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Incluir os excluídos na justiça de transição

Incluir os excluídos na justiça de transição

 “Incluir os pobres no orçamento” é política pública prioritária do governo Lula. Para efetivá-la, o governo deu passos concretos ao articular com o Congresso Nacional a aprovação da PEC da Transição, que garantiu: os recursos para pagar a nova Bolsa Família (R$ 600,00 por mês e outros benefícios) em 2023; o anúncio do reajuste do salário-mínimo para R$ 1.320 a partir de 1º de maio, com leve recuperação do seu poder aquisitivo; e a elevação da faixa de isenção de pagamento do imposto de renda de R$ 1.903,98 para R$ 2.640,00, já em 2023.

Por Gilney Viana

A primeira medida beneficia diretamente cerca de 22 milhões de famílias com renda mensal per capita de até R$ 218,00, abrangendo todas as famílias que estão faixa da pobreza extrema e parte das que estão na faixa da pobreza. A segunda, beneficia os trabalhadores que ganham até 1 salário-mínimo por mês (49% do total dos assalariados), e a terceira, beneficia parte dos que ganham de 1 a 2 salários-mínimos (24% do total), conforme dados da Oxfam Brasil/Data Folha Pesquisas – março de 2022).

Esse não é o tema principal deste artigo, mas justifico: as medidas do governo Lula para “incluir os pobres no orçamento” são tão importantes que seria desonestidade intelectual ignorá-las; e também porque “incluir os pobres no orçamento” e “incluir os excluídos na justiça de transição”, a meu ver, fazem parte da agenda mais ampla de “incluir os excluídos” econômica, social, política e culturalmente.

INCLUIR CAMPONESES E INDÍGENAS EXCLUÍDOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada pela lei 12.528/2011 “com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do ADCT, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”, com amplos poderes para pesquisar, convocar pessoas, promover audiências públicas, realizar perícias, requisitar dados, documentos e informações sigilosas.

A CNV usou seus poderes com grande parcimônia e seus avanços investigativos dependeram em parte das iniciativas conjuntas com comissões estaduais da verdade e comitês não governamentais de memória, verdade e justiça. Seu Relatório, produto final dos dois anos e meio de trabalho, se concentrou nos casos de mortes e desaparecimentos forçados. E, surpreendentemente, reconheceu apenas 434 pessoas mortas e desaparecidas por responsabilidade do Estado, quando, ao mesmo tempo, conheceu e desconheceu milhares de casos de mortos e desaparecidos forçados, durante a ditadura militar e a transição política (1964–1988).

Assim, cumpriu apenas parcialmente seu mandato de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica”. Embora tenha tido o mérito de provar que as prisões ilegais, torturas, estupros, assassinatos de opositores políticos e ativistas sociais, e ainda ocultação de cadáveres, foram responsabilidades do Estado e não de agentes isolados do sistema repressivo.

Ao não reconhecer nenhum, literalmente nenhum indígena, como morto e/ou desaparecido forçado, quando tinha conhecimento de que pelo menos 8.350 casos de assassinatos de indígenas, com participação e responsabilidade do Estado, no período estudado, reproduziu a lógica da exclusão da exclusão: exclusão histórica dos direitos da cidadania e exclusão dos direitos à memória, verdade, justiça e não repetição.

Ao reconhecer apenas 41 camponeses mortos e desaparecidos quando tinha em mãos uma relação de 1.196 camponeses mortos e desaparecidos (incluindo 14 advogados e 7 religiosos apoiadores das causas camponesa e indígena) reproduziu o preconceito de classe, rendeu-se à cultura colonial da casa grande e do latifúndio que não reconhece a resistência camponesa como luta política, como exercício de direito formalmente estabelecido e politicamente conquistado. 

Por exceção, a CNV reconheceu a responsabilidade do Estado sobre o assassinato de 4 lideranças sindicais camponesas durante o período de 05/03/1979 a 05/10/1988. Vale reproduzir os nomes e as justificativas.

Raimundo Ferreira Lima – STR de Conceição do Araguaia, PA, 29/05/1980: “morreu em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos, promovidas pela ditadura militar implantada no país a partir de 1964”. (CNV, V.III, p. 1955). 

Wilson Souza Pinheiro – STR de Brasiléia, AC, 21/07/1980. Embora assassinado por pistoleiros, a CNV concluiu: “morreu em decorrência da ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar”. (CNV, V.III, p. 1973). 

Margarida Maria Alves – STR de Alagoa Grande, PB, 12/08/1983: “foi executada sumariamente por particulares associados a agentes do Estado brasileiro, por motivação política e por conta de a vítima ter reivindicado direitos fundamentais dos trabalhadores e trabalhadoras. Essa ação foi cometida em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar implantada no Brasil a partir de abril de 1964”. (CNV, V.III, p. 1984). 

Nativo da Natividade de Oliveira – STR de Carmo do Rio Verde, 23/10/1985: “foi morto por pistoleiros contratados por latifundiários da região de Carmo do Rio Verde, GO, cuja ação contou com a conivência e/ou omissão do Estado brasileiro”. (CNV, V.III, p. 1992). 

