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Márcia Mura: A palavra como flecha

Márcia Mura: A palavra como flecha

Márcia Mura: A palavra como flecha

vida de Márcia Mura é marcada por um guerrear constante. Escritora e educadora, ela nasceu em uma comunidade chamada ramal São Domingos, na capital Porto Velho (RO). Em 2016, após concluir o doutorado ela mudou para o distrito de Nazaré a fim de continuar sua luta pela existência de seu povo navegante. Os Mura circulam por vastas áreas do rios Madeira, Purus e Amazonas. Habitam tanto Terras Indígenas, quanto centros urbanos de Porto Velho, em Rondônia, e das cidades do Careiro da Várzea até a ponta de Autazes e Borba, no estado do Amazonas. Tañamak, nome que ela recebeu de Namãtuyky, o grande guia espiritual do povo Mura, significa “mulher guerreira”. Essa personagem foi a escolhida pela agência Real para abrir a série especial A Palavra Como Flecha, que apresentará as histórias de vida de personalidades indígenas da Amazônia Legal.

Por Marcelo Carnevale/via Amazônia Real

A tela do Zoom trouxe o olhar atento e as marcas de expressão de um rosto que sorri, mesmo quando os desafios são permanentes. A habilidade de Márcia em me acolher como seu interlocutor, com o cumprimento Puranga Karuka (boa tarde) em nheengatu, deu o tom do nosso encontro. Sagaz no manejo dos fios da ancestralidade, capaz de traçar imagens, conexões, gestos, como num bordado que ponto a ponto foi revelando o seu tesouro: a força do legado Mura.

A conversa nos remeteu rapidamente para Nazaré, distrito que a escritora escolheu como residência para dar conta do seu “movimento de interiorização”. Trata-se de uma comunidade a 150 quilômetros do centro de Porto Velho, na região do Baixo Madeira, com população em torno de 550 habitantes, composta por 130 famílias. 

Segundo Márcia, as pessoas desse vilarejo se identificam como ribeirinhas, mas na sua avaliação são muitas as camadas sobrepostas pela não- fazendo com que esse núcleo pendule entre o urbano, o consumismo da vida capitalista, e a percepção indígena, seu modo de ser e a interligação com o ambiente inteiro. Também existe “uma Nazaré mais interna, da floresta”. 

É nesse pedaço que a vida em comunidade assume o tom restaurativo para quem já viveu em muitos lugares, inclusive no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp), alojamento estudantil localizado na Cidade Universitária, em 2014, época do doutorado. “Eu fiquei o ano inteiro e levei meus filhos de forma ilegal, eles já tinham 17 e 20 anos, levei assim mesmo”, revela com um sorriso suave de quem assume convictamente as próprias escolhas como ato político.

Se a pequena Nazaré representa uma dessas escolhas, a agenda ativista coloca a educadora e escritora num nomadismo calculado. Sua movimentação obedece a um traçado que a princípio parece errante no mapa geopolítico brasileiro, mas coerente com a geografia “Mura de Pindorama”, como ela faz questão de ressaltar. 

Dessa forma, sua narrativa se inscreve no território a partir da movimentação do seu próprio corpo. “Eu subi o rio há três semanas para visitar meu filho e a família dele com a minha nova netinha, na Resex Ouro Preto (Reserva Extrativista do rio Ouro Preto, área de 204.583 hectares em Rondônia). Participei de um puxirum (mutirão) com eles. Trabalhei no roçado, nos cuidados com a neném. Depois a gente foi para um ato em defesa dos rios, protestamos contra as hidrelétricas. É muita coisa que acontece ao mesmo tempo.”

Márcia Mura faz parte de um comitê em defesa da vida na bacia do rio Madeira, numa luta constante contra a imposição de duas hidrelétricas na região: a binacional que envolve uma parceria com o governo da Bolívia, no rio Madeira, entre os municípios de Nova Mamoré e Guajará-Mirim (RO) e a hidrelétrica Tabajara, no rio Machado, em Machadinho D’Oeste (RO), a cerca de 300 quilômetros de Porto Velho, mais próxima de Nazaré e que, na sua avaliação, afetará populações tradicionais e isolados. “A coisa está em curso e nós também estamos em resistência”, alerta.

O renascer cultural

A nossa conversa se deu quando Márcia estava em Porto Velho e se preparava para visitar a Indígena Itaparanã, no sul do Amazonas. O plano era seguir de carro por um trecho da Transamazônica e depois voltar para Porto Velho “porque tenho uma atividade online e depois devo descer o rio Madeira e ir até a cabeceira do Lago Uruapeara, que é o lugar de origem da minha avó, onde minha mãe está retomando um castanhal. A gente continua nessa movimentação”.

