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LULA, O Pütchipü'u DO MUNDO

LULA, O Pütchipü’u DO MUNDO

Lula, o Pütchipü’u do mundo

Lula age como um pütchipü’u. Pensa como um pütchipü’u. Usa as mesmas ferramentas que um pütchipü’u. Então, será ele um pütchipü’u? Estou convencido: a recente projeção do no cenário mundial mostrou que Lula é muito mais do que “o cara”. 

Por José Bessa Freire

“O pütchipü’u é o “mestre da palavra’, o “dono do verbo”, enfim um índio sábio, especialista no manejo da linguagem.”

Lula é o próprio pütchipü’u. Na verdade, sempre foi um pütchipü’u, desde a época em que liderava as greves em São Bernardo e intermediava as negociações com a Fiesp, mas sua pütchipü’ulidade adquire agora dimensão planetária. Que diabo, afinal, vem a ser o pütchipü’u?

Pera lá! Antes de qualquer explicação, deixa que eu vá logo prevenindo: não entendo chongas de internacional. E daí? Muitos colunistas de plantão da grande mídia também não, o que não impediu, nessa semana, que pontificassem, com ar doutoral, sobre a recente iniciativa diplomática do Brasil e da Turquia no Irã.

É impressionante! Os caras falam com tanta intimidade, parece até que o Obama, com quem tomam o breakfast, lhes passa informações em primeira mão. Não manifestam dúvidas, só certezas. São contundentes.

Concordaram com a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, que criticou a ação de Lula no cenário internacional. Ela acha que o acordo arrancado pelo Brasil e pela Turquia, com base – quanta ironia! – em exigências prévias da própria Casa Branca, “torna o mundo mais perigoso”, porque “ajuda o Irã a ganhar tempo na execução de seu programa nuclear”.

Manifestou “discordâncias sérias com o Brasil”. Cobrou do Conselho de Segurança da ONU sanções ao Irã e reafirmou a doutrina Bush de segurança, que confere aos a função de meganha do planeta.

Essa é a opinião dela, lá pras negas dela. Tudo bem, ela está no seu papel. Serve ao militarismo e à indústria bélica. Quem não está no seu papel são alguns comentaristas brasileiros, que de forma subserviente embarcaram na canoa norte-americana, adotando o ponto de vista da secretária como se fosse “a verdade”. 

Criticaram “o erro de cálculo do Itamaraty”, sua “desastrosa política externa” e as “ambições megalomaníacas” de Lula. Debocharam do que chamam de “diplomacia da periferia”. Incorporaram o complexo de vira-lata: “Imagina, o Brasil querendo interferir nos destinos do planeta como se fosse uma grande potência nuclear”!

Se me permitem, quero discordar. Ora, se Lula e o Brasil, por essa razão, não podem influenciar a diplomacia mundial, então jornalista que nasce e reside no país do Lula está incapacitado para tecer comentários sobre política internacional, distanciado que está das fontes e do círculo de poder.

Só quem pode falar é colunista do New York Times ou do Washington Post. Acontece que o poder do Lula não se apoia no canhão e na bomba atômica. Lula, em vez de rosnar como um Pitt Bull, fala como um Pütchipü’u.

O DONO DO VERBO 

O pütchipü’u é um personagem fundamental na cultura dos índios Wayuu, que são conhecidos também como Guajiro, vivem na Venezuela e na Colômbia e somam atualmente cerca de 500 mil habitantes nos dois países.

O direito consuetudinário dos Wayuu parte do princípio de que os conflitos são inevitáveis em todas as sociedades e que cada uma desenvolve mecanismos para manter a ordem, a paz, a harmonia e a coesão social. Para isso, algumas sociedades criaram instituições como polícia, cadeia, tribunal, lei. Os Wayuu criaram um sistema jurídico singular onde quem se destaca é o pütchipü’u.

Sua origem está no grande legislador, que segundo as narrativas míticas é um pássaro, que dita as primeiras normas de em sociedade. Esse pássaro dá origem ao pütchipü’u, cuja retórica, similar ao canto das aves, busca a harmonia. O pütchipü’u é o “mestre da palavra’, o “dono do verbo”, enfim um índio sábio, especialista no manejo da linguagem.

Tem a fala envolvente, convincente, sedutora e o dom da clarividência, do bom humor. Sua função é usar tais qualidades para solucionar disputas familiares e conflitos interétnicos.

Quando alguém se sente prejudicado, chama logo o pütchipü’u. Ele vem, analisa, conversa com as partes em litígio, persuade, insinua, negocia, cria cenários às vezes ameaçadores sobre os possíveis desdobramentos do caso, mostrando que todo mundo pode perder. Ele não é bem um juiz que condena ou absolve.

É mais um intermediário, um mediador na solução das brigas, e isso porque o sistema jurídico Wayuu não é um sistema de “ punitiva”, mas de “justiça de compensação”, “justiça de restituição”.

Esse sistema, do qual o pütchipü’u é – digamos assim – “funcionário”, não está tão preocupado com as normas, que são limitadas a alguns princípios gerais. O seu foco não incide sobre a transgressão ao código, mas sobre a “origem do dano”.

A intencionalidade de quem cometeu um prejuízo não é relevante, mas sim sua “responsabilidade objetiva”. A justiça se faz não para vingar e punir os culpados, mas para restabelecer a paz e o equilíbrio das relações sociais.

