Covid-19: Brasil à deriva no mar da pandemia
País do futebol vira destaque mundial no número diário de casos e mortes pelo coronavírus, no ranking do desmatamento e da degradação ambiental
Por José Eustáquio Diniz Alves | Projeto Colabora
O Brasil está parecendo um barco à deriva na tempestade, que lança constantes pedidos de socorro, mas a guarda costeira finge não ouvir os gritos de SOS. Da mesma forma, a população brasileira clama por orientações e dados sobre a pandemia do novo coronavírus, mas o Ministério da Saúde se recusa a cumprir o seu papel e, covardemente, não lança nenhuma boia salva-vidas.
O barco está submergindo e o número de mortes está subindo. O Brasil já ultrapassou a Itália em quantidade de falecimentos decorrentes da covid-19 e pelo terceiro dia consecutivo lidera o horrendo ranking global de vidas perdidas em 24 horas. E o mais grave é que os números oficiais estão, reconhecidamente, subestimados e não refletem a triste realidade das vítimas da pandemia. Mesmo assim o quadro é horripilante.
Pouco antes da meia-noite, quem conseguiu ficar acordado, soube pelo site governamental “Covid.saúde” que o Brasil somou 614.941 pessoas infectadas e acumulou 34.021 vítimas fatais. Desta maneira, no dia 04 de junho, em 24 horas, foram 30.925 novos casos (mais que todos os casos da Indonésia que tem 273 milhões de habitantes) e foram 1.473 novos óbitos (mais de uma morte por minuto), com uma taxa de letalidade de 5,5%.
A pandemia e o flagelo ecológico
Mas hoje, 05/06, é o Dia Mundial do Meio ambiente e não podemos ignorar uma outra “pandemia” que provoca destruição em larga escala há décadas em terras brasileiras. Neste outro flagelo, as vítimas fatais são a flora e a fauna e o “vírus” destruidor somos nós, seres humanos que se enriquecem às custas do empobrecimento da natureza.
Inquestionavelmente, a vida – humana e não humana – está em perigo no Brasil. E mais prejudicial do que a inação do acéfalo Ministério da Saúde é a ação proposital do Ministério do Meio Ambiente, dirigido por Ricardo Salles, que se declarou aliado do coronavírus e defendeu passar “a boiada” e mudar as regras ambientais para viabilizar o desmatamento, a destruição da fauna e o ecocídio, enquanto a atenção da mídia está voltada para o combater à covid-19. Desta forma, o Brasil não é líder apenas no ranking da Sars-Cov-2, mas também no ranking do desmatamento e da degradação ambiental.
A Mata Atlântica, que ocupava uma área de aproximadamente 1.300.000 km2, estendendo-se por 17 estados do território nacional, hoje tem apenas uma extensão de cerca de 8% do original em fragmentos acima de 100 hectares bem conservados. O Cerrado que é o segundo maior bioma da América do Sul, ocupando uma área de 2.036.448 km2, cerca de 22% do território brasileiro e onde encontram-se as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata) já teve 50% de sua área degradada.
O Pantanal que é considerado uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta está permanentemente intimidado, pois tem somente 4,4% da sua área protegida por unidades de conservação. A caatinga que ocupava uma área de cerca de 844 mil quilômetros quadrados entre o norte de Minas Gerais e o Nordeste – equivalente a 11% do território nacional – tem sido desmatada de forma acelerada nos últimos anos, devido, principalmente, ao consumo de lenha nativa e a conversão de áreas naturais para pastagens e agricultura.
O Pampa, localizado no estado do Rio Grande do Sul, que ocupava uma área de 176.496 km², correspondendo a 63% do território estadual, tem sofrido com a expansão da monocultura e das pastagens. A Mata de Araucária que se estendia pelos territórios de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul está em total perigo de extinção. Os Mangues, que desempenham um importante papel como exportador de matéria orgânica para os estuários, contribuindo para a produtividade nas zonas costeiras e das áreas que são grandes “berçários” naturais, estão sendo aterrados e eliminados em toda a costa brasileira. A Mata de Cocais, situada entre a zona de transição dos biomas da Amazônia e da caatinga, está sendo savanizada ou desertificada.
