o momento histórico que se constituía até o Golpe, sobre a natureza e os limites da prática educativa e finalmente sobre o método de alfabetização que ele próprio criou.
CONSCIENTIZAÇÃO
Até poucos meses antes do exílio no Chile, Freire, aos 43 anos, coordenava experiências inovadoras de alfabetização de adultos iniciadas em Angicos, cidadezinha do RN, e sistematizadas sob o rótulo de “método Paulo Freire”. Enquanto isso, conduzia as primeiras fases do Programa Nacional de Alfabetização, que pretendia estender o método pelo País inteiro multiplicando-o em 20 mil núcleos, os “Círculos de Cultura”, ainda no ano de 1964.
O governo instaurado com o Golpe Militar de 31 de março de 1964 tratou de extinguir o Programa logo no dia 14 de abril. Freire foi preso em 16 de junho e permaneceu 70 dias detido. Uma vez liberto, em setembro partiu para um exílio que passaria também pelos EUA e pela Europa e duraria até 1980.
Representando uma interrupção abrupta em sua prática, a detenção e a saída do Brasil possibilitaram, por outro lado, a primeira oportunidade de teorização profunda da experiência que se acabava de realizar. A redação de Educação como Prática da Liberdade foi iniciada durante as prisões de 1964 e concluída e publicada no Chile em 1965.
Seu primeiro capítulo, “A Sociedade Brasileira em Transição”, inaugura a reflexão de Freire sobre o processo de conscientização, conceito chave em toda a sua obra. Desenhando um percurso esquemático, Freire descreve a passagem de uma consciência primitiva, “intransitiva” – sem enraizamento nas causas materiais e históricas da realidade, e portanto sem reverberação no mundo – para a transitividade – a percepção das implicações e relações que se desenham entre os seres humanos e seu mundo e suas criações e entre si próprios.
Essa primeira figura da “consciência transitiva” é, no entanto, ingênua: não pôde se apropriar ainda dos instrumentos racionais que lhe apresenta o mundo letrado e urbano para que, ao investigar, questionar e compreender seu mundo, se torne crítica.
É só nessa última condição que a consciência se fará “permeável”, aberta ao diálogo e à interação com as mudanças, e portanto pronta para, coletivamente, alicerçar uma sociedade democrática, sempre movente em direção à “vocação ontológica do ser humano de ser sujeito” de suas opções individuais e históricas.
Texto: Planeta Sustentável. Imagens: Reprodução/Internet.
