Cerrado: A constelação do meio-dia

Cerrado: A constelação do meio-dia

Dedicado ao jornalista

Por Altair Sales Barbosa

Podemos afirmar que até o ano de 1950 o Cerrado se nos apresentava ainda de forma intacta, com todos os seus matizes, e cobria de forma continua mais de 2 milhões de quilômetros quadrados do território nacional, abrangendo terras do oeste da Bahia, noroeste e norte de , Goiás, Distrito Federal, Tocantins, Piauí, parte do Maranhão, Mato Grosso do Sul e grande parte de Mato Grosso.

De forma descontínua, esse ambiente poderia ser ainda encontrado nos tabuleiros do Nordeste, em Rondônia e na Chapada Diamantina, na Bahia. Era um sistema em equilíbrio, onde seus variados subsistemas interdependentes, flora, , solo, recursos hídricos, processos atmosféricos e outros nos maravilhavam a visão, como se fosse uma grande constelação, numa noite sem luar.

Porém, os processos surgidos pós segunda mundial, para aproveitamento da grande quantidade de produtos químicos e sucatas de diversos tipos de maquinários, mangueiras, canos , motores diversos,  caminhões, aviões, tratores ou tanques,  que pudessem ser adaptados e  aproveitados,  incentivaram a criação de centros de pesquisas em países que funcionaram como cobaias (,  Ceilão e ), para aproveitar esses  restos que a guerra legou e transformá-los em insumos agrícolas que pudessem ser aplicados em grandes extensões de terras, geralmente improdutivas, do ponto de vista da economia mundial, e torná-las produtivas.

Dessa forma, o primeiro clarão se voltou para as terras iluminadas do Planalto Central Brasileiro. Os mecânicos e engenheiros logo fizeram as adaptações necessárias e mostraram utilidades para suas novas peças.

Com os motores, canos, mangueiras, criaram sofisticados sistemas de irrigação, pois a água era abundante. Com os veículos militares, criaram possantes tratores e, com outras sucatas, criaram grandes e encorpadas correntes que, junto com máquinas pesadas, operaram milagres, no que se refere à retirada das vegetações nativas de porte arbóreo. 

Os pesquisadores das áreas da agronomia, química, , com muito brilhantismo transformaram os produtos químicos em adubos, inseticidas, herbicidas etc. Descobriram que seria necessário diminuir a acidez do solo, mas como a região tem muito calcário, nas vizinhanças, essa foi uma tarefa fácil.

Não tão fáceis foram os estudos e pesquisas para criarem mecanismos adaptativos para plantas exóticas, com possibilidades de se ajustarem às exigências ecológicas de um novo ambiente. Mas, com centros de excelência criados e muito recurso do capital internacional e nacional, os pesquisadores logo mostraram suas habilidades para resolver esses problemas e rapidamente encontraram as soluções. E com muita mecanização, insumos e água em abundância, os frutos da grande produção surgiram.

Infelizmente, o brilhantismo dos pesquisadores só cintilava em um olho, aquele que vislumbrava a produtividade. O olho do conhecimento global do ambiente esteve sempre fechado. Este fato restringia ao pesquisador a possibilidade de ver a realidade como um sistema dinâmico, cujas partes devem estar em constante interação de equilíbrio, para evitar as entropias, pois estas, uma vez desencadeadas, podem provocar situações incontroláveis. Não vislumbraram sequer a preservação das áreas estratégicas, como aquelas ligadas às recargas dos aquíferos.

Entretanto, quem tem muito quer sempre mais; então, os detentores dos meios de produção exigiram dos governantes a criação de suporte de infraestrutura, surgiram estradas, postos de abastecimento e serviço, que da noite para o dia se transformaram em grandes polos urbanos, Chapadão do Céu em Goiás; Chapadão dos Gaúchos, em Mato Grosso do Sul; Sinop, em Mato Grosso; Lucas do Rio Verde, também em Mato Grosso; Roda Velha, Rosário do Oeste, Luiz Eduardo Magalhães, todos no oeste da Bahia. Isso, sem contar os povoados existentes, que logo explodiram em municípios, com economias altamente dinâmicas e absenteístas.

Quando esse clarão irradiante bateu pela primeira vez nos locais abençoados dos chapadões centrais da América do Sul, algumas das que formavam a constelação do Cerrado começaram a desaparecer. As primeiras foram as gramíneas e plantas herbáceas pequenas, que revestiam as inúmeras campinas, locais geralmente situados em áreas planas, com mais de 850 metros de altitude.

Depois atiraram ao chão as plantas arbóreas de cerrado e de cerradão, utilizando-se de correntes atreladas a possantes tratores. Caíram pequizeiros, mangabeiras, jatobazeiros-do-campo, cagaiteiras, baruzeiros e tantas outras plantas arbóreas que eram impossíveis de serem identificadas e quantificadas. Muitas viraram carvão, pelo alto teor de sílica, para serem utilizadas nas grandes siderúrgicas do Sudeste.

As matas subúmidas ombrófilas, também chamadas terras de , em razão da fertilidade do solo, foram os locais onde se instalaram as primeiras grandes fazendas da região; cobiçadas desde os primórdios, só restam resíduos ou relictos.

