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Contestado: A guerra e seus resultados

Contestado: a guerra e seus resultados – Das revoltas populares até então ocorridas no Brasil, a que obteve resultado mais concreto – uma reforma agrária – foi sem dúvidas a Guerra do Contestado, em Santa Catarina. O prolongado conflito armado (1912-1916), exigiu o emprego do que havia de mais avançado nas Forças Armadas brasileiras, em pessoal e armamentos, sendo a primeira vez que se utilizou avião em ações bélicas no país.

Por Jaime Sautchuk 

Nele, morreram entre 10 e 15 mil pessoas e, embora apresentado como um movimento puramente espiritualista, místico, sua motivação foi nitidamente socioeconômica, política e anti-imperialista. Foi, ademais, um momento histórico em que mulheres se firmaram como lideranças combatentes, num ambiente socioeconômico que já havia projetado, sete décadas antes, a figura de Anita Garibaldi.

As populações da região já vinham demonstrando insatisfação com a situação do país, em pleno coronelismo, por longo tempo. Mas o estopim que deflagrou o processo foi a decisão da Velha República, em 1908, de entregar a obra da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande – e as terras ao seu redor – ao magnata estadunidense Percival Farquhar, que já havia construído a Madeira-Mamoré, na Amazônia, fronteira com a Bolívia.

A construção da São Paulo-Rio Grande havia começado ainda no Império, por decisão de D. Pedro II, mas a obra ficara a cargo do engenheiro João Teixeira Soares, autor do projeto, que concluiu o trecho de 270 km entre Itararé (SP) e União da Vitória, na margem do rio Iguaçu, fronteira Sul do Paraná, em 1905. Até ali, sem problemas, pois a empresa era remunerada normalmente.

Vale a ressalva de que ninguém era contra a construção da ferrovia em si, pois todos a viam como algo benéfico. Afinal, era o progresso que chegava, com empregos e mais fácil aceso aos grandes centros, promovendo o comércio, com o escoamento da produção regional e a importação de bens de consumo, nos moldes capitalistas.

No entanto, o governo do presidente Afonso Pena fez um acordo de pai pra filho com a Brazil Railway Company, empresa de Farquhar. Esta recebeu de mãos beijadas 15 km em linha reta de cada lado da ferrovia pra explorar madeira e colonizar, loteando e vendendo as terras. Pra isso, ele criou a “Lumber”, como ficou famosa (e odiada) na região a empresa Southern Brazil Lumber & Colonization Company.

 

POPULAÇÕES

Ocorre que eles se esqueceram de um pequeno detalhe: aquela faixa de 30 km de terras era habitada por gente, que eram os índios nativos, os caboclos e os coronéis dominadores que viviam em toda a região desde o século XVIII. O conflito era latente, compensado pela crença religiosa, mas a fé virou estimulante da luta armada.

Isolado do litoral pela Serra do Mar, à época intransponível, o Centro-Oeste de Santa Catarina foi ocupado pelos pousos de tropeiros que levavam gado do Rio Grande do Sul a São Paulo e, no sentido inverso, erva-mate e pinhão que chegavam aos mercados da Argentina e Uruguai. As terras foram ocupadas e povoados foram formados em toda a vasta região.

Em seu livro “Messianismo e Conflito Social” (Civilização, 1966), o antropólogo Maurício Vinhas de Queiroz conta que, desde bem antes, a região já era habitada pelos índios Kaingang e Xocrén, que falavam línguas do mesmo tronco, mas não se davam bem. Os primeiros fixavam aldeias em campos abertos e cultivavam o milho; os outros eram nômades e viviam apenas da caça e coleta, nos bosques de araucárias, vales e morros.

O contexto social no período próximo ao conflito era um pouco mais complexo nas vilas e cidades dos dois estados, como registrou esse autor:

“Ali, sob o poder político e muitas vezes entrando em conflito com eles, havia uma incipiente burguesia comercial e manufatureira, havia também artesãos, como padeiros, seleiros, sapateiros, e havia, ainda, caixeiros e trabalhadores braçais. Essa gente dos burgos, de tendência oposicionista e radical, teve também seu papel na guerra do Contestado.”

