Como escapar do azar da “Panema”
“Hoje não em mais panema, mas também não tem mais caça!”
Por Gomercindo Rodrigues
Foi assim que dona Cecília Mendes me falou das crenças dos seringueiros quanto ao azar na caçada, ou “panema”, ao mesmo tempo em que fazia o registro de que, embora haja todo um trabalho de proteção, há uma exploração que precisa ser mais cuidadosa, para evitar que os animais silvestres acabem de uma vez.
Para não ficar “empanemado” era necessário cumprir algumas regras fundamentais:
- Tinha que cortar a carne da caça e lavar a tábua só com água, sem sabão.
- A roupa do caçador que, claro, ficava manchada com o sangue da caça, tinha de lavar só com água, até tirar o sangue, sem usar sabão para não “empanemar.”
- A mulher não podia passar por cima do sangue onda a caça tivesse sido deixada ou “tratada”, se pisasse no sangue da caça, “botava moleza.”
- A corda de tirar o couro da caça deveria ser sempre a mesma, guardada no mesmo lugar.
- Ninguém podia pisar nos ossos, os cachorros tinham que roer ou, então, tinha de enterrar na mata, no “pé de um pau (próximo ao tronco de uma árvore).
No caso de “empanemar”, ou “ficar com moleza” na caça, o seringueiro tinha de cumprir alguns rituais para poder se livrar da “panema”.
Uma vez seu Quinca, tio de Chico Mendes, matou uma caça. A carne foi mal salgada, estragou, aí a mulher que tratara a caça jogou a carne fora. O resultado foi que ficou mais de um ano sem matar caça.
Para tirar a “panema” tinha de tomar banho de “pau d´alho” ou “pião roxo”. Um velho ensinou que tinha de tomar banho e ir pra mata, mas que, antes, ele iria sonha com quem tinha “botado a moleza.”
Ele sonhou com a mulher que tinha jogado a carne fora, que ficava “atrapalhando” o banho dele, no sonho. No outro dia, foi pro mato, entraram duas caças. Matou só uma, perdeu a “panema”, mas não ficou “marupiara” porque teria de ter matado as duas (mãe e filho de veado).
Outra receita para tirar a panema me foi passada pelo Raimundo Monteiro, e é do conhecimento dos seringueiros:
É necessário, na tarde anterior, deixar uma semente de jarina” (conhecida como “marfim vegetal”, vez que tem a coloração e a consistência do marfim retirado dos elefanteso) amarrada a uma árvore com uma embira de com do o nome da pessoa que se suspeite que tenha “botado a moleza.”
O complicado dessa receita é que se suspeita for infundada, ou seja, se quem tiver botado “panema” for outra pessoa, quem surra a jarina, o “empanemado” fica com febre.
Parece um recado da natureza para combater a injustiça, ou seja, antes de se acusar alguém, é preciso ter certeza, pois, caso contrário, tem-se de arcar com as consequências.
GOMERCINDO RODRIGUES, o GUMA: Engenheiro agrônomo e advogado, casado, pai de dois filhos, natural do estado do Pantanal, o Mato Grosso do Sul. Amigo pessoal e companheiro de luta do líder sindical e ambientalista Chico Mendes, com quem estava minutos antes dos tiros que estrondaram sobre o mundo naquela trágica noite de 22 de dezembro de 1988, na pacata cidade de Xapuri, no coração do Acre, na Amazônia brasileira.
Palavra de origem tupi, panema designa um conceito conhecido desde o início do período colonial, estando presente nas obras de cronistas dessa época como As singularidades da França Antárctica (1978 [1557]) de André Thévet (1502-1590) e o Tesoro de la lengua guaraní (1639) de Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652).
Como tantas outras palavras e ideias de origem tupi, o termo circulou pela América do Sul e hoje é usado por comunidades de pescadores, de seringueiros, por quilombolas, por populações urbanas, e adotado por indígenas de outras famílias linguísticas.
Em línguas caribe, aruaque, yanomami, arikém, jê, katukina, pano, jabuti e tikuna, por exemplo, existem termos próprios que guardam sentidos análogos ao de panema. Seus significados mais conhecidos são o de azar, má sorte e infelicidade. Eles são de uso popular, estão dicionarizados e vêm sendo assim reproduzidos desde os primeiros estudos antropológicos sobre o tema.
A panema remete aos contextos do insucesso na caça, na pesca, nas roças, nas relações conjugais, entre entes variados. Ela qualifica as pessoas, mas também cachorros que não matam caça; árvores que não dão frutos; espingardas que não atiram; e, ainda, rios que não dão peixes. Em todos os casos, trata-se de expectativas frustradas, algo que não age como deveria, que não produz o que se esperaria, tendo normalmente viés negativo.
Artigos sobe a Panema
Na etnologia indígena existem dois artigos de síntese sobre o assunto: “Panema” (1951) de Eduardo Galvão (1921-1976) e “Panema: uma tentativa de análise estrutural” (1975 [1967]), escrito por Roberto DaMatta (1936-). O primeiro apresenta a panema como uma “crença do caboclo amazônico”, produto do “processo de fusão” entre crenças indígenas e ibéricas. Texto curto, mas bastante analítico, tem o mérito de ressaltar a importância da panema como um aspecto da vida comunal e cotidiana.
O segundo é declaradamente teórico-metodológico. O autor propõe abordar o tema por meio de um teste do método da análise estrutural em antropologia desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1908-2009).
Em ambos os casos, o material analisado provém de trabalhos com populações da Amazônia tidas à época como caboclas, sendo que a análise de DaMatta se vale de dados secundários com base nos trabalhos de Charles Wagley (1913-1991) e do próprio Galvão.
Desde as obras dos cronistas já chamava atenção o fato da panema envolver causalidades peculiares e complexas. Elas remetem a problemas existenciais, a questões morais e a fatores organizacionais, além de qualificar estados, capacidades e experiências.
Esses aspectos foram percebidos por Galvão, mas foi com DaMatta que a atenção à teoria da causalidade da panema tomou um caráter teórico mais detido e refinado, que também presenciamos contemporaneamente em Caipora e outros conflitos ontológicos (2013) de Mauro W. B. Almeida (1950-).
Destacam-se causas relacionadas à potência de contágio do sangue menstrual e outros fluídos corporais; à sovinice, principalmente no contexto da obtenção e compartilhamento de alimento; e à relação direta com seres potencialmente causadores de panema, como quando se insulta o animal que se pretende caçar ou, simplesmente, se enuncia a intenção de caçar.
Dessa forma, a panema pode ser considerada um objeto etnográfico significativo na etnologia sulamericanista, tendo sido comparada por Galvão a fenômenos como o mana melanésio, por DaMatta com o totemismo e por Almeida com o conceito de gravidade na física.