Em busca da memória: uma flor que tem espinho
– Eu sei… eu sei, ele esteve com a gente há dois anos no congresso em Dourados. É o…. o…. Eu sei quem é, é o marido da…. da…. daquela antropóloga que acaba de organizar o livro monolíngue Ñande Ypykuéra ñe’ẽngue.
– … É. É isso mesmo, a mulher dele é a…. Como é mesmo o nome dela? Não é possível que eu tenha apagado, cara! Minha memória está assim…. as lembranças voam como um passarinho. Agora são dois problemas: o nome dele e o dela.
– Calma. Passarinhos voltam ao ninho. A gente já vai lembrar. Vamos conversando, sem ansiedade, que os nomes hão de vir sozinhos – contemporizei.

Toucinho da Preta
Os nomes não vieram, embora a região cerebral onde estava armazenada a outra parte da memória tenha funcionado a pleno vapor.
Lembramos datas, referências bibliográficas, a pesquisa etnográfica do austríaco com os Kaiabi, em 1966, sua dissertação de mestrado defendida na Universidade de Viena, a publicação do livro pelo Instituto Socioambiental, até a tradutora – Thekla Hartmann, o ano da edição, os capítulos, incluindo as fotos que ele tirou no Rio dos Peixes. Mas o nome que era bom, nada.
Tentei atenuar tamanha lacuna contando-lhe um incidente. Há alguns meses o córtex entorrinal do meu cérebro bloqueou e deixou de transmitir para o hipocampo o nome da minha sogra com quem vivi por mais de quarenta anos. É. É isso mesmo.
Esqueci por longos momentos o nome da minha sogra, o que não é tão grave – me consolou Martha Maria – porque os Kuikuro, segundo nos disse o amigo Mutuá, jamais mencionam o nome da sogra.
Os dois antropólogos, porém, não são nossos sogros e, por isso, continuamos obcecados em busca da memória perdida.
A conversa entrou por outros caminhos, explorando temas diversos, mas aquilo ficou nos importunando, por baixo dos panos, latejando como uma dor de dente. Já havíamos terminado a canja, quando gritei com ar triunfante:
– Lembrei!
– Qual é o nome? – perguntou Martha, ansiosa.
– Calma! Só sei que o nome dele começa com “g”. Já é um avanço, é só buscar, agora, as outras letras.
Minha amiga se iluminou:
– É mesmo. Começa e termina com “g”, o sobrenome também começa e termina com “g”. Tem uma combinação de vários “g”. Procuremos as letras entre os “g”. Mas quais? Quais?
As letras do alfabeto são vinte e poucas, mas nem assim o nome veio. Retirei-me para o meu quarto, pensando na combinação de letras, mas – oh caprichosa memória que habita fora de nós e nos visita quando quer! – a palavra combinação evocou na minha lembrança aquela peça do vestuário feminino que caiu em desuso.
Das minhas nove irmãs, oito vestiram combinação, anágua e corpete, na época em que não se usava vestido forrado. Só uma, a mais nova, trocou a combinação pelo shortinho curto e apertadinho de periguete do tipo daquele usado pela Valdirene para atrair o Palhaço.
Desta forma, em vez de lembrar o que eu queria – os nomes esquecidos – fui invadido por uma lembrança naquele momento impertinente: a imagem que aflorava era a da Preta, minha irmã, nos anos 60, num domingo em que fomos juntos à missa das oito em Manaus, no bairro de Aparecida.
Ela vestia uma combinação azul por baixo do vestido e quando passamos em frente à banca de tacacá da dona Alvina, lá estava uma vizinha, a Leonor, que debochou:
– Olha o “toucinho”, Preta!
“Toucinho” era aquela sobra da combinação ou da anágua que, às vezes, por descuido, aparecia na barra da saia, ficando à mostra.
No caso da Preta não foi descuido. O defunto era maior. A combinação era da outra irmã mais velha, Helena, que a havia usado na missa das sete. Mas o que é que o “toucinho” da Preta tem a ver com o antropólogo austríaco? Sei lá. Quem é que pode explicar os mistérios da memória? Mas, revenons à nos moutons.
Farinha na cuia