O novo trecho da estrada de ferro iria dali, do rio Iguaçu, até o rio Uruguai, que divide Santa Catarina do Rio Grande do Sul. Seriam necessárias duas pontes de grande porte, portanto. Ademais, o trajeto da ferrovia levava em conta que aquela era uma área disputada até com a Argentina, como sequela da Guerra do Paraguai, e por isso seguia pela margem esquerda do rio do Peixe (afluente do Uruguai), em terreno sinuoso, difícil, em vez dos campos do planalto.

A área à Oeste desse rio, dali até a fronteira argentina, foi pleiteada pelos portenhos até 1895, quando negociações diplomáticas intermediadas pelo então presidente dos Estados Unidos, Glover Cleveland, deram ganho de causa ao Brasil. Argentina aceitou, mas ficou no ar um zumbido sobre suas reais intenções.

No entanto, desde sua formação, em 1850, o Paraná a considerava parte de seu território, e a questão se arrastou até 1910, quando o Supremo Tribunal Federal sentenciou em favor de Santa Catarina. Isso, porém, pouca diferença fazia às populações da região e à empresa construtora, embora a “região do contestado” tenha sobrevivido como referência geográfica por muito tempo ainda.

O fato é que as obras da ferrovia tiveram início de imediato, mas logo os prepostos do magnata ianque perceberam que era preciso desapropriar as terras. Começaram, porém, um processo de medo e coação, que significava expulsão. Os jagunços da Lumber andavam ostensivamente com os revólveres dependurados na cintura, como se vê nos filmes de faroeste, e não pensavam duas vezes pra atirar em quem ousasse desafiá-los.

A empresa tinha pressa, pois o acordo com o governo fixava também o pagamento por quilômetro construído. A ordem era evitar obras de arte (recortes no terreno, aterros, túneis etc.) e assentar os dormentes sobre o chão batido, com trilhos de pouca resistência, tudo de péssima qualidade, enfim. Com o tempo, a obra teve que ser praticamente refeita.

De todo modo, na construção foram contratados mais de 4.000 trabalhadores, na maioria levados de outras partes do país, especialmente do Paraná, aproveitando parte daqueles que já haviam trabalhado no trecho anterior. Era, pois, gente nova que chegava à região. Com o tempo, muitos desses imigrados saíram da empresa e aderiram ao movimento revoltoso, embora houvesse nítida distinção entre uns e outros nas relações com a empresa.

EM FAMÍLIA

Nessa etapa, entra um viés pessoal. Meu avô paterno, Pietr Sautchuk, veio da Ucrânia pro Brasil ainda criança e se fixou com a família em Marechal Mallet, no Paraná, onde foi rebatizado com o nome de Pedro. Ali estudou e cresceu. Casou-se com Martha Potowsky, nascida na parte ucraniana vizinha da Polônia, e também vinda nas hordas de imigrantes trazidos do Leste Europeu ainda no Império.

Pedro era um desses trabalhadores recrutados no Paraná. Aliás, meu pai nasceu em 1913, dentro do vagão em que eles moravam, na altura de onde é hoje a cidade de Caçador. Pedro foi, também, um dos que debandaram da ferrovia em apoio aos revoltosos, já na fase final da guerra. E depois se fixou em lote da reforma agrária no município de Cruzeiro (hoje Joaçaba).

Ali, construiu uma casa com tábuas feitas na serra de mão, criou 14 filhos, tocando agricultura de subsistência, e fez também uma escola, em área pública, em que alfabetizava seus filhos e os de outros colonos. Lecionava em várias línguas que dominava (ucraniano, polonês, alemão, italiano e português), de acordo com o gosto dos alunos. Depois, só em português, com a proibição das línguas estrangeiras já na década de 1940, próximo da 2ª Guerra Mundial.

