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MINHA GARAGEM, MINHA VIDA

MINHA GARAGEM, MINHA VIDA

Minha garagem, minha vida

Eleito como precioso bem a ser conquistado na vida, o carro merece do brasileiro o mais especial lugar de sua casa: a frente e, de quebra, corrompe o direito à cidade para todos

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Poderia ser o quarto o lugar ideal para estacionar o carro ao chegar do , afinal é este o cômodo mais íntimo da casa, no qual dormimos e sonhamos todos os dias. Portanto, nada mais seguro e coerente ter ali, ao lado da cama, enquanto se dorme, bem pertinho mesmo, aquele reluzente adquirido, pelo qual se trabalha toda uma vida para chamá-lo de meu.

Não por menos, as garagens residenciais das brasileiras merecem destaque no das edificações, via de regra previstos para ocuparem espaços nobres, amplos e vistosos na planta geral. Melhor que a casa seja observada pelo transeunte a partir do ângulo da garagem que guarnece o carro, garantindo ao seu proprietário a devida posição social.

Por essa razão a frente da casa é o flanco preferido, pois dela se permite relacionar o carro à casa e, consequentemente, ao vitorioso proprietário. E mesmo que não possua o concorrido bólido, ter uma garagem na casa é essencial para um bom começo. Prova que o proprietário da residência não deixou de inclui-lo na perspectiva possível de seu universo de valores, embora o mais comum seja o brasileiro primeiramente adquirir seu carro para, depois, se couber no orçamento, comprar a casa.

Nesse contexto, algo inusitado, porém assustador, é o lançamento imobiliário de luxuoso edifício de apartamentos residenciais providos, pasme o leitor, de espaços para o carro na antessala. O feito acontece na cidade de Goiânia. Uma espécie de prédio residencial com garagem no apartamento.

Funcionará assim: o abastado morador, depois de vencer vias públicas congestionadas, chega ao seu prédio, transpõe o portão automático do acesso principal, alcança o mezanino conduzindo seu carrão (penso que seja), aciona e adentra no elevador sem sair do habitáculo automotivo, somente dele desembarcando já na antessala do apartamento. É quase o carro no quarto, e nas alturas. Invejável!

Lugar prioritário para o carro também está nos estacionamentos/garagens comerciais e outros logradouros de acesso público. São amplas áreas destinadas aos parkings que confinam a edificação do negócio como se ilha fosse, cercada de carros por todos os lados.

Os edifícios de salas e lojas comerciais são alicerçados por profundas e vigorosas cavidades de concreto: três, quatro pisos subterrâneos, não raro mais dois, três pisos antecedendo ou sucedendo mezaninos, tudo para recepcionar a demanda automotiva enquanto se trabalha ou se vai à loja – é carro debaixo da , na superfície, no ar…

No , a tendência é que se agrave esta realidade. Por aqui ainda é paradigma a vinculação entre a área a ser edificada e o número de vagas ou de garagens exigido pelo poder público para liberar o alvará de construção. Ao contrário da de uso e ocupação do solo praticada em países desenvolvidos, a lógica por aqui consiste em condicionar a liberação da construção do empreendimento à capacidade ofertada de vagas e garagens para carros, aumentando esta proporção quanto mais adensada é a região escolhida.

Um contrassenso, pois o problema das regiões saturadas das cidades não se traduz na sua reduzida capacidade de guarnecer o volume da frota de carros circulante no entorno dos ambientes construídos, mas no ilógico estímulo ao seu uso incontido. Ou seja: a questão não é ter garagem garantida para o carro no prédio comercial construído em área já excitada, mas como o carro vai chegar a ela.

O problema não se resolve assim, sabemos todos pelas experiências testadas em centenas de cidades afora. Nestas, quanto mais saturada é a região da construção requerida, menos garagens são permitidas, quando não, nenhuma. Trata-se da racionalização do uso do carro por meio de uma política que restrinja a opção pelo transporte individual em favor dos modais coletivos e não motorizados de deslocamento de pessoas.

Outra galopante e controvertida realidade está garantida no instrumento da outorga onerosa, conceito que subverte o bom senso na gestão das cidades. Previsto em legislação específica para ser utilizado com o máximo de parcimônia, permite que o empreendedor edifique, mediante contrapartida financeira, seus complexos imobiliários além do que suporta a infraestrutura da cidade, provocando assim sobrecargas além das possibilidades de seu gerenciamento pela governança local.

Em tempo de crise econômica que empobrece cada vez mais o cidadão e compromete arrecadações oficiais com tributos, a outorga onerosa é tudo aquilo de que medíocres governantes lançam mão para continuar, em sua esmagadora maioria, errando na execução de suas atribuições. Uma generosidade que virou regra, onde o poder de compra de espaços na urbana corrompe a equidade que deveria balizar o direito à cidade para todos.

Com isso, incham as cidades os prédios e construções horizontais, todos abarrotados de garagens para guarnecer nossos carros, sob o pretexto do suposto uso misto dos espaços urbanos sem justificativa plausível, sem as mínimas mitigações necessárias. Um tal de entra e sai incessante de carros a trançar suas ruas e calçadas, que além de mal construídas e desprovidas de padrão, ainda mais infernizam a vida dos pedestres, sem e com deficiência. É o resultado da lógica da supremacia das garagens em detrimento da vida!

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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