Como os indígenas preservam o pirarucu

COMO OS INDÍGENAS PRESERVAM O PIRARUCU

Como os indígenas preservam o pirarucu

Os Deni do rio Xeruã, os Paumari do rio Tapauá e as comunidades ribeirinhas do rio Solimões, no Amazonas, adotam o plano de manejo que gera renda e salva o gigante amazônico da extinção…
Por Keka Werneck/via Amazonia Real
Pha Avi Hava tinha apenas 4 anos, mas se lembra de que naquela época seu pai, Bahavi, já vivia preocupado. O pirarucu estava sumindo. O peixe gigante da Amazônia era a base da alimentação diária dos Deni do rio Xeruã. Algo precisava ser feito. Mas no início dos anos 2000 havia poucas experiências de preservação de espécies para se inspirar e aprender. E nenhuma delas tinha chegado até a aldeia Boiador, fundada pelos Deni para ficarem mais perto de um “rio mais largo”, o Xeruã, e onde Pha Avi e seu povo vivem até hoje, na Terra Indígena Deni, no estado do Amazonas.
Em 2009, essa história mudou quando o povo Deni decidiu parar de pescar o pirarucu e adotar um plano de manejo. Só assim o peixe gigante poderia voltar a procriar e engordar livremente. Há relatos de pirarucus com quase 200 quilos e mais de 2 metros de comprimento. Em agosto de 2016, Pha Avi se lembra bem, havia um clima festivo no rio Xeruã. Com alegria, gritos e o barulho de motores rabeta, os Deni fizeram a primeira retirada de pescado do manejo, após o defeso, com autorização dada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 
Naquele ano, foram retirados, experimentalmente, 10 pirarucus. O número parece pequeno, mas os poucos exemplares já indicavam que o esforço compensava a espera. Os peixes estavam graúdos e, mais que isso, tinham voltado a povoar o rio. Os Deni conseguiram contar um total de 2.833 peixes gigantes soltos na natureza.
De lá para cá, o Ibama foi ampliando a cota autorizada para a pesca do pirarucu. No ano passado, os Deni puderam pescar 100 peixes, que somaram 5,8 toneladas. O manejo sustentável fez saltar o faturamento. Em 2017, o povo indígena registrou 1.300 reais de receita, enquanto em 2021 superou os 40 mil reais. “De tudo o que ganhamos, 30% fica guardado para alimentação, custear reuniões indígenas, para o futuro, para não faltar, para ter festa, cantar, dançar, pintar”, explica Pha Avi, que hoje tem 26 anos e é representante legal do povo Deni do rio Xeruã.
A aldeia Boiador está localizada à margem do rio Xeruã, afluente do rio Juruá. “É um rio mais largo e está mais ‘perto’ de Itamarati (a 983 quilômetros de Manaus)”, diz Pha Avi. O “perto”, no caso, são os dois dias de viagem pelo rio até o município de Itamarati, onde vendem o pirarucu. Antes de fundarem a nova aldeia, Pha Avi e seus pais viviam na aldeia Buzina, em uma área de floresta fechada à margem do Igarapé Marahi, onde só havia “peixes miúdos”.Phaavi em assembleia da Aspodex 2018 IMG 1904

Pha Avi, líder indígena pertencente ao povo Deni, do Amazonas (Foto: Dafne Spolti/OPAN)

 
O maior mercado comprador do pirarucu é Manaus. Mas, com a marca coletiva Gosto da Amazônia, o peixe manejado já chegou ao Rio de Janeiro, a São Paulo, a Brasília e a Minas Gerais. Para os Deni, não há outra saída para comercializar o pescado.
No ano em que o projeto de manejo começou, os indígenas contaram 150 pirarucus. Em 2021, foram 2.967. “O estoque aumentou muito, fizemos um sacrifício por um tempo, cinco anos sem pescar pirarucu, mas está valendo a pena”, afirma Pha Avi. Casado, pai de dois filhos e de um terceiro que cresce na barriga da mulher, o líder quer ensinar essa lição de sobrevivência e preservação às novas gerações de Deni.

