Hoje são livres os que resistem –
Por: Márcio Sotelo Felippe
Em um artigo publicado em 1944, a República do Silêncio, Sartre escreveu que os franceses nunca foram tão livres quanto no tempo da ocupação alemã. Um chocante e brilhante paradoxo que só a grande Filosofia, como exercício de pensar fora do senso comum, é capaz de produzir.
Por que os franceses eram livres se todos os direitos haviam sido aniquilados pelos alemães e não havia qualquer liberdade de expressão? Como se podia ser livre sob a cerrada opressão do invasor que fiscalizava os gestos mais triviais do cotidiano? Porque, diz Sartre, cada gesto era um compromisso.
A resistência significava uma escolha e, pois, um exercício de liberdade. Significava não renunciar à construção de sua própria existência quando os invasores queriam moldá-la, reduzindo-a a objeto passivo e sem forma.
Em linguagem retórica e poética Rosa de Luxemburgo disse algo semelhante: quem não se movimenta não percebe as correntes que o aprisionam.
Sartre era existencialista: a existência precede a essência. Isto significa que não há algo anterior à existência que impeça um ser humano de tomar livremente as decisões que construirão o seu futuro. Isto dá ao humano a plena imputabilidade pelos seus atos. O que ele faz da sua existência é culpa ou mérito exclusivamente seu. O que ela é hoje resulta de decisões que tomou no passado, e o que será resulta das ações que se toma no presente.
A experiência francesa durante a ocupação amanhã guarda certa similitude com o Brasil de hoje. Na França parte da sociedade (muito maior do que os franceses gostam de admitir) foi complacente ou colaborou com o invasor que massacrava seu povo e aniquilava os mais elementares direitos dos franceses. Hoje, parte da sociedade brasileira assiste inerte, é complacente, apoia ou apoiou usurpadores que vão reduzindo a pó pouco de direitos e garantias de um povo já miserável.
Na França colaborava-se por ser fascista ou filofascista. Por egoísmo social. Por ressentimento. Por ódio de classe. Para pequenas vinganças privadas, para atingir um inimigo pessoal. Colaborava-se por ausência de qualquer sentimento de solidariedade social. A colaboração com o invasor desvelava a mais baixa extração moral.
Quanto a nós, tomo como paradigma uma cena do cotidiano que presenciei dia desses. Duas mulheres ao meu lado conversavam. Uma disse que seu filho de 13 anos era fã de Bolsonaro. A outra, algo espantada, faz uma crítica sutil, perguntando se ela não conversava com o filho sobre política. A resposta: “acho bonito que meu filho seja politizado nessa idade.” Com isto, quis dizer que não importava de que modo seu filho estava precocemente se politizando.
Pode-se razoavelmente supor que ela, mulher, ignore que Bolsonaro disse que há mulheres que merecem ser estupradas? Que saudou, diante de todo o país, em rede nacional de televisão, o mais célebre torturador da ditadura militar? Que declarou que prefere o filho morto se ele for homossexual? Como ignorar isso tudo é altamente improvável, porque seria supor que tal mulher vive em uma bolha impenetrável em plena era das redes sociais, podemos concluir, com Sartre, que escolheu o sórdido para si e para seu filho.
O que resultará dessa escolha não poderá se imputada a Deus, ao destino, aos fatos da natureza o qualquer fórmula vaga e estúpida do tipo “a vida é assim”, mas a ela mesma e seus pares brancos de classe média que tem atitudes semelhantes.
Do mesmo como a parcela colaboracionista da sociedade francesa escolheu a opressão do invasor estrangeiro, parcela da sociedade brasileira escolheu o retrocesso, o obscurantismo e a selvageria.
Foi em massa às ruas em nome do combate à corrupção apoiando um processo político liderado por notórios corruptos.
Regozija-se com o câncer e com o AVC do adversário político, demonstrando completa ausência de qualquer traço de fraternidade e respeito ao próximo.
Suas agruras e dificuldades econômicas e sociais transformam-se em ódio justamente contra os excluídos e em apoio às ricas às ricas oligarquias que controlam a vida política do país (das quais juntam-se espelhos), a fórmula clássica do fascismo.
Permanece indiferente, omissa ou dá franco apoio ao aniquilamento dos direitos, ao fim, na prática, da aposentadoria para milhões de brasileiros, à eliminação dos direitos trabalhistas, à entrega do patrimônio nacional a grandes empresas estrangeiras.
Seu ódio transforma em esgoto as redes sociais.
Não há como prever o que acontecerá a esta sociedade. Uma convulsão social poderá desalojar os usurpadores do poder, ou poderemos seguir para o cadafalso como povo. A História é sempre prenhe de surpresas. O que é certo, no entanto, tomando a frase de Sartre, é que somente poderão dizer no futuro que foram livres, no Brasil pós-golpe de 2016, os que agora estão se comprometendo e resistindo.
É uma trágica liberdade de tempos sombrios, mas se nos foi dado viver neste tempo, que vivamos com a dignidade que seres livres podem ostentar.
Hoje são livres os que resistem.
ANOTE:
Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado, a quem este texto foi creditado em várias fontes e grupos de zap, é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
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