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Morra quem morrer’: A reabertura da economia e a naturalização das mortes dos negros

Morra quem morrer': A reabertura da economia e a naturalização das mortes dos negros

Por Robeyoncé Lima

A se apresenta como mais uma opção de morte no cardápio da necropolítica. Não importa se é o coronavírus ou um agente de polícia que pisa em seu pescoço, o ar vai lhe faltar, de uma maneira ou de outra
Uma pandemia racial. A crise social, política e sanitária intensificada pelo coronavírus não afeta a todas as pessoas igualmente. Muito se fala que está todo mundo no mesmo barco, mas, na verdade, nesse sistema em naufrágio, muitas pessoas já morreram ou estão à deriva no mar e sem colete salva vidas, enquanto outras fazem churrasco e andam de jet ski.
A pandemia cria uma exposição exagerada de pessoas vulneráveis e que já estavam em situação de precariedade antes da Covid-19. As falências sistêmicas do capitalismo se manifestam de maneira mais explícita neste momento de pandemia, e se expõe graves problemáticas sociais antigas.
O que ocorreu com George Floyd e todos os protestos que acontecem nos e na Europa expõem uma péssima experiência social desse modelo capitalista estruturalmente racista. A história de muitos séculos de escravização e expõem vários erros sociais, e em muitos níveis.
Isso porque ao mesmo tempo que o racismo é estrutural, é também difuso, pois a questão racial é um fator de peso na mortalidade infantil e materna, na obstétrica, na letalidade policial, na seletividade penal, na longevidade e qualidade de vida, inclusive no contexto de pandemia. O teve uma história de quase 400 anos de escravização do povo negro, e todas essas faces do racismo estrutural são consequências desse período todo.
Com a crise, também se radicaliza a política de morte que já existia antes: quem deve viver e quem deve morrer, quem serve ao capitalismo e quem não. A necropolítica converte a morte em simples números, sem tanta importância. A cada 23 minutos um George Floyd é assassinado no Brasil.
O que ocorre é que se matam as mesmas pessoas que já se matavam antes, mas de outras maneiras. A Covid-19 se apresenta como mais uma opção de morte no cardápio da necropolítica. Não importa se é o coronavírus ou um agente de polícia que pisa em seu pescoço, o ar vai lhe faltar, de uma maneira ou de outra.
O vírus saiu da Europa de avião com destino ao Brasil, e agora chega às periferias via e também vai às cidades distantes pela estrada. O coronavírus não está mais em aviões, mas sim em terminais rodoviários e estações de metrô, afetando com mais intensidade pessoas pobres e negras, e isso não é por acaso.
A omissão intencional do (des)governo faz com que essas pessoas mais vulneráveis sejam contaminadas. No processo de pandemia, a necrogovernabilidade, também intencionalmente, classifica o trabalho doméstico como serviço essencial, expondo ainda mais as 6 milhões de trabalhadoras domésticas, em sua maioria negras. É o racismo e o sexismo em um duplo fenômeno, que nos faz relembrar que uma das primeiras vítimas fatais da Covid-19 no Brasil foi Cleonice Gonçalves, uma trabalhadora doméstica na cidade do Rio de Janeiro, e que hoje muitas outras são igualmente vítimas, como a própria Mirtes, mãe do Miguel.
Enquanto isso, a economia é reaberta, porque, no plano da necropolítica, a Covid-19 chegou onde deveria chegar. O coronavírus é tratado como pandemia enquanto sobe elevadores sociais. Depois que desce elevadores de serviço para subir o morro, deixa de sê-lo, porque é no morro mesmo que é para ficar.
É justamente por esse mesmo motivo que, embora há mais de 40 anos a humanidade conviva com o HIV, este nunca foi tratado como pandemia ou como protagonista de uma crise global, porque não atinge a economia capitalista de maneira fatal e também nunca consistiu uma real ameaça ao sistema. O capitalismo racista não permite que se considere como pandemia o fato de mais de 20 milhões de pessoas negras estarem sendo afetadas pelo HIV na África Subsaariana.
É possível começar a pensar que a pandemia estará conosco ainda por um longo período. Mas da mesma maneira que foi dito que “Milano non si ferma” (Milão não para), se defende a ideia de que “o Brasil não pode parar”, “morra quem morrer”. A abertura da economia e a proposta de um “novo normal” no meio de uma crise sanitária significa a irresponsabilidade de governantes com a contaminação em massa e, mais uma vez, com a naturalização das mortes de pessoas negras, porque sabemos muito bem que estes são os corpos mais afetados.
As pessoas que hoje fazem protestos nos Estados Unidos e na Europa justamente o fazem porque sabem que o sistema capitalista racista, ainda que em crise, não é capaz (e nem quer) modificar a si próprio. No discurso democrático, racismo não é tema, mas sim questão central de estrutura da própria democracia, porque não é possível estabelecer uma discussão sobre democracia sem discutir racismo.
Apesar disso tudo, foi internalizado na sociedade brasileira o mito da “democracia racial”, como se o racismo estrutural não existisse. Enquanto o mundo fala “black lives matter” ( importam), no Brasil os movimentos pró-democracia assumem uma posição de que agora a prioridade das forças progressistas é conter Bolsonaro e o seu fascismo. Afinal de contas, se afirma que, contra o fascismo, “somos 70%”, e graves problemas sociais como racismo, machismo, luta de classe, LGBTfobia e outras “pautas identitárias” se resolvem depois.
Robeyoncé Lima é nascida no Alto Santa Terezinha, zona norte da cidade do Recife (Brasil). Ativista de , formou-se em dezembro de 2016 no curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em 2017 tornou-se a primeira advogada trans do Estado, e hoje também compõe o mandato coletivo das Juntas, enquanto co-deputada estadual. É membra da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PE, e também dançarina amadora.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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