A Floresta Amazônica, o maior bioma do Brasil com uma área superior a 5 milhões de km2, onde crescem 2.500 espécies de árvores, 30 mil espécies de plantas e incontáveis espécies animais já teve mais de 20% da sua área destruída totalmente e é vítima constante de desmatamentos, garimpos ilegais, mineração predatória e queimadas criminosas. A vida está sendo destruída na Amazônia em proporção astronômica.
Os rios brasileiros foram desviados, represados, soterrados ou, simplesmente, transformados em escoadouros da poluição, com a consequente morte dos peixes e da vida fluvial. O rio São Francisco – conhecido como o rio da integração nacional – está morrendo aos poucos em função do processo de desmatamento, sobre uso das águas, assoreamento, transposição e construção de barragens para as usinas hidrelétricas. O rio Ipiranga, citado no hino nacional, e o rio Carioca, referência original do gentílico dos habitantes do Rio de Janeiro, são dois exemplos do descaso e do menosprezo com o valor intrínseco da natureza, pois foram enterrados vivos e viraram canal de esgoto.
O Meio Ambiente e Planeta dos Homens
O Dia Mundial do Meio Ambiente foi criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1972, marcando a abertura da Conferência de Estocolmo sobre Ambiente Humano. O dia 05 de junho passou a ser uma data de festa e de reflexão sobre a relação humanidade e natureza.
Depois da Conferência de Estocolmo duas outras grandes Conferências foram realizadas, uma em 1992 e outra em 2012, ambas no Rio de Janeiro. Nos dois eventos, a palavra de ordem que passou a orientar a comunidade internacional foi o dístico “desenvolvimento sustentável”. Na Rio+20 foi lançada as bases dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que é um dos três pilares da Agenda 2030 da Nações Unidas.
Em 2015, nos 70 anos da ONU, foram realizados três grandes eventos: 1) A terceira Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FpD3), em Addis Abeba , capital da Etiópia, entre os dias 13 e 16 de julho; 2) A Cúpula do Desenvolvimento Sustentável da ONU, em Nova Iorque, EUA, de 25 a 27 de setembro, para aprovação dos ODS; 3) E a 21ª Conferência do Clima (Conferência das Partes, COP-21), Paris, França, de 30 de novembro a 11 de dezembro, tendo como principal objetivo aprovar um novo acordo global entre os países para diminuir a emissão de gases de efeito estufa e reduzir o ritmo de aumento do aquecimento global, objetivando limitar o aumento da temperatura global em 1,5º C, ou no máximo a 2º C até 2100.
Estas são as bases que guiam a governança internacional na área sócio ambiental, no quindênio 2015-2030. Contudo, a despeito da abrangência e das boas intenções da Agenda 2030, não existe consenso nem sobre os fundamentos, nem sobre os prazos ou as formas de implementação da Agenda. Alguns críticos acham que as preocupações ecológicas são exageradas e prejudicam o bom funcionamento das empresas e do mercado, enquanto outros acham a agenda é tímida e insuficiente para lidar com as emergências climáticas e ambientais.
Além do mais não existe consenso sequer sobre o conceito de desenvolvimento sustentável, que se sustenta no tripé econômico, social e ambiental. Na verdade, nos padrões hegemônicos, o sistema de produção e consumo (tanto de cunho capitalista, quanto socialista) não consegue manter um crescimento demoeconômico e ser, ao mesmo tempo, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Por isto se diz que o desenvolvimento sustentável é um oximoro e o tripé da sustentabilidade um trilema (Martine e Alves, 2015).
Ou seja, existe uma tensão no ar e, apesar da necessidade de respostas urgentes para a crise ambiental, há muitas soluções parciais, alternativas conflitantes e até propostas enganadoras que prometem um mundo vicejante e florido, mas que só entregam uma maquiagem verde.
É neste cenário dramático, um tanto quanto austero, intransigente e enternecedor, que surge o filme “Planet of the Humans ”, produzido por Michael Moore e escrito e dirigido por Jeff Gibbs. O documentário tem provocado muita polêmica e muita acusação, o que, por si só, é muito ruim, pois desvia o foco da discussão principal que é o debate sobre as alternativas para enfrentar a crise climática e ambiental. Assim, para não jogar mais álcool na fogueira, vamos nos limitar a abordar apenas dois pontos documentados no filme e que são essenciais para mitigar a emergência climática.
