Madeira: Ministro da boiada vai sendo encurralado
Um burburinho se forma na Esplanada dos Ministérios e Praça dos Três Poderes, em Brasília, e uma série de ações ganham corpo em delegacias da Polícia Federal e barras de tribunais pra enquadrar o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Como diria o escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos, esse trouxe-mouxe no quintal do presidente da República está demorando demais da conta, mas já se apresenta como inevitável.
Por Jaime Sautchuk
“É evidente que o interesse privado de alguns poucos empresários foi colocado à frente do interesse público” – é o que diz o relatório da Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros, da Polícia Federal, sobre exportações ilegais de madeira da Amazônia, por meio de negociatas coordenadas pelo ministro Salles. O documento é assinado pelo delegado Franco Perazzoni, chefe daquela delegacia, que coordenou essa parte das investigações ora em curso.
Na medida em que descreve as operações de madeireiros ilegais e exportadores, o policial revela a existência de um baita esquema criminoso, com ramificações e fortificações dentro do Ministério e de órgãos a ele subordinados. Esses entes do governo deveriam estar agindo no sentido contrário, evitando a devastação das florestas. Contudo, o documento acrescenta, por exemplo:
“A situação que se apresenta é de grave esquema criminoso de caráter transnacional. Essa empreitada criminosa não apenas realiza o patrocínio do interesse privado de madeireiros e exportadores em prejuízo do interesse público, mas também tem criado sérios obstáculos à ação fiscalizatória do Poder Público no trato das questões ambientais com inegáveis prejuízos a toda a sociedade”.
O delegado afirma, ainda, que Salles agiu em favor de empresas madeireiras com sede no Pará, estado de cujo território sai a maior parte da madeira contrabandeada. Ele determinou a suspensão de uma instrução normativa do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que entrou em vigor em 2011, de modo a permitir a exportação de produtos e subprodutos madeireiros de origem nativa de florestas naturais ou plantadas apenas mediante autorização do instituto.
Para cancelar os efeitos desse ato, o ministro do Meio Ambiente e o presidente afastado do Ibama, Eduardo Bim, segundo a Polícia Federal, desconsideraram recomendações técnicas de servidores de carreira e, “em total descompasso com a legalidade”, anularam a instrução normativa. Com isso, entre outros feitos, legalizaram retroativamente milhares de cargas que haviam sido remetidas ao exterior sem a respectiva autorização.
ESTRATÉGIA
Eduardo Bim foi, em verdade, a primeira grande nomeação anunciada ainda em dezembro de 2018 por Ricardo Salles, que no mês seguinte se tornaria ministro do Meio Ambiente. Além de refazer normas técnicas, ele contratou paus-mandados pra funções estratégicas, como foi o caso de um ex-policial colocado justamente no Pará, estado que enfrenta as mais fortes pressões de madeireiros e mineradores. Salles nunca escondeu seu alinhamento às madeireiras.
Seguindo as diretrizes do ministro, Bim passou a impedir que funcionários do Ibama falassem com veículos de comunicação. E, depois de grandes reportagens recentes da Reuters e do Intercept Brasil, ele repetiu sua exigência de que os agentes ambientais encaminhem todas as perguntas para o Departamento de Comunicação do Instituto.
Ademais, Salles e Bim promoveram um verdadeiro desmonte do Ibama e de outros órgãos de fiscalização, demitindo servidores de carreira, com larga experiência, que agiam contra atividades ilegais de madeireiros. Em lugar destes, foram nomeadas pessoas de confiança do grupo no poder, pessoas essas que tomaram medidas de cunho oficial que facilitaram contrabando e movimentações financeiras suspeitas de pelo menos R$ 1,7 milhão desde que Ricardo Salles entrou no governo federal.
No início de março do ano passado, a agência de notícias Reuters relatou que durante 2019 o Brasil exportou “milhares de cargas de madeira de um porto da Amazônia sem autorização da agência ambiental federal, aumentando o risco de que elas tenham sido extraídas de terras desmatadas ilegalmente”. Um funcionário do Ibama disse à Reuters, em condição de anonimato, que, em um porto no Pará, metade da madeira exportada no ano passado não era autorizada.