Ora, esses argumentos são aplicáveis aos 899 camponeses, entre os quais 64 lideranças sindicais, assassinados naquele período, nas mesmas condições históricas referidas e em circunstâncias semelhantes.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instaurada em 1995, tinha e ainda tem o mandato legal do reconhecimento de mortos e desaparecidos políticos sob a responsabilidade do Estado.  A CEMDP examinou 339 requerimentos apostos por familiares dos quais deferiu 221 e indeferiu 118 casos. Somados aos 135 mortos e desaparecidos reconhecidos pelo anexo da lei 9.140/1995, totalizaram-se 474 casos, sendo 50 camponeses, dos quais 27 foram deferidos e 23 indeferidos – números insignificantes diante da escala de milhares de camponeses mortos, já conhecidos àquela época. E, não se pode esquecer, nenhum indígena.

A CEMDP, em verdade, foi a primeira comissão da verdade. Desmascarou a narrativa dos áulicos da ditadura de que os opositores políticos sob a custódia do Estado foram mortos quando tentavam fugir; ou se tornaram desaparecidos por simples abandono da luta e das suas respectivas famílias. Mas a CEMDP foi concebida para atender apenas alguns casos. Para isso, estabeleceu duas cláusulas de exclusão: primeira, ao fixar o prazo de 120 dias para que as famílias inscrevessem seus requerimentos; e a segunda, ao exigir que as famílias das vítimas apresentassem as provas; quando as provas estavam nos arquivos da comunidade de informações, que se negaram a fornecê-las. 

No caso dos indígenas e camponeses, a cláusula de exclusão do prazo foi suficiente. E, diga-se de verdade, o número de mortos e desaparecidos reconhecidos só foi maior dada a atuação dos familiares. Por duas vezes a lei foi alterada; em 14/08/2002, pela lei 10.536; e em 1º/06/2004, pela lei 10.875 – para reabrir prazo e alargar o entendimento das circunstâncias da morte ou desaparecimento. Então, pode e deve ser novamente alterada, para possibilitar a inclusão de camponeses, indígenas e outros excluídos.

Por fim, a anistia política. A lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi importante por incluir no processo político milhares de pessoas atingidas pelas leis de repressão e por sinalizar que a transição do Estado ditatorial para o Estado democrático de direito seria irreversível.

 Por imposição dos militares, ainda no poder, estabeleceu a autoanistia dos torturadores e a não anistia da maioria dos presos políticos (incluindo o autor deste artigo). A autoanistia dos torturadores continua até hoje validada pela sentença do Supremo Tribunal Federal à APDF 153, interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, em 29/04/2010; não obstante a contraposição da Corte Interamericana de Direitos Humanos julgando-a inválida ao proferir a sentença no Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil em 24/11/2010.

Os direitos dos anistiados só foram estabelecidos 20 anos depois, em 13/11/2002, com a lei 10.559 que criou a Comissão de Anistia. Em 05/10/2020, a Comissão de Anistia totalizava 78.887 requerimentos, dentre os quais 2.848 classificados como camponeses, assim distribuídos: 1.847 analisados, 968 indeferidos, 518 deferidos, 354 arquivados e 7 apensados. O número de requerentes é bem abaixo dos camponeses atingidos pela repressão política e social. E a taxa de deferimento de apenas 28%, está entre as mais baixas de todos os grupos processuais – o que não pode ser debitado à insuficiência de dados.

Mais grave ainda a situação dos indígenas: 141 requerimentos, 54 analisados dentre os quais 15 deferidos, 5 indeferidos e 34 arquivados. Sendo que em todos os grupos processuais o número de arquivados (sem análise do mérito) é grande nos anos de 2019 e 2020, revelando um viés ideológico na avaliação.

O governo Bolsonaro, dominado por militares herdeiros da ditadura militar, tentou encerrar as atividades da CEMDP e da Comissão de Anistia, objetivando acabar a Justiça de Transição, na esfera administrativa. Não conseguiu. Por meio do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, o governo deu os primeiros passos para reinstituir essas comissões, assegurar o pleno funcionamento administrativo e respeitar sua autonomia política. No caso da CEMDP, espera-se agora que acelere os trabalhos de busca e identificação dos corpos dos desaparecidos; e de revisão dos atestados de óbitos. E, da Comissão de Anistia, espera-se que proceda à revisão de todos os julgamentos viciados dos requerimentos durante os governos Temer e Bolsonaro.

Embora necessárias, essas medidas não serão suficientes para incluir os indígenas, camponeses, religiosos e outros excluídos da Justiça de Transição. Para isto, algumas medidas precisam ser tomadas, tais como:

  1. a) a reinterpretação da Lei de Anistia pelo STF, para permitir que os agentes do Estado perpetradores das graves violações de direitos humanos respondam por crimes de lesa-humanidade, como manda a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos;
  2. b) a revisão da lei 9.140/1995, para abrir novos e amplos prazos de registro de requerimentos de familiares de mortos e desaparecidos e incluir os critérios definidos pela CNV ao analisar os casos de camponeses e, no caso dos indígenas, admissão de requerimentos individuais e coletivos (alterações semelhantes às promovidas pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004);
  3. c) que a Comissão de Anistia assuma o mesmo entendimento da CNV, acima referido, para embasar a análise dos requerimentos de anistia de camponeses e, no caso dos indígenas, tanto individuais como coletivos;
  4. d) a criação de mecanismos institucionais de apoio à pesquisa sobre cumplicidade, apoio ou participação direta das empresas na repressão política, durante a ditadura militar, para que respondam por eventuais crimes cometidos.

Gilney Viana – Ambientalista, membro da Comissão Camponesa da Verdade e do Conselho Editorial da Revista Xapuri.

 

 


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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