Por isso, a intervenção do pütchipü’u não se conclui com um “ganhador” e um “perdedor”, mas com a restauração da harmonia entre as partes em litígio. O principal é o reconhecimento do dano por parte de quem o fez e uma compensação ao prejudicado, em geral, com o pagamento de uma indenização, o que é decidido não por uma sentença imposta às partes, mas por consenso, pelo acordo através da conversa, do papo, da negociação, da conciliação, e esse é justamente o do pütchipü’u.

Dessa forma, os Wayuu consideram os conflitos sociais não como formas indesejadas de patologia social, mas como eventos cíclicos inerentes à vida comunitária, que abrem a possibilidade de recompor as relações sociais, solucionando as desavenças através do diálogo, que é – segundo Jorge Luis Borges – a mais criativa invenção do ser humano, mais importante do que a bomba atômica. Contra o canhão, a palavra. 

EL PALABRERO

Nem todo pütchipü’u tem sucesso. Quando tem, o pagamento que recebe pelos serviços prestados é uma vaca ou algumas ovelhas e cabras, mas atualmente alguns deles recebem dinheiro. 

No entanto, o benefício maior é o aumento de seu prestígio. Há casos, porém, de fracasso, quando em vez de resolver o problema, causam mais confusão, originando novas agressões e o agravamento das hostilidades entre as partes. Aí, seu prestígio diminui.

Embora não sejam perfeitos, os procedimentos do sistema normativo Wayuu não devem ser considerados como algo rudimentar e primitivo, mas, ao contrário, constituem uma forma de exercer justiça que pode contribuir significativamente para o aperfeiçoamento dos sistemas legais de sociedades mais complexas.

Um juiz da Venezuela, Ricardo Colmenares, autor de dois livros sobre o tema, está convencido de que o estudo do sistema normativo Wayuu pode favorecer a incorporação de formas jurídicas indígenas dentro do sistema jurídico formal.

Durante os últimos cinco séculos os Wayuu vêm aplicando o direito próprio dentro de seu território, mas de forma extralegal. Só recentemente esse direito foi reconhecido pelos dois países. Os colombianos, cuja Constituição de 1991 garantiu a autonomia dos territórios indígenas, começaram a estudar o sistema jurídico Wayuu, entendendo que o seu uso pode ser útil para a administração dos territórios.

Na Venezuela, um pluralismo jurídico tácito funciona também em território Wayuu, na medida em que num mesmo espaço social coexistem dois ou mais sistemas normativos – o direito escrito e o direito consuetudinário.

Tanto lá como na Colômbia o pütchipü’u é designado pelo termo espanhol de “palabrero”, uma expressão meio ambígua que numa tradução aproximativa significa também falastrão, ou aquele que tem lábia, manha, esperteza, o que pode revelar um preconceito grafocêntrico de sociedades com escrita em relação às culturas da oralidade.

Lula, que veio do mundo da oralidade, que construiu seu saber na luta sindical e política, no trabalho, nas assembleias, nas negociações com a Fiesp, no convencimento dos metalúrgicos, atuou como um sábio pütchipü’u no caso do acordo com a Turquia e o Irã, acordo conquistado – como escreveu Leonardo “mediante o diálogo, a mútua confiança que nasce do olho no olho e a negociação na lógica do ganha-ganha.

Nada de intimidações, de imposições, de ameaças, de pressões de toda ordem e de satanização do outro”.

LULA, O  Pütchipü'u DO MUNDO
Foto: Divulgação / Alan Azevedo / MNI

Nesse caso – confirmou o próprio Lula – não tem essa história de ou dá ou desce. “Aqui ninguém dá e todo mundo desce”. Desde as lutas dos metalúrgicos do ABC, quando negociava com a poderosa Fiesp, cercado por baionetas, Lula já era um legítimo pütchipü’u. A ONU pode muito bem aproveitar essas qualidades para que ele atue como pütchipü’u nos conflitos armados no mundo, como embaixador da paz.

P.S. 1– Espero que os eleitores do Maranhão não se deixem convencer quando Lula pedir votos para a Roseana Sarney (vixe, vixe!). A aliança do PT com os Sarney é um desastre que desmoraliza o partido.

P.S. 2 – Agradeço ao antropólogo wayuu do clã Uliana, Weidler Guerra Curvelo, autor do livro La disputa y La palabra. La Ley em La sociedad wayuu, publicado em 2001. Foi de lá que retirei as informações aqui apresentadas. O livro, dividido em oito capítulos, recebeu o Prêmio Nacional de Cultura em 2001 e foi publicado pelo Ministério de Cultura da Colômbia.

Seu autor é mestre em antropologia pela de Los Andes e foi secretário de Assuntos Indígenas do Departamento da La Guajira. Em seu trabalho de pesquisa, entrevistou vários “palabreros”, entre os quais o conhecido Sarakaana Pushaina, que lhe apresentou o funcionamento mítico do sistema normativo Wayuu.

LULA, O  Pütchipü'u DO MUNDO
Arquivo Pessoal

José Bessa Freire – universitário, escritor, cronista e gestor do blog Taquiprati, membro do Conselho Editorial da . Foto: Divulgação / Ricardo Stuckert.

 
 
 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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