Marco Temporal, não!
Ana Paula Sabino, faz importante chamada sobre o Marco Temporal. Explica como o STF pode literalmente decidir sobre a vida dos povos originários. O marco temporal que, se aprovado, coloca em risco o modo de vida dos diferentes povos indígenas do Brasil
O futuro dos territórios indígenas está, literalmente, nas mãos do STF. A princípio, estava marcado para o dia 28 de outubro o julgamento no Supremo Tribunal Federal que pode definir futuro das terras indígenas. Com o seu adiamento, em 22/10/2020, pelo presidente do STF, ministro Luiz Fux, não há mais uma data definida.
A pauta dos territórios indígenas está no centro do debate de uma série de ações no STF, a maioria delas relacionadas com conflitos causados pela ausência das demarcações – são 365 ações pendentes de julgamento no tribunal, de 1988 a 2020 –, em processos que se arrastam por décadas, causando imenso dano à sobrevivência dos povos indígenas nas áreas em disputa.
O Brasil deve aos seus povos originários a solução dessa dívida histórica, resguardada em seu texto constitucional. No o Art. 67 da Constituição Federal, promulgada em 05/10/1988, a União estabeleceu o prazo de cinco anos para concluir a demarcação das terras indígenas.
Hoje, passados 32 anos, os povos indígenas continuam desrespeitados, desprotegidos, com a maior parte de suas terras por demarcar e, agora, encontram-se ameaçados por um inadmissível marco temporal que, se aprovado, coloca em risco o modo de vida dos diferentes povos indígenas do Brasil.
A retirada de pauta do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, relativo à reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da TI Ibirama-Laklanõ, definido pelo STF como de repercussão geral, aumenta a vulnerabilidade dos povos originários e de outras populações tradicionais brasileiras, hoje sob ataque frontal das forças do capital, da mineração e do latifúndio.
DO QUE TRATA O RE 1.017.365?
O Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte do território tradicional desse povo.
A terra em disputa é parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.
Ao reconhecer a “repercussão geral” do caso, o STF poderá fazer com que este sirva de referência e como um guia de orientações gerais para todos os processos de demarcação de terras indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais.
Este caso é de grande interesse e alvo de pressões dos setores do agronegócio, da mineração, e do próprio Governo Federal, que buscam incansavelmente retirar direitos dos povos indígenas e explorar seus territórios.
E, para além, a Corte também irá, neste mesmo julgamento, decidir se mantém ou não a medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, em 05/2020, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017, instrumento usado para institucionalizar o “marco temporal” como norma dos procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas.
Em decisão publicada em 11/04/2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado neste caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os demais casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário. Por isso essa deliberação é tão importante, ela decide o futuro da demarcação dos territórios indígenas no Brasil.
O cancelamento da pauta no STF coincide com a aposentadoria do Ministro Celso de Mello e ocorreu no dia da aprovação pelo Senado do novo ministro indicado por Bolsonaro, Kassio Marques, desembargador federal que atuava no TRF-1, em Brasília.
O QUE É O MARCO TEMPORAL?
O marco temporal é uma tese que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988 ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos originários foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.
Essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar judicialmente por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988”.
O QUE ESTÁ EM JOGO
O que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado.
A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Do outro lado, há uma proposta mais restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”.
Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, e que igualmente restringem a posse e o usufruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.
Ainda que os efeitos do RE 1.017.365 sejam restritos às partes processuais (inter partes), a interpretação feita pelo Tribunal pode determinar o destino de outras ações dentro do mesmo tema. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.
TERRAS E PAUTA SOCIOAMBIENTAL NO STF
Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há diversas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas.
Estudo recente, realizado pelo Supremo em Pauta da FGV-Direito/SP e WWF-Brasil, registra 72 processos esperando solução no STF, seja aguardando julgamento liminar ou definitivo. Todos eles têm relação com direitos socioambientais vinculados à categoria “terras”, envolvendo a demarcação de territórios indígenas e quilombolas, das comunidades tradicionais e da reforma agrária.
Conforme achados do estudo, há uma recorrência de litígios constitucionais em torno das terras indígenas, caracterizados por conflitos entre comunidades originárias e particulares interessadas nos processos de demarcação, sobrepostos por embates entre Estados e União. A natureza dispersa dessas ações pode ser um obstáculo para o acompanhamento das ações e decisões no âmbito do STF.
O estudo revela também que a agenda socioambiental no STF é fortemente pautada por: a) disputas relacionadas à demarcação de terras e ao marco temporal; b) conflitos, envolvendo questões de competência legislativa e fiscalizatória; c) litígios interconstitucionais relacionados às normativas pré e pós-Constituição de 1988; e, d) de forma transversal a todas essas questões, pelo falso dilema da proteção ambiental versus desenvolvimento econômico e suas variantes com mais ou menos sustentabilidade.
