“Estórias do Aquiry & Outros Mundos”, o livro de Marcos Jorge
– Toda menina sonha ser bailarina. O meu sonho acabou no dia em que meu padrasto enfiou aquele dedo sujo em mim e fez aquela coisa que não se faz com uma menina.
A frase fria e dura como a lâmina de uma navalha corta a leitura, nos obriga a voltar ao princípio do conto, do miniconto, para retomar o fio da meada. É isso mesmo o que li, uma frase cortante, dilacerante feito facada na garganta? É isso mesmo.
A frase dilacerante faz parte do mais recente livro “Estórias do Aquiry & Outros Mundos”, do poeta e escritor Marcos Jorge Dias, autor de outras duas publicações anteriores – “Face Oculta”, de 2009, e “Poemas Insensatos”, de 2912, pela Editora Xapuri.
O livro tem trechos em espanhol e quéchua, linda falada pelos povos andinos que viviam além das cordilheiras antes de um certo Francisco Pizarro e seus comandados aparecerem por ali e reduzirem toda a cultura do Povo Inca a fragmentos recolhidos aqui e ali.
O livro tem apresentação de Ivan Russef, um intelectual graduado em Letras pela Fundação de Educação e Cultura do ABC (1972) e também com graduação em Ciências Jurídicas e Sociais, além de prefácio de Iêda Villas Boas. É ela que aponta: “O livro é um apelo, uma flecha certeira em nossa consciência”, para quem “A questão dos problemas das mulheres é encarada como problemas sociais, são crônicas poéticas e de origem comum”.
No seu último trabalho, o acreano de Rio Branco Marcus Jorge Dias, como um Nelson Rodrigues da floresta, nos ataca – longe de apresentar – com seus contos cujas linhas parecem flechas apontadas para as nossas cabeças nos cobrando maior conscientização em relação às chagas sociais que atingem nossa gente, principalmente as mulheres, esses seres tratados como sendo de segunda categoria e cuja felicidade parece material de difícil estoque e reposição nos armazéns da vida.
Nelson Rodrigues, o dramaturgo que chocou o Brasil como seus escritos de sangue a falar do cotidiano brasileiro com os contos da “vida como ela é”, fez-se em diversos setores da vida social, na década de 50. Sua criatividade numa incipiente vida cultura do Rio de Janeiro foi registrada como repórter policial, redator de jornal, consultor sentimental, cronista do cotidiano, folhetinista de sucesso, tradutor fantasma, romancista esporádico e contista mais do que reconhecido.
É um autor urbano, exageradamente urbano, como mostra, por exemplo, “O Beijo no Asfalto”. No texto rodriguiano, um homem casado beija a boca de outro homem que acaba de ser atropelado. Estampado como manchete de jornal, o “beijo no asfalto” torna-se o assunto mais comentado na cidade. Sexualidade, intrigas, ética na imprensa e crise familiar são os temas principais.
Como na obra urbana de Rodrigues, Marcos Jorge Dias, licenciado em Letras Português/ Espanhol pela Universidade Federal do Acre (Ufac), especialista em gestão pública pela Uni]ao Educacional do Norte (Uninorte) e atualmente cursando mestrado em Políticas públicas na Fundação “Perseu Abramo”, mergulha na mesma rede de sexualidade, intrigas e mitos, só que no universo em que o autor nasceu, cresceu e, embora tenha também se urbanizado, não saiu de dentro de si as imagens, os sons, inclusive do silêncio, e todo o resto que faz da floresta e suas personagens um lugar especial.
Foi, como se observasse a vida por uma fresta, que o menino Marcos Jorge ia descobrindo – e talvez arquivando na memória – as imagens que o trouxeram até aqui com os contos que uma de suas personagens teve que abortar o sonho de ser bailarina.
Ela tinha uma boneca vestida de bailarina e se via na boneca a rodar os salões do mundo, recebendo flores no camarim após às apresentações, mas um dia um menino, por maldade, quebrou a perna da boneca, que passara a ser uma bailarina de uma perna só e perdera a graça. Era uma premonição sobre o que aconteceria com a dona da boneca, que jamais dançaria, embora tenha conservado as pernas.