Minha mãe, Ana Lorenzini, era filha de imigrantes italianos que se fixaram no Rio Grande do Sul, mas se mudou com um irmão mais velho que também foi assentado em um lote da colonização naquele município catarinense. Assim, ela conheceu meu pai, os dois namoraram nos bailes da paróquia e pronto. Não fosse isso, eu não estaria aqui escrevendo este texto.

Mas a memória da guerra sempre ficou presente na identidade das pessoas. Uma irmã e um irmão mais velhos ganharam “Antoninha” e “Antoninho” como segundo nome, numa referência a dois revoltosos. E minha filha mais nova, Maria Rosa, homenageia a musa-mor do conflito, sucessora do monge José Maria na liderança espiritual, como veremos mais adiante.

MESSIANISMO

A Guerra do Contestado é citada em textos históricos e mesmo em documentos oficiais como “Guerra dos Pelados” e como “Guerra dos Fanáticos”. No primeiro caso, porque os revoltosos, quando presos, tinhas as cabeças raspadas pela polícia, o que veio a convir, pra evitar piolhos, sarnas e outros bichos. No segundo, porque eles se organizavam em grupos e seguiam uma seita, com rituais e ideias messiânicas.

É certo que não havia um Euclides da Cunha acompanhando os conflitos e escrevendo algo monumental como “Os Sertões”, que descreve a Guerra de Canudos, na Bahia, menos de duas décadas antes do Contestado. Mas, de qualquer modo, esse evento da História do Brasil foi bem documentado em escritos de militares e de religiosos que viram tudo de perto e por pesquisadores que tiveram como fontes sobreviventes da guerra e reconstituíram os fatos com aguçada precisão.

Todos destacam o lado espiritualista da contenda. Contudo, muitos se aprofundam nos aspectos socioeconômicos e políticos, que são, no fim das contas, os mais importantes em resultados.

É bem verdade que, desde o período imperial (até 1889), “monges” perambularam pela região pregando coisas como o fim do mundo e curando doenças com rezas e benzeduras. Faziam as vezes de sacerdotes católicos, muitas vezes oficiando até batizados e casamentos.

O mais antigo deles foi João Maria, um italiano que, segundo o historiador catarinense Oswaldo Cabral, citado por vários autores, morreu ainda em 1870, em Sorocaba (SP). Mas, como prometia em suas pregações, esse monge “ressuscitou” na figura de pelo menos um outro andarilho que perambulou pela região do Contestado na primeira década do século passado.

Logo em seguida surgiu, no entanto, aquele que teve papel decisivo na guerra, que foi José Maria, que se dizia “irmão” do outro e também usava cabelos e barbas brancos e longos, se apoiava em um bastão nas caminhadas e curava doenças. Mas este tinha carteira de identidade. Era o ex-militar Miguel Lucena Boaventura, que teria sido cabo da Guarda Nacional no Paraná, até desertar.

Desde muito antes, a Igreja Católica havia deslocado à região um grupo de padres alemães, encarregados de se contrapor ao catolicismo rústico predominante entre os fiéis. Um deles era o Frei Rogério Neuhaus, uma personalidade por ali, que foi conversar com José Maria em seu reduto e, depois, relatou:

“Não quis dizer-me donde tinha vindo, limitando-se a declarar que era um peregrino. Ao convidá-lo para se confessar, ele me respondeu: ‘Não quero dar motivo para falarem de mim’. Não confessou, nem assistiu, no dia seguinte, à santa missa, mantendo-se deitado. Contam que chamou a confissão de bobagem.” (Transcrito por Marli Auras, em Guerra do Contestado: a organização da irmandade – Editora UFSC, 1984).

O monge sabia ler e escrever, dotes que usava com destreza em sua atividade. Nas bolsas, carregava cadernos em que anotava nomes e propriedades medicinais das plantas da região e fornecia receitas por escrito aos pacientes que atendia, de graça, em suas andanças. E, depois, demonstrou grande conhecimento no manejo de armas de fogo. Sua fama já corria solta, mas, no início de 1912, no município de Campos Novos, houve um episódio que o notabilizou de vez.

