Da democracia ateniense à socialista

Da democracia ateniense à socialista

A Antiguidade costuma ser apresentada como um capítulo da história do escravismo, que leva à estagnação tecnológica.

Luiz Marques/Fundação Perseu Abramo

A Antiguidade costuma ser apresentada como um capítulo da história do escravismo, que leva à estagnação tecnológica. O bloqueio ao desenvolvimento das forças produtivas e a redução da oferta de escravos teria provocado o declínio do império romano. A ligação do trabalho e a escravatura gerou opreconceito contra os trabalhadores e o desprezo do labor. Nasciam as “classes parasitas”.

Ainda que a produção dos camponeses e artesãos livres superasse a dos produtores agrícolas e a dos industriais escravizados, as sociedades de antanho são catalogadas com a etiqueta-pecha “modo de produção escravagista”, dado o proveito de lides forçadas para a extração do excedente. Assim, mantém-se a desconfiança sobre outras modalidades de produção, dominantes, mas não marcantes nos campos e nas cidades clássicas. A chaga do racismo, porém, converteu-se em grande fiadora da escravidão apenas nas economias ocidentais. O longo convívio com o mal aperfeiçoou a maldade.

“Se Atenas corresponde à descrição de uma sociedade escravagista, ao mesmo tempo, é a pólis mais democrática e, na qual, a maioria dos cidadãos tinha de trabalhar para viver”, aponta a professora de Ciência Política na Universidade York, de Toronto, Ellen Meiksins Wood, em Democracia contra capitalismo. Fugindo à regra tácita que, à época, separa a esfera política governamental do circuito produtivo, os trabalhadores livres tornaram-se os legítimos dirigentes da cidade-Estado. Da aliança dos camponeses-cidadãos e artesãos surge o que se denomina demo (povo) – a porta de entrada da democracia, no século V a.C. O alinhamento de classes numa unidade cívica e militar singularizou Atenas, entre as sociedades pré-capitalistas. Sua organização sociopolítica equivaleu à invenção da roda. Despertou a utopia, apesar da vergonha extra-econômica que fere nossos sentimentos, hoje.

O valor do trabalho

A inovação ateniense permitiu aos trabalhadores livres deliberar sobre o seu destino, apoiados no mito de Prometeu para quem as “artes práticas” fundamentam a civilização. Explica-se o magnífico templo a Hefestos, o deus da forja. Não à toa, a divindade de Atenas, a deusa Atena, é “a padroeira das artes e ofícios”. Os prestadores de bens e serviços receberam o estatuto de cidadãos. A isonomia evocou a igualdade, quebrou a régua da divisão social do trabalho que estigmatizava os produtores.

Nas ágoras, os gregos postulavam em assuntos atinentes a um saber específico – a construção de um navio ou de um prédio – que projetistas navais e arquitetos se manifestassem. A razão é que tais afazeres têm por pressuposto o ensino-aprendizagem. Mas se o tema implicasse o ato de governar: “O homem que se levanta para dar conselhos pode ser um construtor, ou mesmo um ferreiro ou um sapateiro, mercador ou armador, rico ou pobre, nascido ou não de boa família; afinal, a assembleia não considera que os assuntos políticos possam ser ensinados”, sublinha Protágoras (apud Platão). A tradição filosófica ocidental e a práxis libertadora assentam-se no reconhecimento ético-político do trabalho, que o capitalismo reduz ao sequestro da mais-valia para a gananciosa acumulação.

Percebe-se a importância da autonomia coletiva e a revolucionária inserção nas estruturas de poder, da memorável urbe. Para projetar o futuro, há que historicizar o habitus dos antigos e seu apego à liberdade pública, sem cair em armadilhas conceituais. “O eclipse do cidadão trabalhador na Atenas democrática tem menos a ver com as realidades da democracia ateniense do que com a política da Europa moderna”, observa Ellen Meiksins Wood. A assombração dos grilhões alimenta o discurso de medo, com o propósito de perpetuar a ideia de que a divisão do trabalho é parte orgânica da vida social, e se precaver das revoluções. O espantalho ideológico pasteurizou o conservadorismo reaça.

