Minhas filhas estão me chamando de semente

Minhas filhas estão me chamando de semente

Por Magaró Ikpeng

O trabalho com as sementes é um trabalho que adaptou muito fácil com as mulheres, que têm mais paciência, mais habilidade na coleta de sementes. Os homens não conseguiram porque eles não têm essa sensibilidade com essa atividade.

Então você tem que ir muito longe para colher ou você colhe aqui perto. Tem semente que fica nas matas ciliares, que dão na beira do rio, e têm as sementes que dão na firme. Eu acredito que isso deu certo para as mulheres porque a atividade da coleta é das mulheres, é para mulheres.

Quando ela acorda, sempre acorda pensando nas sementes, porque vai fazer semente. Quando está dormindo ou está deitada à noite, sempre acorda pensando em sementes, porque vai fazer semente. Quando está dormindo ou está deitada à noite, já pensa: “Eu vou pegar tal semente, naquele lugar”. Fica deitada, pensando…

Os homens não têm isso; eles não ficam pensando nas sementes. Eles têm outras atividades, não têm esse para trabalhar com as sementes. Acordo já cedo com a ideia de colher semente e, inclusive, minhas filhas estão me chamando de Semente.

Tem muito tipo de semente e cada semente é um trabalho. Semente grande, você vai e pega; e se for carnosa, você tem que trabalhar ela. Se for pequena, tem que procurar e peneirar. O que não caiu, você tem que subir para tirar. Isso que a gente faz com as sementes. A gente tem que andar no sapé, no sapezal, na mata fechada, ou na mata aberta. Cada semente é um lugar e um desafio para colher.

A gente fica sabendo que a Terra vai esquentar, que a Terra vai explodir, que as pessoas vão morrer, e que a Terra está muito quente por causa das mudanças climáticas. Tudo isso todo mundo sabe. Os próprios brancos ficam falando, contando isso, mas são os próprios brancos que também desmatam. Foi com esse objetivo que a gente começou e agora estamos colhendo sementes.

Os brancos acham que só nós somos impactados com os danos que eles estão causando. Não só os ; não sou eu que vou morrer. Somos todos nós que vamos morrer. Por isso estamos falando para vocês, que respeitem o , porque o impacto não vem só pra mim, vem pra vocês também. A mantém a temperatura, a umidade e a qualidade de vida das pessoas.

Hoje, com a diminuição das matas, o Sol fica muito quente, a terra fica escassa, e a gente sentiu isso na agricultura, porque a chuva não chegou. A chuva depende da mata e, esse ano, faltou chuva, não choveu muito. A gente fez o plantio e o Sol estava tão quente que torrou todas as ramas. Atrasou a produção e não produziu muita mandioca. A gente ficou sem e isso é uma consequência muito grave das mudanças climáticas.Sem t%C3%ADtulo

Antes era bem frio, e agora, como não tem mais mato, vai esquentar e vai ser fácil de pegar fogo. A gente tem risco de não ter esses recursos, sementes, que dependem da água.

o Sol era muito baixo. Os Ikpeng antigos puxaram esse sol e levantaram ele lá em cima, amarraram bem amarrado com corda. Quando o homem branco começou a mexer com a terra, ir lá no céu – porque homem branco gosta de mexer em tudo, né? De cavar e ir lá no céu, não sei mais onde eles vão agora, porque eles já exploraram tudo. E, se arrebentar a corda cai, e vai matar as pessoas e o mundo acaba. Então as mudanças climáticas estão causando essas consequências.

Semente, para mim, são as minhas coisas. Porque, das sementes, vem embira [cipó], vêm frutas pra gente comer, material para construir artesanato, algumas ervas medicinais. Para mim, semente é vida, para mim semente é tudo.

Quando você olha em todos os frutos, pega uma fruta e vê um bichinho dentro ela, ele é o espírito-dono. A gente só procura um jeito de não fazer seleção, porque a gente não pode desrespeitar a natureza distinguindo com esses espíritos-donos, que os brancos chamam de praga. Mas não são pragas, são donos. Então a gente faz seleções, a gente procura o jeito de evitar eles – mas isso sempre vai ter.

Quanto eu vou trabalhar, vou com minhas noras, minhas netas, minhas sobrinhas, minhas filhas, porque aí elas ajudam na colheita. Sou a chefe delas aqui dentro de casa, mas todas ajudam e mandam em meu nome. Então a gente é assim, né?

Eu sou uma liderança, então tenho essa responsabilidade de estar no centro, de estar nas decisões, de falar. Mas dentro de casa, também: cada um tem sua pessoa de referência tem uma liderança de casa que lidera também seu grupo. Eu não sou chefa das pessoas., eu sou líder delas, das mulheres. Então as mulheres decidem, falam, eu só falo o que elas decidirem.

A todas as mulheres indígenas, que estudem, que aprendam, que se dediquem na sua comunidade, para lutar por seus direitos, para aprender a ser professora, ser agente de saúde, ser dentista, ser liderança na sua aldeia. E também ser liderança para representar [nossas] mulheres.

AS MULHERES COLETORAS DO

As mulheres coletoras do povo Ikpeng se autodenominam Yarang. O termo quer dizer “saúva” na língua Ikpeng e é inspirado no movimento de recolher sementes do chão da e levá-las para limpar em casa. Koré e Magaró, que vivem no Território Indígena do Xingu (MT), são duas das 65 coletoras de sementes que fazem parte do Movimento de Mulheres Yarang.

Essas mulheres começaram a trabalhar na coleta, beneficiamento, organização e comercialização de sementes porque ouviam notícias trazidas por seus filhos, e pelos brancos, dos impactos do desmatamento sobre seu Território.

Em 2008, a partir da Campanha “Y Ikatu Xingu”, tomaram a decisão de se organizar em um movimento, para ajudar a melhorar a qualidade da água na região e gerar recursos para suas comunidades.

Magaró Ikpeng – Líder indígena xinguana.
Excerto de depoimento gravado por Isabel Harari nas aldeias Moygu e Arayo, Território Indígena do Xingu, Mato Grosso, em 2016, com tradução de Oreme Ikpeng.

Depoimento completo publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016 Instituto Socioambiental. 2017. O sobre as mulheres coletoras (caixa) foi produzido pela equipe de edição do livro. Fonte: www.pibsocioambiental.org. Foto: Isabel Harari

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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