Tragédia parecida também com aquela negra de sorriso de Pérolas. Rosa era seu nome. “Sua beleza e sonhos de menina-moça”, escreve o autor, não a livraram do destino de serviçal na casa grande de família tradicional”.
Dos escaninhos das cozinhas e de seu canto de quase escrava para a cama do herdeiro do sobrenome e do patrimônio dos donos da casa grande, foi uma questão de tempo. Num dia qualquer, no entanto, o senhorzinho vai concluir seus estudos fora da cidade e de lá, algum tempo depois, anuncia à família que vai casar-se com alguém de seu nível, também herdeira de sobrenomes e fortuna.
Ainda bela, mas já sem os sonhos, Rosa muda de nome. Vira Naomi. Hoje cobra caro dos ricos herdeiros para abrir as peras pernas para ele na rua das putas. Nada mais trágico e mais Nelson Rodrigues do que este conto.
Os contos de Marcos Dias, no entanto, não têm nome. São beijos no asfalto sem dizer que são. São a mulher sem pecado sem dizer que é. Isso, talvez, porque Marcos Dias escreve – como revela logo após o índice do livrinho de apenas 45 páginas – sobre o que ouvia nas histórias contadas à noite por sua avó, Ota de Araújo Das, já falecida. Eram histórias contadas à luz de lamparina.
Quando indagado do motivo de um livro tão curto, tão pequeno – mas denso, o autor admite que as pessoas, na atualidade, já não têm tempo nem querem perdê-lo lendo grandes obras e de muitas páginas. A concorrência com outras mídias e formas de entretenimento, se não abreviou a literatura, diminuiu o tamanho dos livros. “E, no entanto, é cada vez mais necessário que a história humana seja escrita, cada vez mais é necessário trazer para o papel é contato”, diz o autor.
Além de contos trágicos e que envolvem sexualidade e outras intrigas da vida cotidiana, Estórias do Aquiry & Outros Mundos traz histórias sobre a cosmologia acreana, como, por exemplo, a estórias sobre gravidez de certas moçoilas que eram atribuídas aos botos e, após a maternidade, como nas tragédias gregas, as crianças eram atiradas na água. Ou as estórias de cunhãs e curumins que contam também os tempos das andanças, quando a terra ainda “não tinha dono, não tinha fronteiras e os rios corriam cheios na época das chuvas e fazia praia no tempo da friagem”.
Nesta época, segundo o autor, “o povo que vivia na mata não tinha doença e não brigava entre si. Os papagaios comiam no mesmo barreiro do catitu”.
No entanto, “os brabos vinham em bando. Subindo a correnteza em ubá grande eu roncava sem parar”.
Os tais “espantavam as araras das ingazeiras da beira do rio e matavam tudo o que viam. Socó, quatipuru e jaçanã, que nem serve para comer, viravam embiara”.

ANOTE AÍ:
Esta resenha de Tião Maia sobre o livro de Marcos Jorge foi publicada nesta segunda-feira, 29 de maio, no jornal acreano Página 20:
LEIA TAMBÉM:
AQUIRY: UMA CIVILIZAÇÃO NA FLORESTA
De centros espirituais dos povos indígenas e de produção de alimentos, geoglifos ainda permanecem um grande mistério para a ciência. Mas de uma coisa os pesquisadores já concluem: eles são a prova da existência de uma avançada e complexa civilização encravada no meio da Floresta Amazônica
Fabio Pontes/Jornal Varadouro
dos varadouros de Rio Branco

O aprofundamento das pesquisas científicas sobre os desenhos geométricos (geoglifos) encontrados no interflúvio dos rios Acre, Iquiry e Abunã – na tríplice divisa Amacro (Amazonas, Acre, Rondônia) – sugerem que a ocupação humana nesta porção da Amazônia remonta há 10 mil anos, e que uma grande e complexa civilização se desenvolveu aqui: a Civilização Aquiry.
De acordo com os estudos conduzidos por paleontólogos, arqueólogos e historiadores, os primeiros geoglifos podem ter sido “desenhados” no meio da floresta entre dois mil e dois mil e quinhentos anos atrás. O primeiro deles, por sinal, foi construído 700 anos antes de Cristo, conforme apontam as análises.