De acordo com uma reportagem publicada pelo portal Intercept Brasil, o escritório do Ibama no Pará tentou corrigir a revelação embaraçosa. No entanto, o escritório não intensificou seus procedimentos de monitoramento – em vez disso, iniciou um processo de relaxamento das suas regras e transformou o que pareciam ser importações ilegais em envios legais ao exterior.
A reportagem revelou que, em fevereiro de 2019, Walter Mendes Magalhães Junior, policial militar paulista aposentado, havia sido nomeado superintendente do Ibama no Pará. Mesmo sem nenhuma experiência em regulamentações ambientais, ele havia emitido licenças retroativas de exportação para cinco contêineres de madeiras supostamente ilegais que estavam detidos nos Estados Unidos, na Bélgica e na Dinamarca.
A madeira pertencia à Tradelink, uma empresa britânica que diz em seu site ter “27 anos de experiência” e descreve suas “linhas de produtos de alta qualidade”. A partir da ação de Magalhães Junior, a Tradelink resgatou cargas que somavam 795 mil reais. Em um documento escrito na época, Magalhães disse que sua ajuda à Tradelink não foi exclusiva, dado que uma “ação emergencial pode ser adotada a quaisquer empresas que estiverem em contexto semelhante”.
Quando questionado pelo Intercept Brasil, o superintendente disse que a Tradelink havia solicitado uma autorização para exportação, mas que o Ibama não havia sido capaz de lidar com o pedido no tempo correto. Ele explicou que, com “poucos funcionários”, o Ibama não conseguia responder adequadamente às “grandes demandas” enfrentadas. Como resultado, a supervisão investigativa da agência foi sumariamente ignorada.
Com uma canetada, Bim garantiu que todas as futuras exportações não autorizadas de madeira, anteriormente classificadas como ilegais, se tornassem legais. Mas, apesar da manobra burocrática, continua mais alta do que nunca a possibilidade de que essa madeira agora considerada “legal” seja extraída de forma criminosa de terras indígenas ou áreas protegidas. A revisão da regra espantou alguns funcionários do Ibama. De acordo com a Reuters, Bim rejeitou a opinião de cinco especialistas do instituto.
Em um relatório sobre como a violência e a impunidade impulsionam o desmatamento na Amazônia brasileira, a Human Rights Watch analisou 28 assassinatos e 40 casos de ameaças de mortes na região, fornecendo fortes evidências de que criminosos veem ativistas e movimentos de resistência como obstáculos à extração ilegal. A HRW concluiu que uma das razões para o fracasso das autoridades na contenção da violência é o recente enfraquecimento da fiscalização de delitos ambientais.
Um indicativo desse enfraquecimento é a queda no número de multas impostas pelo Ibama por crimes do tipo. Em 2019, o número de multas ambientais caiu 34%: 9.745, o menor nível em 24 anos. O valor das multas caiu ainda mais, 43%, num total de 2,9 bilhões de reais. É o menor nível de multas desde 1995, quando o Brasil exibia recordes de desmatamento na Amazônia.
Nesse ponto, vale voltar ao relatório da Polícia Federal, que diz haver “evidente inércia governamental” que precisa ser cessada. “A tarefa exige dos poderes constituídos forte papel no fomento de modelos sustentáveis de exploração da floresta, sem, contudo, perder de vista o papel de suma importância que a fiscalização ambiental possui nesse contexto”. E arremata: “É urgente e necessário que as autoridades e os poderes constituídos estejam atentos a todas essas questões, sobretudo diante do atual momento em que vivemos”.
No entanto, essas ações de Salles têm encontrado respaldo do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, que vem segurando o ministro no cargo, apesar das evidências demonstradas pela Polícia Federal e de processos contra ele abertos na Justiça. Ao contrário, o presidente tem dito e repetido que Salles é “o melhor ministro”, numa indicação de que pretende deixar as coisas do jeito em que estão.