Renda e independência

Experiências de manejo sustentável estão mudando a vida de povos da floresta e contribuindo para a preservação da espécie pirarucu (Arapima gigas). O povo Paumari, da Terra Indígena Paumari, que fica no Lago Manissuã, começou a adotar esse método no rio Tapauá, também no Amazonas, no mesmo ano que os Deni.
O plano de manejo do pirarucu procura aumentar o estoque do maior peixe escamoso de água doce do mundo e, com isso, gerar renda. Além de permitir a independência financeira dos povos indígenas, esse uso sustentável tem ajudado a preservar a espécie. A pesca do pirarucu foi proibida em 1996 na Amazônia, porque havia risco de o peixe gigante desaparecer. A espécie figurou nas duas principais listas de extinção – uma delas é a da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) e a outra, o Livro Vermelho do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Num ciclo virtuoso, os Paumari constataram que para proteger o manejo, eles também precisavam se mobilizar para cuidar dos territórios, montando bases de fiscalização próprias. Ao longo dos cinco primeiros anos em que os Paumari suspenderam a pesca de pirarucu, eles tiveram de combater a captura predatória. A tarefa é muito difícil, sobretudo em uma área amazônica extensa, de mata fechada, e onde os órgãos oficiais não dão conta da fiscalização. Mas a união do povo indígena fez diferença.
“Antes, cada qual trabalhava para si e agora trabalhamos em conjunto, coletivamente. Conseguimos o mais importante para nós, que é cuidar do nosso território. Todo mundo se engajou e, aos trancos e barrancos, estamos levando esse trabalho árduo, bonito, adiante”, diz Germano Paumari, liderança da aldeia Manissuã e coordenador financeiro da Associação Indígena do Povo das Águas (Aipa). Casado, pai de cinco filhos e seis netos, Germano também quer repassar o que está aprendendo às novas gerações.
Os Paumari conseguiram, depois do defeso, retomar a pesca. Em 2013, o Ibama autorizou a retirada da primeira cota anual no manejo (50 peixes).  No ano passado, foram 594 indivíduos. Nesse período, o faturamento subiu de 26.423 reais para 235.466 reais. “Foi quando pela primeira vez vimos o dinheiro em espécie em quantidade maior e isso acabou também animando o pessoal”, celebra Germano.
Antes, os indígenas praticavam o regatão, isto é, a troca do peixe por outros produtos. Mas os Paumari viviam endividados. Agora, com o manejo do pirarucu, eles se organizam para conseguir a própria independência financeira, inclusive dos apoiadores. Tem sobrado até dinheiro em caixa para reinvestimento.
“Isso em si é uma grande vantagem, mas, para mim, o que mudou mesmo foi o nosso dia a dia. Cada Paumari era bem distante um do outro e agora estamos juntos, unidos no mesmo objetivo, queremos mostrar que isso dá certo, queremos incentivar outros povos, é um caminho de sobrevivência”, diz Germano.

Iniciativa pioneira

O Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá iniciou o pioneiro projeto de manejo do pirarucu entre 1999 e 2000. Com sede em Tefé, no Amazonas, o instituto é uma Organização Social que desenvolve programas de manejo de recursos naturais, principalmente na região do Médio Solimões, junto a comunidades ribeirinhas e com uso de tecnologia e métodos inovadores na preservação da biodiversidade da Amazônia. As pesquisas se concentram em duas reservas do governo do Amazonas: a Mamirauá, que envolve território dos municípios de Uarini, Maraã, Fonte Boa e Jutaí, e a Amanã, que alcança Maraã, Coari e Barcelos.
Coordenadora do Programa de Manejo de Pesca do Instituto Mamirauá, Ana Cláudia Torres Gonçalves, mestre em Ciências Humanas pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), acompanha de perto as áreas de manejo nas comunidades dos municípios de Uarini e Maraã. Ela relata que, de 1999 para cá, ou seja, em 23 anos, aumentou de 4 para 50 comunidades ribeirinhas contempladas, sendo 3 de Uarini e 47 em Maraã. Com mais projetos pela Amazônia, o estoque de pirarucu na natureza deu um grande salto. “O último dado consolidado em 2021 aponta uma recuperação de 427%, porém se a gente atualizar esse controle a porcentagem sobe para 800%”, estima. 
Dos pirarucus monitorados pelo Instituto Mamirauá o maior pesou 148 quilos e media 2,57 metros. “Mas há relatos de registros na região de Japurá (município do Amazonas) de um indivíduo com 186 quilos e 2,92 metros”, comenta Ana Cláudia. Foi a iniciativa do Instituto Mamirauá que inspirou as experiências dos Deni do rio Xeruã e dos Paumari do rio Tapauá.
Essas experiências de manejo do pirarucu dos indígenas e ribeirinhos ganham suporte em um consórcio de parceiros: Instituto Mamirauá, Operação Amazônia Nativa (Opan), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o próprio Ibama, entre outros. “Hoje já há manejo de pirarucu em pelo menos 22 municípios do Amazonas e também em outros estados do Norte, na amazônia boliviana e peruana”, afirma Ana Cláudia.