Apesar de muitos avanços já terem ocorrido ao longo de duas décadas de estudos, a ciência ainda tem muitas perguntas a responder sobre os geoglifos: por que foram construídos? Eram aldeias, cidades, centro de agricultura? Qual sua utilidade: para cerimônias religiosas ou Teriam estratégia militar de defesa? Aos poucos os cientistas vão caminhando rumo a essas respostas.
E o caminho podem ser as estradas que conectam um geoglifo ao outro, uma descoberta recente da ciência. Também chamadas de “varadouros milenares”, as estradas passaram a ser outro centro das atenções dos pesquisadores, e revelam, ainda mais, toda a complexidade sobre a Civilização Aquiry.
“Estradas parecem ter surgido há mais tempo no Acre do que em outras partes da Amazônia.” Estas e muitas novas informações sobre os estudos dos geoglifos estão no livro “Amazônia: Os Geoglifos e a Civilização Aquiry”, organizado pelo paleontólogo Alceu Ranzi e o arqueólogo finlandês Martti Pãrssinen.
“O Acre está no centro de um glorioso e interessante debate mundial, em que o centro é a Amazônia. Mas, na Amazônia, o centro realmente é o Acre. As regiões que hoje formam o Acre e Rondônia se desenvolveram há 10 mil anos, com uma agricultura que se espalhou por toda a Amazônia”, diz Alceu Ranzi, em entrevista ao Varadouro.

E o Acre também foi o centro do início dos estudos científicos sobre os geoglifos, a partir da descoberta dos primeiros desenhos geométricos na zona rural de Rio Branco. Liderados por Alceu Ranzi, pesquisadores da Universidade Federal do Acre (Ufac) passaram a se dedicar ao tema. Muitas das primeiras imagens que rodam o mundo foram feitas por repórteres-fotográficos acreanos.
“Essas achados quebram o paradigma de que na Amazônia não existiram cidades antes da chegada dos europeus. Cientistas de renome, usando técnicas avançadas, confirmam a hipótese de que na região do Acre e Amazonas, viveram milhares de pessoas, membros da denominada Civilização Aquiry, os construtores de geoglifos”, explica Alceu Ranzi.
Na semana passada, Varadouro publicou reportagem expondo as ameaças e as pressões sofridas pelo sítio arqueológico com a consolidação da grande monocultura da soja nas propriedades rurais onde estão os geoglifos. Ameaças que colocam em risco a preservação dos vestígios de uma cultura milenar, relacionada com a própria história do Acre e suas populações originárias.
kymyrury: a relação com o sagrado
O nome Civilização Aquiry é uma referência ao antigo nome do rio Acre. Aquiry era a forma como os Apurinã (Pupykary) se referiam ao manancial, e significa o rio dos jacarés. Para os Apurinã, os geoglifos são muitos mais do que simples desenhos geométricos feitos no meio da floresta.
Eles representam toda a ancestralidade espiritual do povo. Nas crenças Apurinã, os geoglifos seriam um lugar sagrado, um campo de natureza chamado kymyrury. Nele, apenas os pajés (kusanaty) podem ter acesso. É de dentro do kymyrury onde os grandes espíritos Apurinã olham e protegem todo o povo e a floresta.
“Os kymyrury são partes do saber ontológico Apurina e, para tanto, são locais esotéricos que apresentam dicotomias condescendentes e fundamentais, pois, ao mesmo tempo em que são vistos por nós como lugares respeitados – lugares peculiares e intocáveis, que não podem jamais serem mexidos, transformados e que seguem um principal cultural -, são também fontes que alimentam e nutrem os corpos, mentes e espíritos dos Apurinã, porque é de lá que vem a cura, o alimento e a força para continuarmos existindo”, diz trecho de artigo escrito por Ywmuniry, o Francisco Apurinã, doutor em Antropologia Social, publicado no livro.
Os estudos sobre os geoglifos avançam não apenas a partir de técnicas científicas avançadas da arqueologia ou da paleontologia. Neste processo, o conhecimento ancestral e tradicional dos povos indígenas é essencial para compreender todos os mistérios que os cercam. Além dos Apurinã, a sabedoria dos Manxineru também é levada em consideração pelos estudiosos.