Como por trás de cada conflito há interesses perversos de ruralistas fomentando disputas fundiárias, causando o aumento da violência que resulta no assassinato de lideranças indígenas, caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas, rechaçando definitivamente a tese do marco temporal, em todo o país os conflitos agrários terão o caminho aberto para uma solução, encerrando, assim, dezenas de processos judiciais e evitando milhares de mortes em tempos presentes e futuros.
As terras indígenas que aguardam em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.
Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar o esbulho e as violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.
Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho possessório a terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.
INDÍGENAS ISOLADOS
Há referências de povos indígenas isolados ainda não reconhecidos pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política do não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, em razão da dificuldade de obtenção de informações a respeito da ocupação na data exata de 1988 pela própria situação de isolamento voluntário desses povos.
Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.
Dada a importância da matéria, o ministro relator do caso Xokleng, Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados na discussão sobre o tema. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o assunto contribuam subsidiando o tribunal com informações. Quase 40 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no processo – entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas.
Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele. Usufruindo do direito de acesso à Justiça, que foi assegurado aos povos indígenas pela Constituição de 1988, o povo Xokleng também se manifestará no julgamento.
POSICIONAMENTO DA APIB
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou, em 05/10/2020, a nota 32 ANOS DE RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS, em defesa dos direitos indígenas, em função do julgamento. Veja a nota na íntegra:
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, neste 5 de outubro, data histórica de promulgação da Nova Constituição Federal, que em 1988 encerrou um período sombrio na história do nosso país, e reconhece aos nossos povos no capítulo VIII “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Art. 231) manifesta por meio desta nota pública:
Primeiro – A sua homenagem, respeito e agradecimentos ao Constituinte originário, que soube se posicionar contra a política genocida, assimilacionista e integracionista que marcava até então a formação social do Brasil, ainda com muita força durante a ditadura militar, cujos projetos de desenvolvimento atingiram na Amazônia povos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato como o povo Waimiri Atroari, com a Usina de Balbina, e o Yanomami, já no início dos anos 90, por conta da invasão garimpeira, fora os indígenas assassinados Brasil afora.
A APIB lamenta, porém, que, após 32 anos da Carta Magna, as diversas garantias de direitos arrancadas com articulação e pressão social, incluindo as intensas mobilizações dos povos indígenas, estejam no atual momento político em franco retrocesso, sob a égide de um governo assumidamente autoritário, racista e anti-indígena, subserviente de interesses de corporações nacionais e internacionais, e que aproveitou-se da pandemia da Covid-19 para literalmente “passar a boiada”, atropelando ou suprimindo direitos de trabalhadores, as instituições e políticas públicas de saúde, educação, entre outras (estas, diferenciadas para os povos indígenas), bem como a reforma agrária e a demarcação e proteção, enfim, o respeito aos direitos territoriais, à organização social, à identidade e cultura, o usufruto exclusivo e a autonomia dos povos indígenas.
Por conta dessa afronta aos direitos indígenas, executada pela via administrativa, jurídica e legislativa, é que a APIB reitera o seu entendimento de que, após 520 anos, os povos indígenas brasileiros deparam-se com um novo projeto de invasão e genocida, comandado pelo governo Bolsonaro.
Segundo – A APIB homenageia a memória dos nossos ancestrais que durante a história toda nunca se dobraram a quaisquer projetos de morte. Especial reconhecimento fazemos aos nossos líderes tradicionais, muitos dos quais em decorrência do descaso governamental se foram, vítimas do novo Coronavírus, e que, mesmo sem as condições tecnológicas dos tempos atuais, influenciaram a aprovação do capítulo constitucional que nos diz respeito. Eles continuarão a ser as nossas referências, fontes de inspiração para resistir aos ataques que com o atual governo se intensificaram contra nós, por meio de políticas e ações de criminalização, mentiras e acusações que buscam nos culpabilizar, por exemplo, dos crimes ambientais, que na verdade acontecem muitas vezes incentivados por este governo.
Terceiro – Esperamos, por todas essas ameaças e ataques, uma vez que tem a atribuição de zelar pelo respeito à Lei, que o Supremo Tribunal Federal estabeleça de uma vez por todas a interpretação do marco legal do direito de ocupação tradicional dos nossos povos sobre suas terras, julgando o Recurso Extraordinário 1.017.365, que envolve os povos Xokleng, Kaingang e Guarani da T.I. Ibirama-La Klãnõ, no estado de Santa Catarina, e que é considerado pelos ministros de “Repercussão Geral”, ou seja, terá caráter vinculante, impactando todos os casos semelhantes no país inteiro. Obviamente que os nossos povos anseiam a reafirmação do Indigenato, o direito originário, congênito sobre as nossas terras e territórios, contra a tese do marco temporal defendido pela bancada ruralista e por forças contrárias aos nossos direitos fundamentais.
Brasília-DF, 5 de outubro de 2020
Sangue Indígena nem uma gota mais!
Ana Paula Sabino – Jornalista. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri, com informações da assessoria de comunicação do Movimento Nacional Indígena.