As ervas por ele receitadas curaram a mulher do poderoso fazendeiro Francisco de Almeida, que havia sido desenganada por médicos. De quebra, ele recusou terras e ouro oferecidos pelo coronel agradecido, o que lhe rendeu a reputação de homem santo, milagreiro e desapegado pelas riquezas mundanas.

Ele aceitou, contudo, um espaço no rancho do capataz da fazenda e ali montou a “Farmácia do Povo”, onde passou a atender os pacientes e promover cultos com rezas e cantorias, distribuindo panfletos manuscritos com pregações. Essas incluíam a volta da Monarquia, tese muito ao gosto da população local, que via na República o poder absoluto dos coronéis e, agora ainda mais, do magnata ianque.

Era uma permanente romaria de gente, a ponto de muitos passarem a morar nas redondezas da farmácia. E ali corriam as notícias sobre as ações da Lumber pela desapropriação da vasta extensão de terras a ela entregue pelo governo republicano. Crescia, ao mesmo tempo, um sentimento coletivo de solidariedade, irmandade.

Nas rodas de orações, o monge costumava contar histórias sobre o lendário imperador francês Carlos Magno, do século XI, que simboliza a luta da cristandade contra os mouros. Os 12 Pares de França, cavaleiros de elite que protegiam o monarca, serviram de inspiração na formação de uma guarda que ajudasse na organização e segurança daquela pequena multidão que rondava José Maria.

Esta não era uma tarefa muito difícil, pois essa história de Carlos Magno já servia de base às cavalhadas e outras festas populares então já muito difundidas nos sertões brasileiros, inclusive ali, naquelas quebradas do Contestado.

 

TAQUARUÇU

Veio a calhar, naquele momento, um convite feito ao monge pra que fosse participar da festa do Senhor do Bom Jesus, que seria realizada em Taquaruçu, distrito do município de Curitibanos, no dia 6 de agosto daquele ano (1912). Essa festa, realizada em muitos locais, reverenciava a imagem de Cristo com chagas, segurando uma cana verde nas mãos, e ocorria no fim do roçado, antes do plantio de novas lavouras.

Em verdade, porém, os organizadores do evento eram um fazendeiro, que se intitulava “pai da pobreza”, um comerciante e um roceiro que já vinham realizando reuniões de mobilização contra a ferrovia São Paulo-Rio Grande no pequeno lugarejo. Isso não foi dito, mas o convite foi aceito prontamente.

De fato, na manhazinha do dia previsto chegavam a Taquaruçu José Maria, montado em um cavalo branco que havia ganhado, e uma comitiva de umas 300 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Mas, ao final do evento, o monge e seus seguidores não foram embora – ao contrário, o séquito havia aumentado numericamente. E todos acamparam ali mesmo.

Na prática, Taquaruçu acabava de virar o primeiro dos vários “redutos” criados pelos revoltosos após o início do conflito armado. Por enquanto, porém, era um ajuntamento pacífico, voltado às atividades religiosas e de curandeiro do líder e à seleção de 24 homens que passaram a formar dois grupos de “pares de frança” do local, constantemente treinados no manejo das espadas e manobras com suas montarias.

Essa situação se prolongou por muitas semanas, até que, numa cantoria noturna, um dos violeiros e repentistas, ao final da trova, gritou “viva a monarquia!”. Nisso, foi acompanhado pelo público, que repetiu a frase diversas vezes, segundo o historiador J.O. Pinto Soares, no livro Guerra em Sertões Brasileiros (Papelaria Velho, Rio, 1931). O fato ganhou dimensões nacionais.

O fazendeiro e “coronel” Francisco de Albuquerque, intendente (prefeito) de Curitibanos por várias gestões, havia enviado uma intimação pra que José Maria fosse falar com ele, alegando doença, mas o monge não foi. Enfurecido, o chefe político telegrafou ao governador do Estado comunicando a “proclamação da monarquia” no local e pedindo socorro policial.

O governador repassou a informação ao presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, que prometeu tropas federais, mas pediu que forças estaduais fossem de imediato a Taquaruçu. Aos rebeldes, ficava claro que o cel. Albuquerque resolvera abrir guerra ao movimento.