Essa possível relação entre geoglifos e a ancestralidade espiritual dos povos indígenas é reforçada pelo artigo da antropóloga Pirjo Kristiina Virtanen, da Universidade de Helsinque. De acordo com ela, “os desenhos geométricos apresentam uma língua própria e mostram que a terra e o espaço foram detalhadamente planejados e usados.”
“As formas de geoglifos circulares, retangulares, semiretangulares, entre outras, estão intimamente relacionadas aos valores e aos espaços cerimoniais pré-coloniais, conectadas à ideia de guardar, de respeitar, de fortalecer, de poder e de reprodução”, completa Virtanen. Para a antropóloga, os desenhos “provam que os povos indígenas das terras baixas da América do Sul também foram filosoficamente, politicamente e economicamente organizados de maneira bem sofisticada”.
Em outro ponto do livro, os cientistas escrevem: “De maneira geral, a civilização Aquiry era provavelmente multiétnica, mas, para partilhar uma visão de mundo, um idioma em comum era necessário. Portanto, uma vez que os primeiros contatos apontam para a tradição cultural Aruaque, é possível que certa língua Aruaque tenha sido originalmente usada como língua franca para comunicação transcultural. Supõe-se até que a origem provável do Aruaque esteja na parte superior do Rio Purus.”
Terras férteis
O tipo de terreno plano onde os geoglifos estão localizados sinalizam que eles também podem ter sido usados para a agricultura. Entre os muitos itens descobertos até aqui pelas escavações, os pesquisadores encontraram restos orgânicos de cozinha, como ossos de animais, grãos de milho, semente de abóboras, cascas de castanhas, pupunha e frutos de outras palmeiras.
Não por acaso, mais de 2.500 anos depois, estas são as terras ocupadas (e cobiçadas) pela agropecuária ao sul da Amazônia ocidental. Ao, provavelmente, concentrar seu sistema produtivo dentro destas diferentes formas geométricas, os primeiros habitantes da Amazônia acreana fariam uma relação com a fertilidade.
Outro ponto a chamar a atenção dos pesquisadores é onde a Civilização Aquiry se constituiu: no meio da floresta, longe das margens dos rios, quebrando o paradigma de que as sociedades amazônicas se desenvolveram apenas perto dos mananciais. Isso não quer dizer que não existiam outras fontes por perto, como igarapés e vertentes. Afinal de contas, nenhuma sociedade pode se desenvolver sem água.
Engenharia ancestral

Entre as muitas imagens aéreas dos geoglifos, o paleontólogo Alceu Ranzi enviou para Varadouro esta acima, feita pelo doutor em antropologia Robert S. Walker, da Universidade do Missouri, nos Estados Unidos. O desenho está dentro de uma fazenda em Acrelândia. Com uma área de 200 metros de diâmetro, ele “demonstra o domínio completo da geometria pelos seus construtores.”
“Esse desenho, um círculo duplo perfeito, mostra a capacidade dos povos originários de construir monumentos, com grande demanda de mão de obra, necessária para movimentar milhares de metros cúbicos de terra. Deveriam existir razões extremamente importantes para a construção dos geoglifos, algo que ainda os cientistas não conseguiram desvendar totalmente”, ressalta Ranzi.
A região onde habitavam nossos antepassados, continua o cientista, foi a casa de milhares de indígenas, e os geoglifos são a prova da existência da Civilização Aquiry. O Aquiry que passou a ser chamado de Acre pelos seringueiros nordestinos que aqui chegaram entre o fim do século 19 e o começo do 20. São mais de 100 anos de formação histórica e política do Acre.
Mas os geoglifos mostram que a nossa história é muito mais antiga, diversa e complexa. Há 10 mil anos, os “primeiros acreanos” já perambulavam por estas terras e varadouros – e deixaram suas marcas para que, hoje, soubéssemos de suas existências. Proteger os geoglifos é proteger a memória do Acre e da Civilização Aquiry. Muito ainda temos a aprender sobre eles – e com eles.