SUPREMO
Em outro ato, já bastante divulgado, a PF encaminhou notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal. Neste caso, o delegado Alexandre Saraiva foi destituído do cargo de superintendente da PF no Amazonas, após ter interpelado o Supremo com notícia-crime contra o ministro, acusado de defender o desmatamento ilegal na Amazônia. Ambientalistas autônomos e ligados a governos aconselham que ele deixe o cargo ou seja convidado a sair pelo presidente da República, mas isso tudo em vão, por enquanto.
Ou seja, Salles representa aquilo que o governo federal advoga na questão ambiental, que é a mesma posição de madeireiros ilegais, mineradores ilegais e grileiros de terras. A ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu andamento ao processo da notícia-crime da Polícia Federal e a encaminhou à Procuradoria-Geral da República, com a observação de que o caso é “de gravidade incontestável” – e pediu providências.
Estranhamente, na ocasião, o procurador-geral da República, Augusto Aras, interpelou o Supremo, na tentativa de evitar que fosse aberta mais uma linha de ação contra o ministro protegido. Foi informado, entretanto, de que outros processos em curso contra ele não têm similaridade e podem seguir em frente.
TERRAS INDÍGENAS
Mais do que medidas legais do governo, que são muitas e bem direcionadas, o que abre as porteiras ao contrabando de madeiras e outros produtos florestais são as sinalizações dadas pelo governo em favor dos exploradores. A colocação do próprio Ministério do Meio Ambiente na defesa dos madeireiros ilegais diante da Polícia Federal é um sinal fortíssimo, pois retira qualquer fiscalização do caminho, como que dizendo “podem passar”.
Ademais, o afrouxamento da legislação sobre desmatamento e mineração em terras da União – o que inclui os territórios indígenas e as áreas de proteção ambiental, como parques e reservas – foi outro sinal bem claro de que as porteiras estão abertas aos demolidores. Ao mesmo tempo, por iniciativa do governo, voltou a tramitar no Congresso Nacional o Projeto de Lei 490/2007, da Câmara dos Deputados, que autoriza a abertura dos territórios indígenas a grandes grupos empresariais privados. Basta que esses tenham projetos econômicos, nos setores minerais e madeireiros, a desenvolver nessas áreas.
Estudo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), revela que essa proposta, defendida pela bancada ruralista, prevê uma série de modificações nos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988. Inviabiliza, na prática, a demarcação de terras indígenas e abre as terras já demarcadas aos mais diversos empreendimentos econômicos, como agronegócio, mineração e construção de hidrelétricas.
Esse projeto tenta, de igual modo, implantar de vez a tese do Marco Temporal, que derruba o direito de usufruto exclusivo das terras indígenas pelos povos originários, garantido pela Constituição. Estabelece outras aberturas degradantes, como a possibilidade de que a União se aproprie e disponibilize para a reforma agrária terras em que tenha havido “alteração dos traços culturais da comunidade”.
O chamado Marco Temporal já é alvo de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecendo que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988. Naquele dia, entrou em vigor a atual Constituição Brasileira. A bancada ruralista no Congresso e instituições ligadas ao agronegócio defendem o marco, pois significa, na verdade, a retaliação ou repartição dos territórios indígenas. Os povos indígenas e entidades ligadas aos direitos humanos são contra, é claro.
Atualmente, por exemplo, milhares de garimpeiros ilegais estão em território dos índios Yanomami e Munduruku, especialmente no estado de Roraima. Já colocaram fogo em aldeia, espancaram e balearam indígenas, mas não são contidos pelo governo federal, muito pelo contrário. A Fundação Nacional do Índio (Funai) vem sendo desmontada também.
DEVASTAÇÃO
No final do ano passado, o ambientalista brasileiro Carlos Rittl fez detalhado levantamento, que publicou nas redes sociais da net, acompanhado de um gráfico, mostrando que a degradação florestal já havia praticamente dobrado na Amazônia brasileira em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro e do seu ministro do Meio Ambiente.
A degradação florestal disparou a 9.167 km2 no ano passado, em comparação aos 4.946 km2 em 2018, com base em dados obtidos pelo Deter-B, o sistema de monitoramento por satélite usado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para detectar desmatamento quase em tempo real. A divulgação desses dados, que são públicos, provocou a intervenção do presidente da República nesse órgão técnico-científico brasileiro.