Participação cidadã

A ingerência plebeia na política é o problema que sempre assustou os inimigos da democracia. A condenação das limitações morais não pode jogar fora a criança com a água suja, da bacia. É falsa a equiparação com o regime de plantation (latifúndios, serviço escravo, monocultura, exportação), implantado pelas nações europeias nas Américas, África e Ásia. Este passado triste não pertence a outrem; é nosso. A trilogia escrita por Laurentino Gomes, Escravidão, resolve qualquer dúvida.

Cornelius Castoriadis repudia objeções anacrônicas à segregação de escravizados e mulheres. Ora, foi preciso 2.400 anos para acabar com a instituição excludente encerrada em fins do século XIX. Não obstante, casos à mancheia de trabalho escravo são denunciados todos os dias. A extensão dos direitos políticos às mulheres só chegou a Nova Zelândia, em 1893; na Finlândia, em 1906; na Grã-Bretanha, após a I Guerra Mundial; no Brasil, na Constituição de 1934; na França, em 1945; na África do Sul, em 1993; na Arábia Saudita, em 2011. Não se deve, por presunção, atirar pedras na alvissareira governabilidade conquistada em priscas eras, que segue inspirando sonhos e lutas.

Detratores agem como o quero-quero, gorjeiam longe do ninho para ocultar que, no feudalismo, a igualitarização jurídica e a equissonância de prerrogativas mudaria a condição dos servos. Mas, no capitalismo, a universalização dos predicados políticos e civis deixou intocadas as relações de propriedade entre capital e trabalho. Os direitos formais não mexeram nas desigualdades sociais, esgarçadas na fase neoliberal. As elites econômicas temem perder o poder de expropriação com o empoderamento do povo. Eis a diferença entre a democracia ateniense e a democracia capitalista.

Contribuição de Lula

Em consequência das 30 mil cabeças guilhotinadas na Revolução Francesa, cujos protagonistas cultuavam a Antiguidade, a Europa responsabilizou as assembleias em praça pública pelo período de Terror. Não existe uma estação de metrô em homenagem ao jacobino Robespierre, em Paris. Os referendos populistas à la De Gaulle (1958, 1969) aumentaram a ojeriza às formas democráticas não representativas, no velho continente. Circunstância atenuada com a propagação internacional do Orçamento Participativo (OP), de Porto Alegre, sede primordial do Fórum Social Mundial (FSM).

Após a vitória liderada por Clístenes contra uma tirania, Atenas transforma-se no leitmotiv da busca pela supressão das iniquidades nas metrópoles, em favor da distribuição de equipamentos urbanos nas periferias – mais do que os levantes insurrecionais de Petrogrado (1905) ou Budapeste (1919). A sociedade civil responde com mobilizações fragmentárias sobre “a cidade que queremos” (cultura, educação, mobilidade, meio ambiente, etc). Com o selo do PT, a experiência do OP expandiu-se por ambos os hemisférios. A primeira eleição de Lula da Silva potencializou as Conferências Nacionais responsáveis por políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro. No atual mandato, o presidente radicaliza. O Plano Plurianual Participativo, com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), orienta a Lei de Orçamento Anual (LOA). Uma proeza diante da retranca formada no Congresso Nacional.

Em 2023, o PPA Participativo organiza-se em instâncias: a) Fórum Interconselhos, que articula as setoriais nacionais e o Conselho de Participação Social (CPS); b) Plenárias Estaduais presenciais, que têm reuniões preparatórias e; c) Plataforma Digital, para apresentação e votação de propostas. Nas plenárias, 309 movimentos e organizações fizeram uso da palavra, no total de 34 mil partícipes. A internet somou 8 mil propostas, 1,5 milhão de cadastros e 4 milhões de internautas com acesso à plataforma. O projeto de bem-estar social fincou raízes. Comuns familiarizam-se com a máquina estatal. A engrenagem cumpre um papel estratégico para a transição até outro modelo civilizacional. A igualdade de gênero e raça distingue a democracia socialista da ateniense, contemporaneamente.

Thiago de Mello saúda a notícia: “E de repente a manhã – manhã é céu derramado, é claridão, claridão – foi transformando a cidade / numa praça imensa praça / e dentro da praça o povo. / Dentro desta manhã / vou caminhando. E me vou / vou no rumo da manhã. / A beleza mensageira / desta manhã / sobrepairando a cidade / se deu ao povo”. A cidade tem nome e título de eleitor – Brasil.

Fonte: Fundação Perseu Abramo Capa: Getty Images


Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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