Aos poucos, o traçado dessas jornadas compostas de longas distâncias, encontros, , protestos e arranjos comunitários faz da experiência a condição de viver o aqui e agora do território Mura. “Todas essas localidades compõem o percurso de deslocamento da minha família. Não como um resgate da tradição, mas uma recuperação e fazer renascer as memórias das nossas e dos nossos antepassados.” 

Atenta à invisibilidade imposta aos povos tradicionais pelas políticas, local e nacional, contrárias à demarcação dos territórios indígenas e que impõem uma agenda desenvolvimentista, a luta da ativista Mura demanda uma disposição surpreendente para protestar e reivindicar. Ora por meio da articulação com lideranças indígenas, ora pelo seu trabalho artístico que se dá em performances, lives e pela “escrevivência”, um conceito criado pela escritora Conceição Evaristo.  “Tive contato com o conceito escrevivência por meio da Graça Graúna. É como eu defino a minha escrita. Eu não trabalho com a perspectiva da sobrevivência, não só eu, mas vários outros parentes. Nós lutamos pelo viver bem, dentro da perspectiva do bem viver, que faz parte da nossa constituição, da nossa maneira de se entender nesse ambiente inteiro”, diz.

tese de Doutorado pela USP de Márcia Mura está em processo para ser transformada em um . A série de poemas seus foi reunida na antologia As 29 poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 2021. A série escolhida para a antologia reúne uma seleção de poemas da autora que pelos títulos nos dão uma perspectiva do seu olhar: TapuinhaParece que é MuraAncestralidadeCurumins e cunhantãs livres de Nazaré e Caminho de volta.

“Arco e flecha para guerrear”

O rio Madeira como território ancestral Mura aparece na poesia da autora, que considera sua produção situada entre “o espaço acadêmico e a sociedade não-indígena”. Ao refletir sobre a própria escrita, pensa a literatura indígena como o lugar de fala, de existência, resistência e território. Para a escritora, o exercício da escrita permite também uma conexão com outras parentas indígenas que escrevem em defesa da partilha de uma percepção de mundo, dos corpos-territórios, dos territórios, “por isso o arco e flecha para guerrear se for preciso”.

Não falta guerra no cotidiano de Márcia Mura. Quando se mudou para Nazaré, seu desejo foi o de retomar uma vida mais próxima da natureza e da origem da própria família. Uma reconexão com o território Mura que se apoiava, dentre outras fontes de sobrevivência, no roçado, nas trocas comunitárias e na realocação da sua matrícula como professora da rede pública de ensino. 

São mais de 20 anos de magistério e os últimos 5 anos dando aulas em Nazaré, na Escola Estadual Francisco Desmorest Passos. Instituição que articulou a remoção da professora sob a queixa de Márcia insistir na temática indígena para os estudantes. A manobra operada pela direção e pela coordenação pedagógica do Núcleo de Educação do Campo resultou numa sindicância por abandono de emprego, por conta da recusa da professora em se mudar do vilarejo, abrir mão da própria casa, do roçado, da vida comunitária e assumir um novo posto na capital Porto Velho. 

Um jogo de forças que extrapola as tensões sobre as divergências pedagógicas, o direito à liberdade de cátedra, e coloca no centro da disputa o direito de pensar a educação no contexto comunitário do rio Madeira. Nesse caso, pensar corpo como território, o corpo da professora ativista indígena como limite e potência do saber ancestral Mura, no exercício de resistir cada vez mais. ”Eles tiraram o meu salário, tá certo, quiseram fazer isso. Pensaram: ela vai se subjugar.”

São várias as recuperações nessa abertura para a ancestralidade capaz de sustentar uma resistência ativa e até a beligerância, como ela ressalta, na estratégia dessa reterritorialização. O pai espiritual, cacique Nelson Mura, está enterrado numa parte das terras não demarcadas, em Itaparanã. Segundo Márcia, “ele está no mundo dos encantados demarcando o território com o próprio corpo”. Ele foi a referência no processo de reconexão, pertencimento e espiritualidade. Os filhos e netos dele fizeram o caminho de volta, saíram da cidade e retornaram para comunidade. Hoje, dão continuidade ao objetivo da luta para regularizar as terras no sul do Amazonas. 

Nesse processo de renascimento de seu povo, Márcia Mura recebeu o nome de Tañamak por Namãtuyky, que é o grande criador e guia espiritual.  O significado redefine a imagem da escritora e professora como “mulher guerreira” e segundo ela, promove uma ligação com o território de Itaparanã. 

Como Tañamak, ela experimenta desejos legítimos que esbarram na ambiguidade de mundos, no hibridismo de quem circula por Pindorama e lida com a realidade brasileira. Na intimidade, como qualquer das mulheres Mura, Márcia deseja passar mais tempo na sua maloquinha, deitada na rede ouvindo os cantos dos pássaros, ficar e fazer as coisas junto das primas, viver a vida em comunidade. No entanto, a articulação exige mais presença na cidade, no embate constante e na administração dos danos sentidos no próprio corpo-território: adoecimento, desgastes emocionais, físicos e mentais de quem está sempre à frente das articulações, em diferentes desafios da resistência Mura. Ela não mora no Itaparanã, mas está presente pela luta. 

