MARIELLE, QUEM ERA VOCÊ?

MARIELLE, QUEM ERA VOCÊ?

MARIELLE, QUEM ERA VOCÊ?

Quando conhecemos o amor, quando amamos,

é possível enxergar o passado com outros olhos.

é possível transformar o presente e sonhar o futur

(bell hooks)

Por Anielle Franco

Lembra que cheguei aquele dia em casa com uma camiseta do Martin Luther King? Porra, você me encheu o saco. Fez um monte de perguntas até se convencer de que eu conhecia a história do pastor norte-americano. Só daí você disse que eu podia usá-la. “É feio usar a imagem de quem a gente não sabe o que representava”. Sempre lembro desse dia quando vejo seu rosto estampado por toda parte. 

Irmã, você ia ficar DE CARA. Seu rosto está estampado nos muros das cidades, em bandeiras, camisetas, adesivos. Na internet, há milhares de ilustrações do seu rosto. Isso tem me incomodado muito. Tem gente que nunca ouviu falar de você antes disso tudo e hoje vende sua foto, sua imagem, candidaturas e pautas com seu nome. 

Alguém disse que não sou dona da sua história, que sua vida é pública. É muito maluco viver um luto público. Todo mundo acha que conheceu você, que sabe quem você foi. “A forma como vivemos o nosso luto é informada pelo fato de conhecermos ou não o amor”.

Você virou um símbolo e enxergo a força disso. No entanto, é difícil aceitar que você não é apenas a minha irmã. Você é uma mártir, como foi e é Martin Luther King. 

Recebi [e recebo] tantos convites pra falar sobre você no Brasil e no exterior que nem acredito. Não consegui [e não consigo] aceitar muitos, porque eu tenho que continuar trabalhando. 

Me sinto só o tempo todo e, muitas vezes, confusa. Quem era você? É estranho dividir você com o mundo. E quem sou eu agora que falo por você? O seu destino também era o meu? Marielle

Tenho começado a colocar tudo o que eu sinto no papel. Entendo cada vez mais a Conceição Evaristo: Marielle

“Escrevivência pode ser como se o sujeito da escrita estivesse escrevendo a si próprio, sendo ele a realidade ficcional, a própria inventiva da sua escrita, e muitas vezes o é.”

Se eu entender quem sou eu, vou entender quem você era? Marielle

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p style=”text-align: justify;”>Anielle Franco – Professora e Jornalista. Em Minha Irmã e Eu – Diário, memórias e conversas sobre Marielle. Editora Planeta, 2022. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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