Nada se parece mais com uma abelha que outra

Nada se parece mais com uma abelha que outra

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) 

Quão divertidas eram as preleções do frei Salomão sobre a de Deus. Para nos confundir, à maneira socrática, ele começava levantando a possibilidade de tudo o que existe ser perfeito, sem exceção, porque todas as coisas, fenômenos e processos correntes no Universo têm uma causa necessária em conformidade com as leis naturais.
Ele usava esse argumento como trampolim para dizer que o poder do Todo Poderoso, em , talvez seja limitado pelas leis da natureza, as suas próprias, porque n’Ele potestas e potentia seriam idênticas, ao contrário do que prega a dos padres da Igreja. Nessa razão, dizia, tudo o que foi e é criado no só poderia ter sido e é criado tal como de fato foi e é, não havendo alternativas para a realidade nem a possibilidade de existência de outros mundos etc.
Assim, Deus não teria vontade ou intelecto nem opção para criar ou não determinada coisa, com essas ou com aquelas características. Vontade e intelecto são atributos antropomórficos que a gente projeta n’Ele, como se Ele fosse uma pessoa como nós, warts and all (com as verrugas e tudo).
(Mais tarde aprendi que a , no exercício de sua , iniciada  com o conhecimento da necessidade, é capaz de mudar a realidade social, etc, sempre porém obedecendo as leis naturais).
Outra coisa, acrescentava o frei Salomão, Deus não operaria com milagres, uma impossibilidade flagrante por violarem as leis da natureza, que são as Suas, sem tirar nem pôr.  
Ainda projetos de seminaristas, ficávamos chocados com as hipóteses do frei Salomão, embora nenhum de nós fosse ainda versado em São Tomás de Aquino para contradizê-lo na lata. No final da aula, porém, ele apaziguava os nossos espíritos e, ao mesmo , garantia o seu emprego, reiterando a boa e reta doutrina da Santa Madre sobre os atributos do Todo Poderoso, para nós dali em diante Quase…
Muitos anos depois, desconfiei que o frei Salomão não devia ser lá muito católico, e que provavelmente tinha bebido da fonte pestilenta do diabólico filósofo luso-holandês Bento de Spinoza. O certo mesmo é que era fã confesso de um seu conterrâneo, o Erasmo de Roterdã, aquele que botou o ovo que o Lutero chocou e deu no que deu.
Um dia o frei Salomão nos explicou a latina da conjunção “quão” com que comecei esta historinha, derivada de quam: quanto, como, que nem, com, do que (numa comparação). Usou dois adágios do Erasmo como exemplos: Quam apes apum similes, quer dizer, Tão parecida com uma abelha é outra abelha; e Quam in tragoedia comici, isto é, Que nem comediante numa tragédia (frase que alguém diz quando se sente fora de lugar).
O engraçado é que desde então passei a cometer um lapsus linguae, trocando apis (abelha em latim) por ape (macaco em inglês), certamente porque a minha vocação não era a de me tornar um cardeal abelhudo a ponto de disputar o papado, mas talvez a de ser ator.
Nem cardeal nem ator, acabei virando jornalista, e, não espalhem, fã do terrível Spinoza, devido a causas necessárias que qualquer dia desses eu conto pra vocês.
ACQ – Jornalista e Cronista. 
Capa: Jovem Nerd.

Se eu fosse ator, talvez tivesse disputado o papel do Jude Law no Jovem Papa, a série do Paolo Sorrentino na HBO...
Se eu fosse ator, talvez tivesse disputado o papel do Jude Law no Jovem Papa, a série do Paolo Sorrentino na HBO…
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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