A “Maloca Querida”

A casa na qual morou a família de Márcia, em Porto Velho, se tornou um espaço cultural de vivências, encontros e acolhimento de parentes, apresentada publicamente como “Maloca Querida”, em 2015. O endereço também serve para algumas das articulações do Coletivo Mura com o objetivo de promover a afirmação indígena e suplantar a falta de espaço para a transmissão do saber oral e das tradições nas escolas das comunidades.  

O Coletivo Mura funciona interconectado nas redes físicas locais. Não tem sede, endereço oficial ou redes sociais. Está em vários lugares do território e se faz por meio de outros tipos de articulações presenciais para somar, lutar e promover uma conexão com o ambiente inteiro. Tudo é baseado no cultivo dos alimentos, da medicina tradicional, da confraternização e bem viver. “A gente vai pro roçado e traz uma macaxeira, a gente vai lá pro fundo do quintal e tem um igarapé, pesca um mandi quando não tem outro peixe e faz um caldinho muito gostoso”, afirma. 

Em Nazaré e em outras comunidades ribeirinhas, Márcia observa que a organização política se dá de acordo com a realidade local e lida com outros tipos de enfrentamento, dentre os quais estão as distâncias e os custos de locomoção e estadia em outras cidades. Algo que inviabiliza grandes movimentações. O apoio que a ativista recebe vem na maneira como eles a acolhem, no carinho e nas trocas que são estabelecidas pelo preparo dos alimentos, cantos e diálogos. O apoio vem da força de viver em comunidade.

A defesa do Lago Maravilha, do outro lado do rio Madeira e de frente para Porto Velho, segundo Márcia, abriu espaço para uma população tradicional negligenciada. “Estamos recuperando esse pertencimento indígena. Por que não querem sair de lá? Por que o lago é tão importante? Quem eram os antepassados?.” 

O contato com a família de dona Conceição, considerada por Márcia a guardiã do lago, representa um trabalho de recuperação de corpos, espíritos e territórios Mura, segundo a liderança. Uma família que vai buscar outros fios de memória para tecer uma rede de fortalecimento da presença naquela região.

No limite do corpo-território, a ancestralidade indígena também está presente na capital Porto Velho, onde Márcia Mura acompanha jovens do movimento de afirmação, como Deise Lemos Carvalho, que tem memórias afetivas da avó e que foi criada dentro do contexto amazônico “mesmo que a família não tenha o sentimento de pertencimento como resultado do apagamento promovido pelo Estado”. 

Revisitar essas memórias e buscar a conscientização da ancestralidade Mura é ampliar uma cartografia que expressa outros saberes e outro tipo de ocupação: dos que lá estavam antes dos seringais, antes dos não-indígenas chegarem, antes da geração de energia que barra os rios e muda os ciclos que orientam as cheias, as secas, o tempo de plantar e de colher, de pescar e de ocupar. 

Uma articulação que lida com a exigência de uma interiorização em si, na apreensão de um território de saberes, e com a movimentação guerreira do corpo de Tañamak pela rede que se tece como Mura. É o Caminho de volta que Márcia refaz na região do rio Madeira.

 

Caminho de volta

Sonhei com a maloca ancestral

Sentada no chão batido no cantinho da maloca uma

Anciã

Seu olhar transcendia ancestralidade

Tudo emanava o espírito sagrado

As palhas de paxiúba

E aquela anciã que era eu mesma

Agora eu sei o caminho que me levará à maloca

Ancestral!

 

Márcia Mura é autora do livro O espaço lembrado: Experiência de vida em seringais da Amazônia (Edua, 2012). Recebeu o prêmio de intercâmbio cultural do Ministério da Cultura em 2010. Escritora indígena coordenadora do Coletivo Mura, formada em História pela Universidade Federal de Rondônia, tem mestrado em sociedade e cultura na Amazônia (UFAM) e doutorado em pela Universidade de São Paulo, na qual é pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral. Márcia também faz parte do Instituto Madeira Vivo e do Movimento das Wayrakunas do Brasil, bem como da Associação das Mulheres Guerreiras de Rondônia-AGIR.

 

A ilustração que abre este artigo é da artista Auá Mendes baseada em fotografia de Xênia Barbosa.

Marcelo Carnevale é carioca e reside em São Paulo há 19 anos. Jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Humanidades pelo Diversitas, Programa de Pós-graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa o conceito ampliado de vizinhança através de práticas dialógicas, de tecnologias comunitárias e do direito à cidade. Integra o grupo de pesquisa, ensino e extensão do Diversitas USP. Colabora com a Amazônia Real desde 2016.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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