O artigo mostra o autor de Dom Quixote preocupado com uma escrita pautada na naturalidade no estilo e que, aos poucos, sem rebuscamentos artificiais, descortina em cena elementos essenciais. São eles a palavra, a língua falada, a língua escrita e as tramas amalgamadas por meio de um “longo diálogo entre o cavaleiro e seu escudeiro, entre o letrado e o analfabeto”, em que “tudo se inicia pela leitura e pela construção de uma personagem que, mais do que nada, é vítima de suas próprias leituras”.
Na obra, os múltiplos usos da linguagem, convertidos no fazer poético, são objeto de diálogos e discussões das personagens, em que também a arte da narrativa se torna um tema, chamando a atenção do leitor, não apenas sobre “o que se narra, mas também sobre o modo de narrar”, ou seja, ”o que hoje poderíamos entender como sendo um diálogo entre verdade poética e verdade histórica”, explica a autora.
Apesar das divergências, Dom Quixote e Sancho Pança se respeitam e admiram-se mutuamente: se encontramos no livro as loucuras do cavaleiro, também encontramos “as situações mais admiráveis”; se encontramos as previsíveis prudências de Sancho.
Também encontramos “as mais verossímeis” – sobretudo, há, na história, momentos impagáveis de amizade, ensinamento e de convivência entre as duas personagens. Sancho desiste de convencer seu cavaleiro de que “moinhos não são gigantes, carneiros não são exércitos, estalagens não são castelos”.
Mas no decorrer da trama, Sancho, um lavrador rústico, vai ganhando autoconfiança “e fica mais senhor de sua ação”, sendo capaz de inventar para seu amo o inquietante relato sobre o encantamento de Dulcinéia, a amada do cavaleiro, que, de uma “dama etérea” se apresenta como “uma rústica lavradora”.
Por sua vez, Quixote se preocupa com a formação de seu escudeiro quanto ao modo de “agir, de pensar e sobretudo no que se refere a seu modo de falar”.
Sancho a cada momento se mostra mais preparado para enfrentar as agruras da vida de escudeiro de um cavaleiro andante muito singular” que, no final das contas, proporciona-lhe uma vida muito animada e alegre.
Um dos momentos em que a amizade entre ambos se evidencia é quando Sancho, em um diálogo com uma senhora aristocrata – a duquesa – manifesta sua total fidelidade a Dom Quixote, mesmo que isso ponha em risco o tão almejado governo de uma ilha, algo que ele sempre desejou.
Essa relação de amizade, fiel e sincera, aparentemente inviável, entre um intelectual e um analfabeto, constitui, na realidade, o eixo a partir do qual surge uma série de aventuras, diálogos e conversações entretidas, indagações sobre a escrita, sobre diferentes gêneros literários, sobre a própria obra, sobre o que vem a ser verdade poética e verdade histórica, construindo, assim, uma narrativa complexa e surpreendente, em que realidade e sonho se mesclam tão perfeitamente, assim como a arte se integra na vida.
Maria Augusta da Costa Vieira – Professora titular de Literatura Espanhola do Departamento de Letras Modernas (FFLCH-USP), pesquisadora do CNPq e detentora do “Prêmio Jabuti”, em 2013, pela publicação de A narrativa engenhosa de Miguel de Cervantes: estudos cervantinos e recepção do Quixote no Brasil. mavieira@usp.br. Margareth Artur / Portal de Revistas USP. Matéria extraída do Facebook de Thâmar de Castro Dias. Imagem de capa: deolhonotexto