A mudança da matriz energética e o papel das energias renováveis
A primeira constatação inequívoca é que precisamos parar de usar combustíveis fósseis e mudar a matriz energética para fontes renováveis e mais limpas. Também é essencial abandonar a indústria dos automóveis com motor à combustão interna e substituir pelos veículos elétricos e compartilhados. É fundamental descarbonizar a economia. Como se costuma dizer: ou o futuro será renovável ou não haverá futuro.
Porém, a energia renovável não é uma panaceia nem muito menos uma cloroquina da vida. Como mostrou Ted Trainer (2012) é falso acreditar que as fontes alternativas de energia serão capazes de sustentar uma sociedade de consumo em constante expansão. Também faz tempo que Gail Tverberg (2017) alerta sobre a venda de uma ilusão em nome das energias “limpas”, pois, embora o sol e o vendo sejam fontes naturais, abundantes e renováveis, são também fontes energéticas intermitentes e que requerem a extração de muitos recursos naturais não renováveis para a construção das torres eólicas e os painéis solares. Estas fontes energéticas não são capazes de fazer milagres e nem superar o imperativo do metabolismo entrópico.
O professor de economia ecológica da Universidade Federal do Paraná, Júnior Garcia, em artigo recente, “Ilusão Verde” (05/05/2020), concorda com o conteúdo da crítica feita no filme de Gibbs e Moore, de que é quimera acreditar que as tecnologias verdes sozinhas seriam capazes de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, salvar a biodiversidade e gerar emprego verde e renda, sendo uma tábua salvadora do padrão vida da sociedade capitalista. Ele diz que a problemática ecológica “não se resume apenas as emissões, mas envolve um amplo conjunto de impactos ambientais decorrentes da ação humana, tais como desmatamento, perda de biodiversidade, degradação pela mineração, poluição química, entre outros. Em segundo lugar, a Lei da Entropia – 2ª Lei da Termodinâmica – mostra, de maneira irrefutável, que não existe tecnologia verde ou limpa como vendido pelos capitalistas e alguns ‘ambientalistas’, isso porque não existe nenhuma tecnologia moto perpétua ou moto contínua”.
Em síntese, energias renováveis e carros elétricos sim, mas maquiagem verde não. Por exemplo, existe uma grande discussão sobre até que ponto a proposta de um “novo acordo ecológico” (Green New Deal) é capaz de resolver de fato os desafios ambientais e se é possível levar à frente um plano assim sem lidar com a questão do decrescimento (Pollin, 2018).
De fato, o filme “Planet of the Humans” parece ter errado na calibração da crítica e exagerado nas flechas atiradas no alvo de alguns atores e atrizes, além de ter dado munição para os negacionistas do clima e as forças antiambientais. Mas um movimento que quer mudar o mundo não pode se abater com críticas e muito menos pode interditar o debate. É preciso ter maturidade para dialogar e aperfeiçoar a prática em defesa de uma ecologia, não só integral, mas o mais profunda possível.
É claro também que todas estas críticas não valem para o Brasil que, por assim dizer, está numa fase “pré-histórica”, pois tanto os governos de direita, quanto de esquerda, jogaram todas as fichas na exploração das jazidas abissais do petróleo do pré-sal e venderam a ilusão que se tratava de um “passaporte para o futuro”. Só esqueceram de dizer que o tal futuro era o “futuro do pretérito”.
Sobrecarga da Terra e redução da Pegada Ecológica
Os tecnófilos cornucopianos, como Steven Pinker, tentam vender a ideia de que a genialidade humana e o progresso técnico e científico são a solução para todos os males da civilização. No livro “Enlightenment Now” ele diz que “vivemos no melhor dos mundos” e que a humanidade vai vencer a escassez e já caminha para a conquista da abundância e o fim das epidemias.
Para Pinker e para os defensores da “Curva Ambiental de Kuznets”, a destruição ambiental provocada pelo desenvolvimento poderá ser resolvida com mais desenvolvimento e com tecnologias verdes que garantiriam a sustentabilidade ambiental. Porém, a análise empírica não valida esta hipótese (Alves, 2012) e muitas soluções verdes são apenas produtos do marketing. Neste sentido, podemos interpretar o filme de Gibbs e Moore como uma tentativa de rebelião contra o discurso empresarial que tenta se apropriar das bandeiras ambientalistas.