Além dos solos de boa fertilidade, seus recursos madeireiros, usados na indústria de móveis e nas construções, eram também bastante cobiçados. E assim se foram aroeiras, angicos, gonçalo-alves, jequitibás, jatobás-da-mata, paus-pereira, ipês e um infindável rosário de espécies endêmicas.

As matas ciliares, com o tempo, tiveram o mesmo destino; as veredas, no início preservadas, viraram também frutos da cobiça, porque representaram , pela presença de pequena quantidade de gado pertencente aos posseiros, que se constituíam em ameaças para o grande latifúndio.

Assim, essas estrelas, que formavam uma constelação ecossistêmica, foram desaparecendo. A extinção da flora, que constitui o ápice angular e temporal da evolução, trouxe a extinção de outros elementos, desde os atmosféricos, litosféricos, hidrosféricos e biosféricos. Estes também foram ou estão paulatinamente desaparecendo, alguns já desapareceram para sempre, outros, só dependem da seta do tempo.

A resposta para a configuração dessa situação reside em vários pontos. Mas, se quisermos ser muito elementares, poderíamos simplesmente dizer que essa realidade resulta do modelo econômico predatório instalado no Cerrado. Porém, isso é óbvio demais para nossa compreensão.

A causa maior e real do problema reside no fato de que as pessoas, que às vezes se acham mais luminosas que os próprios astros celestiais, nunca entenderam que o Cerrado dos chapadões centrais da América do Sul funciona como Sistema Biogeográfico.

É muito mais simples caracterizá-lo como Bioma, conceito trabalhado por Clements, em 1916. Dessa forma, mascaram os conhecimentos e eternamente ficam deitados na rede da ignorância e não precisam se incomodar com a ciência, que a todo momento fica tirando o sossego e obrigando essas pessoas a pensarem continuadamente.

Quanto o conceito de Bioma foi criado, nem se imaginava a teoria da Tectônica de Placas, cuja comprovação, a partir da década de 1960, veio revolucionar todos os conceitos que a humanidade tinha até então sobre os ambientes terrestres e marinhos, possibilitando uma visão holística dos fenômenos ambientais e ressaltando a ideia da temporalidade.

Com os conhecimentos gerados pela Tectônica de Placas, a Terra não poderia mais ser olhada como um Planeta imutável, cujos continentes e bacias oceânicas permaneciam fixos ao longo do tempo.

Em vez disso, os pesquisadores começaram a ver a Terra como um planeta integrado e dinamicamente mutável. Dentro dessa perspectiva, não é possível entender o Cerrado sem a devida compreensão da gênese e evolução de suas bacias de sedimentação geológica, como são os casos da bacia geológica do Paraná, da bacia geológica do Bambuí, da bacia geológica do Maranhão Parnaíba.

A não compreensão dos fenômenos que originaram a formação dessas bacias restringe a possibilidade de entendimento dos recursos hídricos do Cerrado, tanto em nível de superfície como em nível subterrâneo. Restringe também o entendimento da dinâmica de cada curso d’água e de suas inúmeras interações com outros fatores componentes do Sistema.

Por outro lado, a teoria da Tectônica de Placas reforçou vários outros conhecimentos, como a dinâmica das correntes de convecção, que não só afeta o relevo, mas é capaz de mudar a temperatura das águas oceânicas que, por sua vez, afetam as correntes marinhas, que influenciam as correntes aéreas, modificando a composição de umidade dessas. Trouxe também o conhecimento de correntes oceânicas profundas, como a Corrente da Groenlândia, que se desloca lentamente e, por onde passa ciclicamente, altera a dinâmica das correntes marinhas que, como já foi dito, traz consequências climáticas.

A teoria da Tectônica de Placas trouxe ainda conhecimentos sobre fenômenos como El Nino e La Nina, relacionando-os com os efeitos da rotação da Terra e os movimentos dos ventos oriundos do Leste, bem como suas ações nos fatores climáticos das faixas tropical e subtropical do planeta.

Também é importante ressaltar os avanços científicos oriundos da teoria da Tectônica de Placas e sua interação com a teoria de Sistemas, trabalhada pela Física Quântica, explicitando dados sobre a teoria do Caos, os conceitos de seta do tempo, dos equilíbrios e desequilíbrios, da irreversibilidade, do efeito borboleta, dos fractais e assim por diante. Elementos estes que são fundamentais para se entender a globalidade de um Sistema Biogeográfico, como é o Cerrado.

Alia-se a esses fatos o advento das Etnociências, fenômeno recente dentro do nosso conhecimento, sabido e valorizado por poucos. A Etnociência vem promovendo a integração de saberes de muita utilidade para alargar os conhecimentos sobre a globalidade.

Integrando-se saberes tradicionais com saberes ditos acadêmicos foi possível o advento da Etnobotânica, da Etnozoologia, da Etnomusicologia e outros campos, fato que tem contribuído muito para que possamos repensar soluções para determinados problemas, vistos de outras posições.

Portanto, apelidar o Cerrado de bioma é tentar mascarar seus níveis de degradação.

http://xapuri.info/indios-ceu-mitologia-indigena-brasileira/
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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