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CERRADO: TUDO ERA GERAIS

CERRADO: TUDO ERA GERAIS

Cerrado: Tudo era Gerais

Há cerca de duas ou três gerações, o Cerrado que ocupava os chapadões centrais da América do Sul ainda se nos apresentava, quase em sua totalidade, intacto. A configuração  era  separada aqui e ali por alguns núcleos urbanos, poucos já com porte de cidade grande, mas a  maioria se tratava de núcleos pequenos. Não existiam estradas asfaltadas cortando o ambiente de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Também as estradas de terra eram poucas.

Por Altair Sales Barbosa

Os  lugares  eram  longínquos, e a felicidade ditava as normas do comportamento da gente do lugar. Extensas campinas, veredas, sertões, tabuleiros e ermos formavam o que a população denominava de Gerais. Em meio a esse vazio humano, variadas  comunidades  vegetais e animais davam as graças, ladeadas pelos  córregos,  lagoas e rios de águas cristalinas. Lá pelos fundões e ermos, existiam pequenos povoados, onde as gentes eram amparadas por suas próprias comunidades. Esses povo- ados se situavam de forma quase que equidistante e poderiam ser alcançados após um dia a cavalo.

CERRADO: TUDO ERA GERAIS
Casal de araras canindé (ara ararauna) protegem seu ninho no Parque Estadual de Caldas Novas

A subsistência era representa- da por paisagens com pequenos roçados nos fundos dos quintais, irrigados por um rego d’água oriundo das partes mais altas de um riacho, ou rio, e pela criação de poucas cabeças de gado e outros animais domésticos. A vida dos homens e das mulheres se resumia na lida com pouco gado, no cuidar das plantações, dos negócios e dos pequenos comércios ali existentes. Vez ou outra, andarilhos e algumas andarilhas  zanzavam por entre os povoados. Algumas e alguns eram adotados pela população e se tornavam patrimônios do lugar. Um desses era conhecido por onde passava pelo  apelido  de Zuza Doido.

CERRADO: TUDO ERA GERAIS
Foto: Divulgação/ Rúbia Fonseca

Zuza Doido era um andarilho do Cerrado, ninguém sabia sua origem. Não tinha moradia, vi- via perambulando pelos  Gerais e, às vezes, segundo o próprio, partia da foz de um rio e ia até as suas cabeceiras, como falava. Quando estava muito cansado, fazia pouso em algum lugar desabitado e se transformava numa espécie de inquilino provisório daquele local. O apelido lhe foi dado pela gente de algum povoado, onde vez ou outra aparecia e onde ficava alguns poucos dias.

Zuza parecia ser grande observador, sabia distinguir em detalhes as plantas do Cerrado, atribuindo a cada planta um nome apropriado. Da mesma forma explicava as diferenças entre os animais, falava sobre os dentes deles, sobre a pele, a cor, os sons e os hábitos de cada um.

Era na realidade um professor nato de história natural, mas, e virtude dos trajes maltrapilhos, poucos prestavam atenção aos seus causos recheados de sabedoria. Zuza Doido era pacífico, não fazia mal a ninguém, e gostava de ensinar novidades que advinham da observação. Ficava feliz quando alguém lhe dava uma muda de roupa, ou um cobertor de algodão. Certa vez, dançou de alegria quando ganhou uma rede de presente e um velho alforje. Assim era Zuza. Chegava, depois sumia, e ficava tempos sem aparecer.

Um belo dia, em época mais recente, chega a alguns daqueles povoa- dos a energia elétrica. O dono de um comércio próspero logo adquire um aparelho de rádio. À noite, muitos moradores vão ao seu comércio ouvir notícias de outras terras que eles jamais imaginavam existir. E, num misto de alegria, confusão e sabedoria, saem comentando aquelas notícias.

Aquele aparelho, além de outras informações, trouxe a notícia de que o governador da região, com a presença de altos políticos, grandes empresários e autoridades eclesiásticas, iria inaugurar lá para as bandas das campinas e das nascentes dos riachos um grande empreendimento, com imensas áreas a serem plantadas. Logo o mito do emprego e do enrique- cimento  fácil   chegou ao ar, trazido pelas ondas curtas dos aparelhos de rádio que, àquela altura, já se haviam espalhado pelo povoado. As novas músicas trazidas pelo rádio já eram uma diversão maior que  todos  os  festejos  e  tradições do lugar, que aos poucos foram minguando.

A atração do lugar inaugurado pelo governador foi maior, e a população ativa foi migrando. Dizem que os rapazes trabalham de empreita nas grandes empresas e contraem dívidas que os deixam atrelados ao  patrão, sem poderem retornar ou buscar outro rumo. Dizem que ninguém conhece os patrões, mas que  eles  têm  jagunços e capatazes ferozes que são capazes de qual- quer atitude.

As  mocinhas se prostituíram nos postos de gasolina, nas borracharias, nos bares e em outras edificações que se multiplicavam a cada dia que passava ao longo das rodovias que paulatinamente foram sendo implanta- das. As mais velhas se tornaram empregadas domésticas, em casas de piso brilhante, nas novas cidades emergentes. Cada colheita das novas plantações superava a anterior.

O  grande  governo do Brasil com seus ministros, sem visão da totalidade, se vangloria com as exportações cada vez mais crescentes. As plantações eram bonitas de se ver, todas arrumadinhas e grandiosas. Para serem feitas eram necessárias grandes máquinas, acorrentadas, para arrancarem as plantas que ali existiam.