Voltando à vaca fria, no dia seguinte, Martha Maria e eu nos encontramos no café da manhã. Conversávamos sobre a programação do dia quando fui interrompido por ela que, num lampejo repentino, exclamou subitamente:
– Georg Grünberg!
Retruquei em cima da bucha, como se tivesse sido iluminado por um raio:
– Friedl Paz Grünberg!
Aleluia! Aleluia! Peixe no prato e farinha na cuia. Respiramos aliviados: não estamos tão gagás assim. Nada como uma noite bem dormida para recuperar a memória perdida.
Duas semanas depois, já em São Paulo, em outro evento, contei o episódio para uma amiga comum, renomada antropóloga que trabalhou na Universidade de Chicago. Para despistar, chamemo-la de Joaquina Cordeiro da Cunha.
É que eu não quero confusão jurídica com Roberto Carlos, Caetano Veloso e o movimento Procure Saber que embarga biografias não autorizadas. Depois de ouvir a história da Martha Maria, Joaquina me perguntou:
– Você conhece a piada do cara que perdeu a memória?
– É. Já ouvi, mas esqueci – respondi. Como é?
– Eu também esqueci – ela disse rindo.
Na manhã seguinte, quando nos encontramos os três, falei pra Martha:
– A Joaquina conhece uma história que nos interessa, mas disse que esqueceu, não sei se por charme ou por esquecimento mesmo.
– Metade esquecimento, metade charme. Mas agorinha lembrei – ela disse e passou a contar a história com muita graça, que aqui reproduzo em seus detalhes, com total fidelidade, embora sem o mesmo encanto.
O nome da rosa
Era um advogado que andava perdendo a memória, esquecia nomes de coisas, de pessoas íntimas, de amigos. Até que um dia confessou que não sabia mais o que era “embargo infringente”, o que toda a torcida do Flamengo também desconhece, mas num jurista é grave. Soou o alarme.
Numa decisão monocrática, sua mulher o arrastou, então, ao médico, que lhe receitou uns remédios. Um mês depois, o casal recebe em sua casa a visita de um amigo, clarinetista da Banda da Polícia Militar, que reclama de falhas na memória. O advogado lhe diz:
– Eu também estava assim, mas melhorei com um remédio fitoterápico que o neurologista receitou.
– Ah, eu quero. Como é o nome do remédio? – implorou o clarinetista.

– Ih, sabe que eu esqueci! Mas vou lembrar. Me ajuda. Preciso lembrar o nome de uma planta. Como é o título daquele livro do Umberto Eco cuja ação se passa na Idade Média dentro de um monastério onde acontecem vários crimes misteriosos? Fizeram até um filme com o Sean Connery.
– De livro e de filme eu não lembro, só de música, que faz parte do campo da memória involuntária, inconsciente, que a gente guarda sem querer – disse o clarinetista.
– Tudo bem. Então me diz – insistiu o advogado – como é o título daquele samba de Nelson Cavaquinho, aquele que diz “Tire o seu sorriso do caminho”.
– Ah, É a flor e o espinho – falou o clarinetista.
– Isso mesmo! É isso – exclamou o advogado. – Flor e espinho. Me diz agora como é mesmo o nome daquela flor que tem espinho?
– Espinho… espinho… É a rosa? – indagou o clarinetista.
– É ela! É a rosa! Obrigado.
Recuperada parte da memória, o advogado gritou para sua esposa que estava na cozinha:
– Rosa, como é mesmo o nome daquele remédio que o médico me receitou?
As estratégias de recuperação da memória e os caminhos percorridos pela mente podem ser esdrúxulos e tortuosos, mas funcionam. Recordei o poema Canção de outono na primavera do nicaraguense Ruben Dario:
“Juventude, divino tesouro / estás indo para não mais voltar! / Quando eu preciso lembrar, não lembro./ E às vezes lembro sem precisar”.
Recordei mesmo? Que Dario me perdoe esta apropriação oportunista. Os versos originais são:
“Juventud, divino tesoro / ¡ya te vas para no volver! / Cuando quiero llorar, no lloro… / y a veces lloro sin querer…
P.S. – Parte da colônia amazonense no Rio compareceu nesta sexta feira à igreja Nossa Senhora do Monte do Carmo para o casamento de Hugo e Bibiane. Ele é amazonense, filho de Hugo Silva Reis (sempre presente) e Renilda Cabral Reis. Um senhor casamento!
Não sou fofoqueiro, mas observei que ao lado de seus netos certa viúva, cujas iniciais são RCB, não tirava o olho de um senhor elegantérrimo de paletó cor de goiaba.
NOTA DA REDAÇÃO: Crônica publicada no site do professor Bessa Freire, TaquiPraTi, em julho de 2013. Continua atual. Continua necessária.