De todo jeito, sabendo do deslocamento da polícia militar, o monge José Maria decidiu mudar o acampamento pra localidade de Irani, na parte Sul do extenso município paranaense de Palmas, onde a população era conhecida e tratada por ele como “gente nossa”. E assim, quando a polícia chegou não havia mais ninguém em Taquaruçu.

INÍCIO DA GUERRA

Temeroso de que aquelas fossem manobras em favor de Santa Catarina no domínio da área, o governo do Paraná também enviou tropas do Regimento de Segurança, chefiadas pelo coronel João Gualberto Gomes de Sá Filho, que se notabilizou como “mártir do Contestado” em jornais de então.

Gualberto trazia um bom contingente de soldados e carroções com canhões e uma grande metralhadora giratória que “corta um pinheiro numa rajada”, segundo relatos da época. Ele desfilou com a tropa pelas ruas de Curitiba antes de sair rumo a Palmas e, ignorando opiniões de chefes de polícias da região, resolveu seguir direto a Irani e atacar os rebeldes em seu reduto.

Ali, o clima era de alerta. Consta que, em posse dos seguidores do monge, havia pela menos 40 espingardas Winchester, um rifle à época muito comum, além de revólveres e facões de todos os calibres e tamanhos. A vários interlocutores que lhe indagavam sobre o que iria ocorrer a partir daquele momento, o monge respondia com frases como “somos de paz, mas se nos atacarem, vamos reagir”.

Vale lembrar que no contingente que acompanhava o monge havia grupos de diferentes localidades, e estes já tinham seus “chefes” locais. Entre eles, eram regulares as conversas sobre temas diversos, inclusive a questão de terras com a Lumber. Ou seja, eram embriões dos diversos redutos criados depois.

Jornais do Sul e mesmo do Rio de Janeiro, então capital, abriam manchetes falando da iminência do surgimento de “uma nova Canudos”, numa referência ao movimento liderado pelo monge Antônio Conselheiro que gerou sangrenta guerra (1896/1897) no interior da Bahia. O episódio, que mobilizou o Exército Brasileiro, era recente e estava vivo na memória nacional.

No dia 21 de outubro, já acampado no Irani, João Gualberto designou um chefe político local pra levar uma mensagem ao reduto de José Maria. Era um bilhete de quatro laudas escritas a lápis, em que o intimava a comparecer imediatamente ao seu acampamento, avisava que, se não fosse atendido, iria “atacar em armas” e de que “considerarei seus seguidores criminosos”.

O emissário era o “coronel” Domingos Soares e um capanga. Eles encontraram o monge ainda dormindo numa casa de morador, mas foram atendidos no próprio quarto, sentados na cama, já rodeados de seguidores. Por cerca de uma hora, José Maria ouviu argumentos, mas respondia dizendo que aquilo era uma ordem de prisão e que ele e seu séquito não se entregariam. De todo jeito, pediu 24 horas pra que se dispersassem.

De volta, Domingos tentou convencer Gualberto a aguardar, mas este resolveu atacar naquela mesma noite e pôs a tropa a caminho. Dos 400 homens que saíram de Curitiba, apenas 64 o acompanhavam na missão – os demais haviam ficado próximo ao rio Iguaçu.

No entanto, na madrugada, ao atravessar um córrego arenoso, um mateiro contratado no local assustou a mula com uma vela acesa, e o animal, ao rodopiar, virou a carroça e derrubou a metralhadora na água, areia e lama, inutilizando a arma. Vinhas de Queiroz conta que participantes da empreita asseguraram a ele que o mateiro Roque teria agido de propósito. De todo jeito, Gualberto resolveu seguir adiante.

Ao raiar do dia, o ataque. No reduto restavam uns 200 homens, mas um pequeno grupo no centro do acampamento parecia querer escapar por um grotão onde desapareciam com facilidade. Mulheres com crianças saíram primeiro. Os militares cercaram o local disparando contra o ajuntamento e começou a troca de tiros.