Era tanta planta derrubada em  uma área tão grande  que era difícil de acreditar que o mundo tivesse aquele tamanho. Junto àquelas plantações começaram a surgir carvoarias. No início, para produzir carvão das plantas derrubadas, depois continuaram derrubando noutras áreas. E assim a pujança de um capital predatório foi colocando os chapadões centrais da América do Sul no mapa da economia internacional. Com o tempo, modificações aceleradas foram acontecendo.

CERRADO: TUDO ERA GERAIS
Foto: Divulgação/ Rafael Oliveira

Tudo se acelerou e eis que numa tarde nublada, lá pras bandas de um  dos  povoados, já era tardinha quando alguém avistou, numa pinguela do rio Formoso, Zuza Doido chegando, com seu andar já meio trôpego, carcomido pelo tempo. Sentou-se à porta da pensão do povoado, bebeu água, alimentou-se de um cuscuz com leite e, após alguns momentos, começou a falar:

Sempre contei a vocês histórias de plantas, bichos, água e terra, mas o que eu vi agora, lá para as bandas das cabe- ceiras do Lagoão, descendo a serra no rumo do Riachão, são coisas de arrepiar. Algo estarrecedor me chamou atenção. Fiquei impressionado, porque nas minhas andanças pelo Cerrado achava que já tinha visto de tudo.

Todavia, meus amigos, eu sei que vocês acham que sou doido varrido, porque não tenho moradia, ando pelos quatro cantos dos Gerais. Fiz desse meu viver uma opção de vida, depois que sofri uma grande desilusão, que prefiro não contar para vocês, para poupá-los do sofrimento alheio.

Mas eu vim de uma família rica, que morava lá para as bandas do mar, estudei nas melhores escolas e, quando terminei meu curso na faculdade, a vida me passou uma rasteira. Mas aprendi que quando algo muito ruim acontece,   temos   duas   escolhas: nos destruir ou nos fortalecer.

Eu resolvi me fortalecer. Ser forte não é labuta fácil, mas cada um consegue encontrar uma força maior, que nos torna capazes de suportar e largar aquilo que nos fere. Há certo tempo que só precisamos de mais um tempo, para assimilar, recontar, reviver…

Tem horas que as horas no balanço do relógio fazem o tempo voar, num vai e vem, a brisa da noite chega na janela da varanda, apenas um balanço, uma rede e um relógio na parede;  outrora  já  se  passou mais meia hora, e o tic-tac a zoar, um vasto vazio, a falta de alguém, os sonhos vividos, os amigos esquecidos… e a vida vai andando nas setas do relógio, se a gente não se apressar, pode chegar atrasado e nem mais vestígios da  felicidade nós vamos encontrar.

CERRADO: TUDO ERA GERAIS
Foto: Divulgação/Rafael Oliveira

Este sou eu, não sou doido e aprendi a me juntar aos bons para crescer. Mas o que vou contar agora é a coisa mais impressionante que um vivente já viu. Vi com estes olhos que me “alumeiam”. Quando passei a orla de taquari, que mascarava o paredão de calcário, vi o inferno se descortinar à minha frente. Dezenas de máquinas possantes acorrentadas atirando ao chão todas as espécies de plantas que estavam em pé. Não acreditei no que vi. Naquele momento, várias imagens passaram pela minha memória, ilustrada por animais, plantas dos remédios, frutas,  resinas,  ninhos de passarinhos, rios e muitos outros mundões.

CERRADO: TUDO ERA GERAIS
Foto: Divulgação/Internet

Olha, eu vi o fim do mundo! Diante daquele panorama, foi me dando uma tonteira! Não sei se tenho forças para enfrentar o exército de jagunços que está tirando do povo dos Gerais suas plantas, seus frutos aromáticos, suas ervas medicinais, suas águas, com a ajuda de pessoas do local, que vendem suas almas e seus ideais. A coisa mais triste, mais humilhante que pode acontecer ao ser humano é vender seus ide- ais, seus sonhos, seus amigos, e isso jamais acontecerá comigo.

Portanto, meus irmãos, vim aqui para me unir aos que têm boa vontade, porque no dia que os pássaros esconderem suas asas, o pequizeiro chorar sua sombra, a borboleta começar a vigiar a rosa e o caminho não levar à fonte, seremos prisioneiros em nossos territórios, prisioneiros de inimigos que sequer conhecemos.

CERRADO: TUDO ERA GERAIS
Foto: Altair Sales/Arquivo Pessoal

 

Altair Sales Barbosa Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Pesquisador do CNPq. Pesquisador Convidado da Universidade Evangélica de Goiás. Conselheiro da Revista Xapuri desde dezembro de 2014, ano de sua fundação.

 
 
 
 
 

Respostas de 16

  1. …..e Altair e o Clube da Esquina se acenam, nos Gerais e nas Geraes. Chapadas e Chapadões insistem manter a beleza quase metafísica do canto diverso dos pássaros, do cantarolar dos rios e cahoeiras, escandalosamente, expostos a caminhos contraditórios da lógica do mercado. Soja e agrotóxico povoa o conceito de desenvolvimento para poucos.

    Que texto de narrativa correta e instigadora

    Ah, que emocionante está Zezé narrando nossa Raiz XAPURI.

  2. Excelente matéria! Como sempre a Revista Xapuri informa com sensibilidade, beleza e honestidade. Parabéns!

  3. Um texto com narrativa poética sertaneja de uma realidade recorrente. Vem num turbilhão de propostas modernistas liberais do “enganês”, canto enfeitiçador das elites retrógradas e escravagistas. E dentro do que esforço lembrar-me, estou na minha ilusão de que um dia acreditei que “ninguém solta a mão de ninguém”.

  4. Que maravilha. Me lembrou muito de minha terra natal. Montividiu-GO e a natureza. A vida que existiane o pouco que ainda resiste.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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