De fato, a economia verde não leva em consideração que a humanidade já ultrapassou os limites da resiliência do Planeta. Desde 1770, em 250 anos, a economia global cresceu 134 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 14,6 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o ocorrido em todo o período dos 200 mil anos anteriores, após o surgimento do Homo sapiens. Mas todo o crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas da degradação ambiental. O conjunto das atividades antrópicas ultrapassou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica da humanidade extrapolou a Biocapacidade do Planeta. A dívida do ser humano com a natureza cresce a cada dia e a degradação ambiental pode, no limite, destruir a base ecológica que sustenta a economia e a sobrevivência humana.
Artigo de Steffen et. al (2015), que atualizou a metodologia e os dados das fronteiras planetárias, mostrou que quatro das nove fronteiras já foram ultrapassadas: Mudanças climáticas; Perda da biodiversidade; Mudança no uso da terra e Fluxos biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio). Duas delas, a Mudança climática e a Perda de biodiversidade, são o que os autores chamam de “limites fundamentais” e tem o potencial para conduzir o Sistema Terra a um novo estado que pode levar a civilização ao colapso.
Neste quadro, não é possível atingir a sustentabilidade ambiental apenas com a defesa de tecnologias verdes. Evidentemente, toda tecnologia menos poluidora é melhor do que uma tecnologia poluidora. O carro elétrico da Tesla, ambientalmente, é melhor do que o SUV da General Motors. Mas o que está em jogo é mais do que isto, é o modelo de sociedade baseada no consumo conspícuo que exige cada vez mais recursos naturais, mais energia e mais áreas ecúmenas em detrimento da vida natural e do equilíbrio dos biomas.
No livro “Growth: From Microorganisms to Megacities”, o cientista checo-canadense Václav Smil questiona a ideia do desenvolvimento ilimitado e chama a atenção para o fato de que temos um Planeta único e que os recursos naturais que sustentaram o exponencial crescimento da população e da economia nos últimos 250 anos, agora estão se esgotando.
Como mostrei no artigo “Crescimento demoeconômico e a emergência climática” (Alves, 07/12/2019), aqui no #Colabora, não existe população sem consumo e nem consumo sem população. Para sobreviver no mundo moderno, além das necessidades básicas, os habitantes da Terra precisam de moradia, transporte, equipamentos domésticos (fogão, geladeira, móveis, televisão, rádio, telefone, computador etc.) serviços de saúde, educação, telecomunicações, lazer, turismo etc. Todas as pessoas precisam de uma porção mínima de alimento e não é simples produzir comida para saciar o apetite de quase 8 bilhões de habitantes.
O referido artigo mostra uma série de gráficos que indicam, de forma inequívoca, a correlação entre o crescimento da população e da economia mundial e a elevação da temperatura global e conclui dizendo que “reduzir o consumo conspícuo dos ricos e estabilizar o crescimento da população mundial são duas tarefas imprescindíveis para evitar um caos climático que pode colocar em risco, não só a vida selvagem e a sobrevivência dos ecossistemas, mas a própria existência da humanidade e a permanência de suas conquistas civilizatórias. As novas e as futuras gerações não desejam herdar uma ‘Terra Estufa’ e não querem ser traídas pelas lideranças atuais”.
Em síntese, vivemos no Antropoceno que é uma Era sincrônica à modernidade urbano-industrial e que está levando a Terra a uma espiral da morte. Hoje em dia estamos preocupados com as vidas perdidas para a pandemia do novo coronavírus. Mas a 6ª extinção em massa das espécies e a crise climática são ameaças maiores e mais urgentes que a governança global insiste em empurrar com a barriga. Todavia, o tempo para reverter esta espiral fúnebre está se esgotando.
O documentário “Planet of the Humans” alerta para esta realidade e, mesmo que de maneira atrapalhada, questiona e reforça o debate sobre a ilusão verde. Mas, o fato incontestável, é que o mundo terá que fazer uma “quarentena ambiental” e será necessária uma ação radical para salvar a vida no Planeta. E, a despeito da ideologia do desenvolvimentismo populacionista e da tecnofilia, evitar uma Terra inabitável e inóspita envolve o decrescimento demoeconômico.