De repente, porém, os rebeldes surgem da mata por detrás da tropa, já atirando e se atracando fisicamente. No tumulto, o monge José Maria foi baleado e caiu morto. Seus seguidores, enfurecidos, cercaram o comandante João Gualberto e o mataram a pauladas e facadas. O resto da soldadesca fugiu do local, correndo.

No final das contas, apesar da importância das baixas de ambos os lados, o número de mortos foi pequeno: seis revoltosos e 10 militares (dois sargentos, três cabos e cinco soldados). Dá pra imaginar, contudo, o tamanho da chacina que a metralhadora teria provocado, se estivesse funcionando.

Os corpos de José Maria e seus seguidores foram sepultados ali mesmo, em um pequeno cemitério ainda hoje preservado, próximo à cidade de Irani (SC). Houve dispersão temporária dos revoltosos, mas a guerra estava apenas começando.

NOVAS ETAPAS

Em pequenos grupos, os devotos foram deixando o território considerado paranaense, onde a perseguição policial parecia mais intensa, e voltaram às suas casas. Com a morte do líder, as autoridades dos governos estaduais e federal supunham que o movimento morreria também. Mas logo perceberam que estavam muito enganados.

Ficava claro, assim, que José Maria não era o líder absoluto, mas havia a lenda da ressurreição e uma causa maior no movimento. Suas ideias eram compartilhadas por grande número de seguidores, e estes mantiveram muito vivas suas relações, com reuniões e outras atividades localizadas se proliferando por toda a região. Aos poucos, um núcleo central voltou a abrir o acampamento de Taquaruçu, no município de Curitibanos.

Esse reduto foi atacado mais de uma vez, sem sucesso, até um ataque definitivo em fevereiro de 1914. Este contava com tropas federais e bombardeou com canhões e metralhadoras giratórias, de alta potência. Cerca de 200 casas e uma igreja lotada de gente foram bombardeadas e queimadas. A mortandade foi grande.

Os sobreviventes se mudaram, então, a Caraguatá, em Perdizes Grandes (hoje Lebon Regis), onde já se formara um reduto em área montanhosa, mais protegida pela geografia. Ali as forças oficiais sofreram vários reveses, até que o governo o federal resolveu enviar à região a elite de oficiais que havia comandado a aniquilação de Canudos.

Assim, o avanço de tropas federais, a partir de agosto de 1914, teve no comando-geral o general Fernando Setembrino de Carvalho, com tropas de todo o país.

A Lumber, no entanto, intensificara a retirada de madeira e expulsão de posseiros. Abriu ramais ferroviários provisórios pelos quais circulavam vagões, locomotivas e guindastes a vapor. As pesadas toras eram derrubadas no machado e serrote pelos trabalhadores e arrastadas por centenas de metros por cabos de aços até os trilhos, provocando enorme devastação na flora local, inclusive destruindo os pés de erva-mate que estivessem pelo caminho.

Vale lembrar que os governos dos estados, como forma de serenar ânimos, em anuência com o poder federal, lotearam alguns pedaços de terras aqui e acolá e os ratearam entre posseiros. E a empresa, por sua vez, aproveitava a valorização crescente das áreas onde explorava madeira (e não era dela) e as dividia em lotes rurais pequenos (até 40 hectares), que tentava vender, como forma de se desfazer delas rapidamente, mas aumentando seus ganhos.

Em Caraguatá, com a morte de lideranças em Taqaruçu, o comando foi exercido por algum tempo por um juiz de paz da região que havia aderido à luta junto com sua mulher, desde antes fiel ao monge. Mas logo surgiu a adolescente Maria Rosa, de 15 anos, que era sempre acompanhada por uma amiga chamada Antoninha e que dizia ser vidente e ouvir mensagens de orientação às noites, que repassava aos comandados.

