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A CRIANÇA QUE BATIZOU O PADRE

A CRIANÇA QUE BATIZOU O PADRE

A CRIANÇA QUE BATIZOU O PADRE

Na igreja católica o batismo é um dos sete sacramentos. Originária do grego e adaptada ao latim, a palavra batismo significa mergulhar, imergir, purificar. Por isso, o ritual do batismo católico (e de outras igrejas cristãs) é feito com água.  

Por Gilberto Marques e Indira Marques

A igreja católica indica que ele seja feito nos primeiros meses de vida da criança. Por meio dele, a criança é liberta do “pecado original” que a gerou e ela, regenerada, passa a fazer parte da igreja, de Cristo. Diríamos nós, leigos, e com risco de estarmos imprecisos, que para a igreja o batismo é um rito em que a criança de torna “cristã”.

Em maio de 2024, a Faculdade de História da Universidade Estadual do Amazonas em Tefé-AM homenageou Egydio Schwade por seus 60 anos dedicados ao indigenismo no Brasil, e intensivamente na Amazônia. Anteriormente, em 2015, a Assembleia Legislativa do Amazonas já havia lhe concedido o título de cidadão amazonense.

Nascido em Feliz-RS, Egydio escolheu a vida religiosa, se tornando padre. Quando ainda era estudante, foi ao Mato Grosso, e vendo a condição dos povos indígenas passou a se envolver com a luta em defesa deles a nível nacional. Seus superiores queriam que ele se tornasse professor de história para trabalhar nos colégios religiosos, mas ele não queria ser professor de “filho de burguês”.  

Ao retornar ao estado gaúcho, percorreu vários territórios indígenas, igualmente agredidos pelos não indígenas. As denúncias que ele e seus companheiros de empreitada fizeram geram uma CPI no Rio Grande do Sul e outra em esfera federal. O então Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mas a situação dos povos originários continuava muito difícil.

Em plena ditadura e num momento de muita repressão política, Egydio e alguns aliados fundaram em 1969 o que hoje é a Operação Amazônia Nativa (OPAN) e o Conselho Indigenista Missionário em 1972 (órgão da CNBB), se tornando seu primeiro secretário executivo – ambas organizações indigenistas. Também apoiaram a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Diante do CIMI e mesmo proibido pela ditadura de entrar em terras indígenas, Egydio organizou as assembleias indígenas em diversas regiões do Brasil estimulando os povos originários a se organizar para defender seus direitos e seus territórios. Ele mesmo nos diz que, mesmo proibido, foi o período em que ele mais esteve em territórios de povos originários.

Seus companheiros de empreitada muito lhe ajudaram. Eram padres, bispos e principalmente os “leigos” que, em geral, realizavam um trabalho militante e voluntário, sem receber salário para tal, mas com a vida em risco por se enfrentar com interesses latifundiários e empresariais.

Em meio a esse turbilhão, em fins dos anos 1970, descobriu em Doroti Müller uma paixão indigenista e se casaram (ela era mais ativa e mais radical que ele, segundo o próprio Egydio). Mesmo contra toda pressão da igreja, ele se negou a assinar as demissionárias da Ordem Jesuítica e do sacerdócio, pois acreditava que não havia cometido pecado nesse ato de amor. Vieram os filhos e mais pressão dentro da igreja, que não aceitava a condição de um padre casado.  

Convidados a “sair” e resistindo, peregrinaram por alguns lugares até iniciar o contato com os Kiña (Waimiri-Atroari), povo que habita um território entre o norte do Amazonas e sul de Roraima. Em 1985 e 1986 moraram com os Kiña, fazendo a alfabetização dos indígenas, seguindo o método de Paulo Freire. Em 1986 foram expulsos do território Kiña a mando do então presidente da FUNAI, Romero Jucá, representante dos mineradores. A razão principal talvez tenha sido a oposição de Egydio e Doroti à exploração mineral em territórios indígenas.

Desde antes e depois da expulsão, Egydio e Doroti já organizavam a luta em defesa dos WaimiriAtroari, muito agredidos pela construção da BR-174 e pela entrada da mineração em seu território, principalmente da Paranapanema-Taboca. Eles perguntavam insistentemente: por que kamña (branco/”civilizado”) matou kiña? As denúncias originaram o Movimento de Apoio à Resistência Waimiri-Atroari (MAREWA) e chegaram ao Tribunal (Internacional) Russel no início dos anos 1980.

Os Waimiri-Atroari que haviam sido reduzidos de 3 mil para 332 pessoas (entre o início dos anos 1970 e 1983, segundo levantamento do professor e antropólogo Stephen Baines), se organizaram e já há alguns anos vêm crescendo demograficamente.

Doroti faleceu e Egydio, chegando aos 89 anos, continua sua caminhada, agora ao lado de Terezinha Weber, também mulher de força e na luta indigenista.

Mas por que começamos este texto falando de batismo? Essa história toda de Egydio tem um momento decisivo. No dia 1º de janeiro de 1963 ele chegou ao oeste do Mato Grosso para trabalhar nos internatos católicos que recebiam crianças indígenas para estudo e catequização. Lá Egydio viu chegar uma criança indígena nua e com suas pulseiras e colares. Era uma criança indígena. No outro dia, a criança estava vestida e de joelhos (e talvez já com um crucifixo no pescoço).  

Aquela cena o chocou tanto que a partir dali ele se colocou a tarefa de acabar com os internatos, mudar a catequização que não integrava e sim desintegrava dos povos originários, e alterar radicalmente o indigenismo no Brasil. Naquele dia, Egydio estava se tornando amazônida, numa espécie de rito, tal qual uma criança se torna cristã ao ser batizada.  

Aquela criança indígena vestida e ajoelhada, em toda a sua inocência, e sem saber, acabara de batizar o estudante que seria padre, que naquele momento acabara de se tornar indigenista e amazônida (fato reconhecido formalmente em 2015 pela Assembleia Legislativa do Amazonas).

Egydio é um subversivo revolucionário de palavra doce e gestos grandiosos. Ele insiste que temos que sonhar grande. Ele nos faz sonhar grande. “Não se limitar pelo máximo, mas caber no mínimo, isto é divino” (Non coarctari maximo, contiere autem a minimo divinum est). Ele tem olhos claros, cabelos brancos (já foram loiros) e pele branca, que é a mesma cor da pele do colonizador, mas isso é apenas a aparência. A essência é que Egydio tem o coração amazônida e o espírito indígena.

Capa: Waimiri Atroari, imagem de Henrique Cavalleiro (1999)

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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