IVO BARBIERI: O SABOR DA LEITURA

IVO BARBIERI: O SABOR DA LEITURA

Ivo Barbieri: o sabor da leitura

Na escola primária / Ivo viu a uva / e aprendeu a ler /  Ao ficar rapaz / Ivo viu Teresa / e aprendeu a amar”.  (Paráfrase de Primeira Lição. Ledo Ivo. 1964).

Por José Bessa Freire

No lançamento recente do livro Da Roça à Reitoria: Ivo Barbieri me veio à lembrança a viagem Rio-Manaus-Rio, em companhia de Ivo Barbieri, então reitor da Uerj que, em 1991, me convidou para proferir a palestra de abertura sobre a Amazônia na Reunião do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) realizada na capital do Amazonas.

No voo de ida e volta, livros foram o tema central de nossa conversa. Quando Ivo, professor de literatura brasileira, fala de suas leituras, a gente começa a salivar, sentindo o sabor e até o aroma do texto literário. Se o interlocutor já o leu, passa a saboreá-lo com tempero adicionado por ele. Caso contrário, fica com uma vontade danada de sair correndo dali para degustá-lo. Quem assistiu suas aulas no doutorado de Letras da Uerj sabe disso.  

Esse dom, essa sabedoria e esse amor incondicional pela literatura o levaram a fundar a Casa de Leitura Dirce Côrtes Riedel, da qual foi o primeiro presidente e onde “organizou, coordenou e realizou o projeto A arte da novela – exercícios de leituradesde 2013, sem interrupção, com público cativo sempre crescente” – diz Aparecida Salgueiro, ex-presidente da Casa.

Graças às perguntas instigantes do jornalista Paulo Filgueiras, que organizou o livro em forma de entrevistas, aquele Ivo sempre discreto e zeloso de sua privacidade revela dados desconhecidos até por quem conviveu com ele tantos anos. O caminho da roça à reitoria começa na infância, passa pela juventude, estudos, professores, amizades, vida acadêmica, filmes e peças de teatro que viu, os livros que leu, a relação com a religião, a política, a prisão e tortura sofridas em 1970 e a gestão da Uerj, nossa cachaça, que nos une.

VIU A UVA 

O neto do italiano Barbieri viveu a infância na roça, em Nova Milano, distrito de Farroupilha, numa família de dez filhos. Alfabetizado em casa pelos irmãos mais velhos, depois que a segunda leva de imigrantes italianos havia introduzido o vinho na serra gaúcha, Ivo viu a uva, literalmente, ao contrário de crianças brasileiras de outras regiões, usuárias da cartilha Caminho Suave. No Amazonas, a gente via açaí. Uva, só no abecedário, confundia-se aprendizagem com decoreba.

Depois, caminhos mais suaves e universais passaram a ser usados para a descoberta do mundo da literatura. Viva Paulo Freire! Novos métodos de letramento ensinam a ver, além da uva, as condições de trabalho de quem a plantou e colheu, como descobriu aquele menino que saiu da roça gaúcha para ser reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O entrevistador abelhudou sobre o tema religião. De família católica, duas irmãs de Ivo se tornaram freiras. Na missa aos domingos, o vigário fazia o sermão em uma variante regional da língua italiana, cujo contato com o português deu origem ao talián, declarada pelo IPHAN, em 2014, como uma das línguas de referência cultural brasileira. Futebol? Confessa que sempre foi “muito ruim de bola” e que é torcedor do Grêmio e do Flamengo (ninguém é perfeito, diz esse vascaíno aqui).

Ivo revela que aos quinze anos foi aluno interno do seminário diocesano em Caxias do Sul, dirigido por capuchinhos. Foi lá que começou a ler autores brasileiros e muita poesia romântica. Quando saiu do seminário maior para cursar Letras Neolatinas, em Porto Alegre, se sustentou dando aulas em colégio particular. Conheceu obras de Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e especialmente Machado de Assis, por quem se apaixonou ao folhear as primeiras páginas de Dom Casmurro.

VIU TERESA 

Já graduado e licenciado, Ivo se mudou para o Rio a fim de seguir curso de aperfeiçoamento em literatura com os melhores professores do Brasil. Olhem só o time (assim até eu!): Cleonice Berardinelli, Afrânio Coutinho, Cavalcanti Proença, Antenor Nascentes, Evanildo Bechara e Dirce Riedel, de cuja assistente, Teresa, se enamorou e com ela viveu por quase 40 anos, até que a morte os separou.

As perguntas da longa entrevista foram todas respondidas por Ivo, mesmo as “indiscretas” sobre as quais é tão doloroso falar e até mesmo escutar: a prisão de três meses pela ditadura sem qualquer ordem judicial e as torturas sofridas, tema ao qual daremos destaque aqui em detrimento dos demais. Et pour cause.

Em várias páginas, relata sua prisão em maio de 1970, quando saía de sua casa, no Jardim Botânico, para o trabalho. Encapuzado, num carro da polícia, um meganha lhe deu um soco, justificando: “Por causa de você estou aqui sem almoço”. Desconfia que foi levado para uma unidade da Aeronáutica, porque escutava o decolar de aviões do aeroporto militar do Galeão.  