Pesca predatória

As experiências dos Paumari e dos Deni têm o apoio da Opan. O biólogo Felipe Rossoni Cardoso, indigenista da Opan, ressalta que a partir da década de 1960, “a pesca sem critério nos trouxe a essa situação”. Segundo ele, nem mesmo hoje, há um controle preciso de pesca na Amazônia e os indígenas iam assistindo à baixa de estoque ano a ano. Um dos propósitos dos projetos, segundo ele, é quebrar o ciclo exploratório e “fortalecer os povos”. “Os invasores entram, usam os recursos e vão embora. Mas os indígenas ficam”, sendo obrigados a encontrar meios de superação.
Uma das ameaças ao manejo é a pesca predatória, que persiste na região amazônica. Liderança jovem entre os Paumari, Diego Dias de Oliveira, de 28 anos, precisou se mudar da aldeia Manissuã, onde nasceu, para poder reforçar outra base na TI. É que nessa sua nova morada a pesca predatória estava muito intensa, criando inclusive um clima violento.
“É barco de grande porte, é canoa. Na verdade, é muito perigoso enfrentar esses caras. Já recebemos várias ameaças”, afirma Diego Dias. Ele se lembra quando flagraram uma pessoa roubando na região. “Quando abrimos a lona, no barco, tinha de 30 a 40 quelônios. Nisso, ele disse: ‘Vou te pegar, sei onde você mora, sei onde é sua aldeia, onde mora sua família’.” O pai de Diego já sofreu ameaças de morte.
Os Paumari mantêm sete bases de fiscalização sendo uma na aldeia Colônia, três na Manissuã, uma na aldeia Terra Nova e duas na Xila. Os pontos de manejo se tornaram atrativos à pesca predatória, porque neles o estoque de pirarucu é maior do que no meio natural.
O professor e ictiólogo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Francisco de Arruda Machado, conhecido como Chico Peixe, afirma que o comportamento do pirarucu é outro elemento que o coloca em vulnerabilidade, já que precisa sair da água para respirar a cada 10 a 20 minutos.
Chico Peixe estudou o comportamento do pirarucu, “entre outros peixes amazônicos”, em sua pesquisa de doutorado. “É um peixe extraordinário, gigante, impressionantemente belo, sendo geralmente a fêmea maior que o macho. É vulnerável. Não deixa muitos descendentes. O casal escolhe três filhotes para acompanhar, ensinar a caçar outros peixes. O desequilíbrio dele, que é tido como caçador, desregula todo o ecossistema amazônico”, explica.
De acordo com o mestre em Ecologia Carlos Durigan, diretor da Organização Wildlife Conservation Society (WCS), diante da intensa pesca, a espécie passou a correr risco de extinção e os manejos representam uma possibilidade de recuperação da espécie. “É um trabalho sistemático, com técnica de contagem, período de defeso, e toda uma estrutura instalada, que protege a espécie e gera renda. É um ganha-ganha, um avanço muito importante que aconteceu nos últimos anos”, avalia.

Sobrepesca

O ICMbio afirma que o pirarucu não está atualmente listado entre as espécies ameaçadas de extinção, porém o processo de análise se faz de forma contínua. A avaliação em curso para o próximo ciclo está em andamento, mas tudo caminha para ele entrar novamente na lista de animais em perigo de extinção.
“O manejo do Pirarucu é um importante instrumento de conservação, pois tira a pressão desses peixes onde possa se verificar uma eventual queda populacional”, diz nota emitida pelo ICMBio à agência Amazônia Real. O ICMBio afirma que tem atuado “de uma forma bastante interessante ao longo dos últimos anos em relação ao manejo comunitário do pirarucu”, dando cooperação técnica e financeira.
Quanto à sua responsabilidade no combate à pesca ilegal, afirma que “é necessário se combater a incidência de pesca ilegal da espécie, mesmo no Amazonas, que confere proibição, porque além de comprometer o processo e dinâmica histórica de recuperação dos estoques, traz concorrência desleal com aqueles que atuam de forma correta. O aumento da fiscalização em campo, bem como nos estabelecimentos de beneficiamento e feiras locais, onde ocorrem comercialização de pescado é que pode inibir a ação ilegal”. 
O ICMBio tem competência para fiscalizar a região amazônica com outras instâncias: Ibama, órgãos estaduais e, dependendo da estratégia, a Vigilância Sanitária e Ministério da Agricultura também podem ser acionados para reduzir as infrações. O Ibama foi questionado sobre quais são as dificuldades para coibir a pesca ilegal do pirarucu e, após 17 dias, não encaminhou nota ou deu qualquer satisfação à reportagem.

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Imagem aérea da 6ª temporada da pesca do pirarucu de manejo na Terra indígena Paumari (Foto: Marizilda Cruppe)

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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