Clarice Lispector: Audácia, liberdade e literatura
Essas três palavras estão inscritas na história dessa mulher mulher genial.
Por Wanessa Dias
De Clarice, biografia escrita e publicada por Benjamin Maser em 2011, destaco a seguinte fala de Clarice Lispector, cuja data, apesar de imprecisa, aponta, pelo contexto da própria biografia, para o ano de 1977:
Em Recife, onde morei até doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social.
E lembro-me de como eu vibrava e de como eu prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender o direito dos outros. No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco.
Em outubro, do mesmo 1977, Clarice Lispector, na sua última entrevista a um canal de televisão (a única, de que tenho notícia) falou, de forma bem concisa, do início da sua vida na existência literária, do/o que significava isso para ela, de como a relação sujeito-tempo– mundo-espaço se davam e de como – de maneira não profissional, isto bem frisado por ela – tudo vinha e se corporificava numa literariedade, que sabemos, é incomparável.
Com uma presença incômoda, de tão serena, durante a entrevista, Clarice disparava pausas e olhares, e respondia ao que lhe convinha.
Ela não entrou em pormenores da sua vida pessoal, relatou, assim, algumas pequenas curiosidades e experiências de como procurava, por exemplo, alcançar o leitor. Levava seus textos às redações de jornais e revistas.
Numa dessas raridades contadas, Clarice revelou, mesmo que bem nas entrelinhas, o muro que bloqueava o trânsito de mulheres no protagonismo da produção literária, em pleno século XX, a dificuldade de reconhecimento da mulher escritora, da mulher que consegue ser escritora, representar-se, representar o mundo, transpor para o papel comportamentos humanos tão complexos, mas também tão comuns, e mais, de forma tão ímpar como ela.
Eis o que disse, no seu encontro com o jornalista e poeta Raimundo Magalhães Júnior, ao mostrar seu texto a ele:
Eu me lembro […] que [ele] olhou, leu um pedaço, olhou pra mim e disse “Você copiou isso de quem?” Eu disse “De ninguém, é meu!”. Ele disse “Você traduziu?” Eu disse “Não!”. Aí ele disse “Vou publicar”.
Mais para frente, quando questionada do momento em que assumiu ser escritora, ela retrucou: Eu nunca assumi. Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo uma amadora.
Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo, de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser uma profissional, pra manter minha liberdade.
Poder-se- ia abrir aqui uma brecha para críticas negativas voltadas para o teor proferido por Clarice no que representava para ela ser uma profissional, porém quando ela se coloca, em contrapartida, como uma amadora, aquela fresta não se alarga.
O amadorismo de Clarice Lispector na realidade se incorpora ao comprometimento e respeito que um artista deva ter com a relação estreitamente violenta entre vida e arte.
Ou, como dizia Bakhtin: “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular […], na unidade da […] responsabilidade”.
Clarice não estava para atender expectativas de mercado, não vivia para alcançar massas de coautores, não tinha preocupação ser aclamada pelo ciclo literário cânone.
Ela se esgotava, sugava o outro, o mundo, não se furtava da experiência de fertilizar sua escrita. Sem trair o leitor, ela respondia pela vida contando com a arte e vice-versa, e, assim, se legitimou.
Clarice Lispector desde muito pequena já se via em diálogo, mesmo em total monólogo com ela mesma e com suas vivências, e foram muitas, de impagáveis violências, inclusive, como o estupro sofrido pela mãe por soldados russos e a prostração desta até a morte depois da sífilis contraída pela violência que sofreu, fora os deslocamentos geográficos de Clarice e da família, em busca de paz, depois da fuga da Áustria.
A reflexão a que chega Clarice é a de que ela seria uma peregrina das inúmeras ruas que andamos dentro de nós mesmos. E com toda certeza não discursa, até hoje, para o nada e não fez uso de microfone ou púlpito. E isto é muito, muito, ao contrário do que ela afirmava.
Sua escrita é um corpo localizado, não numa praça pública, mas no mais íntimo de cada leitor, que está à procura de algo perdido ou nunca mesmo conhecido, que se vê afrontado e desafiado pela legião estrangeira que veste suas/nossas almas e cotidianos.
Clarice está como aquela figura iluminada, em destaque, da Ronda Noturna, de Rembrandt, misteriosa, mas intensamente comunicativa. Clarice, como ela diz, revezava fala e silêncio, eis, portanto, o amadorismo-respeito dela para com os seus leitores, mesmo sabedora que o “sossego”, muitas vezes, incomoda.
Numa conversa, os interlocutores falam em alternância. Um diz ou conta alguma coisa, o ouvinte faz uma observação, uma pergunta, emite um som que exprime interesse ou, por sua vez, conta uma história. Ou, como diz Nasio: “Em sociedade evita-se o silêncio. Se alguém não tem nada a dizer, o outro fala”.
Clarice Lispector cessava sons e léxicos, entendia, pois, do esquema de comunicação acima. E mesmo com seus “hiatos”, com suas mortes, ela é uma voz de envergadura para a posteridade da literatura e consegue, mesmo na dúvida de sua grandeza (como foi colocada à prova, lá atrás), ser ouvida e bem ouvida, fincando sua dicção trabalhadíssima no ouvido do mundo.