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Francisca Geraizeira

Francisca Geraizeira

Lá pras bandas do Tabuleiro do Cotovelo, bem nas cabeceiras do riacho da Tamarana, município de Correntina, Bahia, existia um pequeno rancho coberto com palha de buriti; nele viviam Francisca e sua mãe.

Por Altair Sales Barbosa

As paredes do rancho eram de barro e caiadas pela própria Francisca, que fabricava as tintas com tabatinga e goma de tapioca; para pintar, usava uma brocha retirada da raiz de canela-de-ema, planta comum daqueles chapadões.

Francisca era esquia, alta, cor morena bem escura, quase negra, embora tivesse o cabelo liso e bem comprido. Trazia à cabeça uma rodilha de pano de algodão. Usava um vestido inteiriço que ela mesmo costurava à mão, feito de chita bem barata, que comprava ou ganhava nos comércios de retalhos, que sempre existiam nos pequenos povoados a oeste do Velho Chico. Era solteira, dizia que não queria se casar, porque tinha que cuidar da sua mãe, e não dava conta de cuidar do marido e da mãe ao mesmo tempo.

A mãe faleceu aos 104 anos de idade, foi apagando aos poucos, feito fogo de vela de cera, conhecida como rolo. Depois da morte da mãe, Francisca usou luto durante toda existência, naquelas bandas do Taboleiro, quando foi vista pela última vez, no final da era noventa.

As cabeceiras do riacho da Tamarana não eram muito distantes da cidade e, afora a vizinhança do local, a casa de Francisca era sempre rodeada de visitantes, porque, além de parteira, sempre apegada com São Raimundo, que dizia ser o protetor das parturientes, tinha o conhecimento da benzeção contra quebranto, mau olhado, espinhela caída, picada de cobra, prisão de ventre, angústia do coração, descobria a sorte pelas linhas das mãos e, de sobra, ainda ensinava alguns remédios para determinados males.

Como, por exemplo, tirava o barro das casas das vespas triturava e misturava com água, depois passava este, com auxílio de uma pena, nas inflamações de caxumba. Após essa operação, amarrava um pano branco de algodão, que abraçava o queixo e a cabeça da pessoa.  Era tiro e queda, no outro dia a caxumba sumia.

Sempre depois de cada benzeção, Francisca ensinava aos que a procuravam uma oração que, na década de 1970, tive a oportunidade de transcrever, tal qual ela pronunciava:

Dispidida, dispidida, dispidida de Belém,

Adeus meus irimão, até proano que vem.

Dispidida, dispidida, dispidida de Belém,

Adeus meus irimão, atépro ano que vem.

Até pro ano que vem, se a morte não nos matá,

A morte da paixão de Cristo que queira nos ajudá.

Até pro anoque vem, se a morte não nos matá,

A morte da paixão de Cristo que queira nos ajudá.

Sinóis for feliz, a morte não nos matá,

Se tiver algum agravo, vóis nos queira perdoá,

Perdão meus irimão para alcançáos perdão de Deus.

Sinóis for feliz, a morte não nos matá,

Se tiver algum agravo, vóis nos queira perdoá,

Perdão meus irimão para alcançáos perdão de Deus.

Francisca não cobrava nada pelos serviços, mas um ou outro servo deixava algum adjutório, que podia ser uns trocados ou,às vezes, mantimentos. Durante três vezes na semana, ela saía com um feixinho de lenha à cabeça, e o vendia na cidade, para alimentar os fogões, pois naquela época só existia fogão a lenha.

Dia de sábado, que era o dia da feira na cidade, Francisca saía com uma grande gamela à cabeça e ia fazer seu comercio na feira.  Seus produtos eram variados, dependendo da época do ano, levava sabão de coada, maxixe, que colhia nas cercas dos currais e, na época das águas, carregava prenhas de araticuns cascudos, cajuzinhos, puçás, e cagaita de vez. Dizia que cagaita madura provocava disenteria.

Com os trocados que recebia das vendas, comprava o necessário para casa, principalmente querosene, café em grãos, que ela mesma torrava e pilava, sal, rapadura, algum cambão de osso, toucinho e carne seca. Às vezes também era agraciada com alguns mantimentos. É certo que em sua casa não tinha fartura, mas também a penúria ficava distante.

E assim era a vida de Francisca, depois que a sua mãe morreu, vivia solitária vagando pelos gerais, sempre à cata de alguma coisa.

Um belo dia, as pessoas que sempre passavam pelas cabeceiras do Tamarana começaram a sentir sua falta. Resolveram olhar dentro da casa, mas não a encontraram. Ficaram dias vasculhando aqueles gerais. Nenhum sinal de Francisca. Logo a notícia se espalhou e o povo daquela pequena cidade começou a criar histórias sobre o seu desaparecimento.

Uns falam que suçuarana a comeu e sumiu com os ossos para a toca, outros dizem que ela caminhou em direção ao sol poente, até desaparecer. Os mais afoitos dizem que Deus a transformou numa seriema e que ela ainda vive dessa forma, vagando pelos gerais e veredas, e que todas as manhãs gorjeia seu canto, para abençoar o povo daquele lugar.

Publicado originalmente em 31 de julho de 2019 

 

Altair Sales Barbosa – Antropólogo. Arqueólogo. 

 

Capa: Imagem Ilustrativa. Foto de Guy Gomes/Repórter Brasil


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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