Rosa era filha do lavrador Elias de Souza, o Eliasinho, pouco sabia ler e escrever, mas era extremamente inteligente, vivaz, sorridente e bem-disposta a tudo, segundo relatos de muitos que a conheceram bem. Ela não comunicava os comandos diretamente aos seguidores em geral. Narrava a um grupo de líderes, uma espécie de conselho militar, e este é que os repassavam às lideranças que despontassem nas diversas etapas de lutas.

Na prática, Maria Rosa foi por longo tempo a comandante dos guerrilheiros, participando das refregas em um cavalo branco, com arreios cobertos de peles e enfeitados com medalhas. Já em meados de 1915, porém, ela foi aos poucos deixando a tarefa nas mãos de Chiquinho Alonso e Adeodato Manoel Ramos, lideranças forjadas na própria guerra que ampliaram bastante a presença dos rebeldes em toda a região. Ela morreu em combate.

E assim foram surgindo redutos cada vez maiores, em vários pontos de toda a região, até o de Santa Maria, na parte Norte do Estado, que chegou a ter 50 mil pessoas adultas. Só nos bombardeios finais deste grande reduto, com mais de 7 mil homens sob o comando do general Setembrino, os próprios relatos do Exército revelam ter incendiado mais de 5 mil casas. Uma carnificina gigantesca.

Era a essa localidade que se dirigia um avião de marca Morane-Saulnier, de fabricação francesa, dotado de metralhadora e pilotado pelo tenente (do Exército) Ricardo João Kirk. No entanto, ele caiu misteriosamente, e o piloto morreu entre os municípios de Porto União e Palmas, ainda no dia 2 de março de 1915. Assim, sua participação na guerra ficou apenas na história da aviação.

São incontáveis os combates ocorridos nos anos de 1914 e 1915, pois muitos foram a vilas e cidades já estabelecidas que sofreram ataques fulminantes a cartórios, estações ferroviárias, cadeias, centrais de telégrafos etc. Em Curitibanos, porém, 212 rebeldes entraram quando a população, chefes políticos, autoridades do governo, da justiça e até a polícia já tinham fugido. Saquearam e puseram fogo em tudo, menos nas muitas casas em que havia retratos do monge José Maria ou frases nas paredes.

Eram corriqueiros, também, os ataques a fazendas de coronéis, de onde os sertanejos confiscavam gado e mantimentos de armazéns destinados a seus redutos. Eram armadas, de igual modo, emboscadas nos locais mais inesperados e provocavam baixas sensíveis nas forças militares, inclusive no moral.

FIM DO CONFLITO

Depois de Santa Maria, muitos rebeldes ainda se refugiavam em redutos menores espalhados por toda a região, bem posicionados, o que tornava difícil seu combate. Mas também foram sendo arrasados, agora sem que fossem poupadas as mulheres e crianças, o que ocorria também com grupos que tentavam fugir, errantes. Poucos eram os presos, mas estes eram enfileirados e fuzilados sumariamente. Era janeiro de 1916.

Isto não ocorreu com Adeodato, o último líder do movimento. Ele foi preso e levado a Florianópolis, a capital. E chegou a ser julgado e condenado, mas viveu sete anos no presídio, até tentar fugir e ser morto a tiros ali mesmo.

Não morria com ele, porém, o ideário da revolta do Contestado. No fim das contas, o movimento forçou profunda mudança na estrutura social e econômica daquela parte do Brasil. A proposta de uma sociedade solidária, sem classes, autossustentável, avessa ao consumismo, mostrou-se um sonho. Mas, detonou o poder absoluto dos coronéis. Outras relações surgiram em seu lugar – são as que lá estão até nossos dias.


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Réquiem para o Cerrado – O Simbólico e o Real na Terra das Plantas Tortas

Uma linda e singela história do Cerrado. Em comovente narrativa, o professor Altair Sales nos leva à vida simples e feliz  no “jardim das plantas tortas” de um pacato  povoado  cerratense, interrompida pela devastação do Cerrado nesses tempos cruéis que nos toca viver nos dias de hoje. 

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Jaime, ficou implícito sua disposição de traçar a importância desta história para o redesenho da realidade da região que tanto contribuiu para sua democracia e a equidade.

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