Este episódio é um tanto longo. Você acha que a gente deve prosseguir – indeciso, perguntou a Paulo Filgueiras, que respondeu afirmativamente.  

Ivo detalha, então, o que vai aqui resumido, sua passagem pelas unidades militares e pelo quartel da rua Barão de Mesquita, conhecido por ser um ninho de torturadores. Indagado sobre sua participação política, respondeu:

Nunca fui militante político-partidário. Participei dos movimentos contra a ditadura, fui à rua, a encontros, assembleias, quando assassinaram o estudante Edson Luís. Participei da criação do Sindicato dos Professores. Fui um dos fundadores da Associação Docente da Uerj. Mas a partido político, eu nunca fui filiado, embora tenha simpatia pela esquerda.

Mas, afinal, qual o crime que cometeu? O que foi ele viu?

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VIU O POVO

Na nova cartilha / Ivo viu a greve / Ivo viu o povo” como canta o poeta alagoano Ledo Ivo. Seu xará Barbieri abrigou em seu domicílio um casal perseguido pela polícia da ditadura, a pedido de Zélia, esposa de seu grande amigo Costa Lima. Sua residência foi invadida e vasculhada.

A Polícia do Exército descobriu no meu apartamento exemplar da revista americana Ramparts, que denunciava tortura no Brasil, além de alguns textos sobre a repressão. O interrogatório foi violento. Pau-de-arara, choque-elétrico, eu completamente nu. Duas sessões por dia, uma de manhã, durando cerca de duas horas, outra mais longa à tarde – conta Ivo, que volta a indagar ao entrevistador:

Você não acha que estou demorando demais nessa passagem?

Não. Não estava. Ele prossegue:

A experiência foi terrível, porque da minha cela escutava os gritos dos torturados. Choro, sofrimento, impiedade, desespero. Eles botavam em volume máximo músicas dessas bem barulhentas, para que os gritos dos torturados não fossem ouvidos na redondeza lá fora. Tais cenas nunca mais se apagaram da minha memória.

Quando a coisa serenou um pouco – serenou é uma forma de dizer – Ivo tentou transmitir seu amor pela literatura a um militar graduado, que em um dos interrogatórios havia lhe dito, aparentemente conciliador:

Professor, agora chegou a hora do diálogo. Você é pública e notoriamente conhecido como comunista.

Não. Eu não sou comunista. Nunca fui. Sou professor.

Começou então a “falar da Literatura Brasileira, que era a expressão da alma nacional”. O milico. que não se mostrou interessado naquela aula, achou que Ivo havia baixado a guarda e perguntou à queima roupa:

Como é que você acolheu esse casal em seu apartamento?

Imagine, a vizinha Zélia tinha duas crianças. Eu ia denunciá-la? Jamais!

Ivo inventou, então, o nome de alguém que disse ter conhecido na cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) e com quem se encontrava todas as semanas para ver filmes. “Ah, no MAM onde todo mundo é comunista” retrucou o milico.

VIU O LIVRO

Depois da barra pesada, Ivo foi transferido para a Vila Militar, onde compartilhou a cela com um médico e um estudante de economia e depois para outra unidade do Exército, onde havia uns quinze ou vinte detentos, a quem chegou a dar aulas de francês. Reivindicaram usar a biblioteca. O comandante, que gostava de dar lições de moral, sapecou:

Leitura? Vocês podem ler os clássicos, esses que vocês acham que são quadrados como Eça de Queiroz. Mas só em português.

E deu uma de sabichão:

Por exemplo, vocês podem ler O Capital. Agora, Das Kapital não podem, porque está em alemão.  

Preso por mais de três meses, Ivo foi finalmente solto: – Ao sair do quartel, na porta estava a Teresa com o carro me esperando. Eu vim direto para morar com ela em Copacabana e depois nos casamos.

Acontece que ele havia sido demitido de uma das instituições onde trabalhava “por abandono de emprego, sem indenização”. Mas na Uerj foi diferente. A reitoria suspendeu o contrato e, quando voltou, foi readmitido imediatamente.

Um capítulo é dedicado à sua eleição para reitor, em 1987, e à sua gestão de 1988 a 1992, quando com uma equipe a quem ele rende tributo conseguiu transformar a Uerj de um escolão de 3º grau em uma universidade respeitada, democratizada, com suas bibliotecas renovadas, dedicada ao ensino, pesquisa e extensão, com cursos de pós-graduação consolidados e bem avaliados pela CAPES.

O nome Ivo está contido na palavra livro, uma ferramenta “cheia de muitas letras e muitas palavras”, como deplorou o Imbrochável a seus seguidores bozozóicos. Mas até mesmo encarcerado, tentou despertar na milicada o prazer da leitura, que se faz presente na memória da resistência à ditadura recuperada em “Da Roça à Reitoria: Ivo Barbieri.

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire – Indigenista. Professor. Cronista, em Taquiprati. O professor Bessa Freire é também Conselheiro da Revista Xapuri. 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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