A degradação florestal frequentemente começa quando madeireiras abrem caminhos na floresta para cortar e remover madeiras valiosas, escolhidas a dedo. Embora a maior parte das árvores permaneça intocada, a floresta perde quase tanta biodiversidade quanto perderia se fosse totalmente desmatada. A área também se torna mais vulnerável a secas e a incêndios florestais.
CONTRABANDO
Os arquivos da Polícia Federal revelam a quantidade de mais ou menos três mil navios do porte de petroleiros que deixaram os rios brasileiros e seguiram rumo aos Estados Unidos e Europa desde o início do atual governo federal. São milhares e milhares de toras de madeiras de muitas variedades, mas todas de primeira qualidade, com mais de 30 metros de comprimento e diâmetro superior a um metro e meio cada.
As operações de derrubada das árvores, desbaste dos galhos, transporte das toras em solo firme e carregamento nas embarcações exigem a presença, no meio da floresta, de máquinas pesadas, com guindastes e guinchos. Além de estrutura portuária, geradores de energia, bombas d’água e assim por diante. Deste modo, cada nova área de desmatamento aberta representa uma nova base, com grande número de pessoas armadas até os dentes. Os fiscais do Ibama que desmontaram uma dessas bases meses atrás, colocando fogo nas máquinas e caminhões, foram demitidos,
As apreensões de três embarcações brasileiras carregadas de madeira pela polícia dos Estados Unidos foram informadas aos órgãos policiais daqui por meio de ofício do embaixador daquele país em Brasília. No documento, que vazou e caiu na mídia tradicional e nas redes sociais da net, as autoridades estadunidenses informam o envolvimento do ministro Salles com aqueles carregamentos. O embaixador sugere que se faça uma parceria no sentido de conter o contrabando, mas isso já implicaria negociações diplomáticas e boa vontade do governo, o que não tem sido a tonalidade oficial.
FUGITIVO
Depois da intensificação de denúncias de crimes e de ações concretas da Polícia Federal, Salles deixou de aparecer em público, cancelando agendas marcadas há mais tempo. E com isso tem criado problemas. Foi o caso, por exemplo, de reunião do tal Conselho da Amazônia, órgão formado por duas dezenas de ministros e coordenado pelo vice-presidente da República, general Hamilton Mourão.
Na última semana de maio passado, o general Mourão convocou reunião do Conselho, pra debater vários temas, inclusive o desmatamento, e, com isso, desviar as atenções de outros temas mais incômodos ao governo. No dia marcado, um sábado, todos os ministros conselheiros estavam lá, menos um, justamente o do Meio Ambiente, que sequer avisou que não iria, nem pediu desculpas, o que irritou o vice-presidente. “É falta de educação”, disse ele.
Salles nasceu em São Paulo, filho de advogados conservadores. Ele se formou em Direito também, pela Universidade Mackenzie, mas nunca chegou a exercer a profissão, tomando o rumo da política, mas com pouco sucesso nas tentativas que fez a cargos eletivos. Por anos, ele divulgou currículo em que dizia ter curso de mestrado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, mas era mentira, o que gerou um desmentido oficial da instituição. E tampouco tem formação na área ambiental.
Foi secretário particular do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em 2013 e 14, e Secretário do Meio Ambiente de São Paulo de 2016 a 2017. Fundou, em 2006, o Movimento Endireita Brasil (MEB), organização alinhada à chamada nova direita, movimento político-ideológico de orientação fascista e racista. Um dos objetivos declarados do movimento é reabilitar a palavra “direita” no vocabulário político brasileiro.
Em 2018, Salles se candidatou ao cargo de deputado federal por São Paulo, pelo Partido Novo, tendo se destacado por usar as redes sociais pra difundir mensagens que incitam a violência. Sua propaganda associa o uso de armas de fogo no combate à esquerda e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Também divulgou vídeo falso, contendo fake news (mentiras) sobre a ONG Greenpeace, mas foi denunciado e largamente desmascarado. Teve cerca de 36 mil votos e não conseguiu se eleger, mas recebeu de presente o cargo de ministro.
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