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NO MUNDO EM FRANGALHOS, A LEITURA

NO MUNDO EM FRANGALHOS, A LEITURA

NO MUNDO EM FRANGALHOS, A LEITURA

Nunca leio os livros que critico, 

para não me deixar influenciar pelo seu autor.

 (Oscar Wilde – 1854-1900).

Por José Bessa Freire  

Como a leitura pode ajudar a curar a humanidade doente?  Já cometi aqui alguns artigos sobre o ato de ler, um deles “Contra a leitura”, escrito com muita fúria, em 2008, depois de ter ouvido um pesquisador alemão dizer que a oralidade era como uma casa de palha e barro, que dura pouco, enquanto a escrita era perene, como o castelo de pedra da cidade alemã de Bielefeld, construído no ano 1240, no alto de uma colina, que havíamos visitado no dia anterior.

Foi na “V Conferência Internacional sobre colonialismo, cultura e escrita”. No debate, dei um contraexemplo. Nasci em Manaus, onde os portugueses construíram um forte de pedra, em 1669, do qual atualmente “nem marcas restam no chão”, como cantou o poeta amazonense Ernesto Penafort. No entanto, as milenares malocas Tuyuka estão lá ainda hoje. Cada vez que a palha apodrece, erguem outra novinha, usando técnicas de construção transmitidas oralmente há séculos e ignoradas pelos analfabetos da oralidade.

AS QUASE-LEITURAS

Esse artigo indignado “Contra a Leitura” recorre a quatro autores. Um deles é o psicanalista Pierre Bayard, cuja obra “Como falar dos livros que não lemos?” não traz receitas para você “cagar goma”, arrotar cultura, se exibir “hum-sete-hum-mente” e querer ser o que “a folhinha não marca”. Trata-se de provocação bem-humorada na qual o autor define os diversos tipos de leitura, de quase-leitura e até de não leitura, todas válidas desde que ajudem a nos encontrar.

Essa diversidade reaparece em “Leituras”, da antropóloga francesa Michèle Petit, que foi lido e citado para reforçar a nossa indignação. Mas, depois disso, a autora publicou “A arte da leitura em tempos de crise”, que ainda não li, mas ouso comentar, seguindo as orientações irônicas, mas nem tanto, de Pierre Bayard, porque o título me atraiu pela atual crise mundial, que reverbera na nossa vida pessoal.

Impossível não pirar diante das imagens diárias da barbárie, cujas vísceras são expostas nos telejornais. Guerras insanas, genocídio na Faixa de Gaza, a Ucrânia invadida em chamas, assassinatos de indígenas dentro de suas aldeias, balas “perdidas” que atingem corpos de crianças e de jovens negros nas favelas do Rio, florestas incendiadas, rios contaminados, inundações, o planeta destroçado. O que fazer? Onde buscar a humanidade perdida?

A impotência é desoladora. Confesso que desde meados de dezembro dei um chega-pra-lá nas redes sociais, busquei refúgio na literatura e passei a desfrutar a leitura que dá prazer, mas com certo sentimento de culpa. A sensação de estar fugindo da luta foi mitigada pela lembrança do conselho do cacique guerreiro Payaré à sua filha pequena Kátia Akrãtikatêjê, hoje cacica do povo Gavião:

– Minha filha, se eles invadirem outra vez a aldeia e começarem a matar teus irmãos, foge. Foge, minha filha, foge, porque alguém tem de sobreviver para contar o que aconteceu. Denunciar o massacre faz parte da luta e da resistência. Não é covardia.

LEITOR RUMINANTE 

Refugiar-se na leitura para resistir. Esse é o espírito da arte de ler em tempo de crise. Sua autora, antropóloga da leitura, em entrevista durante evento em Buenos Aires, destacou a leitura, inclusive da literatura oral, como atividade de resistência, de indagação, de memória, capaz de associar as dimensões individual e coletiva do ato de ler no campo da educação e da cidadania e de dar ao leitor o sentido da vida:

Em contexto de crise, a literatura nos dá outro lugar, outro tempo, outra língua, um fôlego. Ela abre um espaço que permite sonhar acordado e pensar sobre a continuidade de nossas experiências. Torna o pensamento mais ágil. Apazigua o caos interno e dá forma a ele. Acalma o estresse e a ansiedade.

Em outro texto sobre o sabor da leitura (05/02/2023), citamos um leitor infatigável, o ex-reitor da Uerj, Ivo Barbieri, professor de literatura brasileira. Dizíamos que quando ele fala de suas leituras, a gente começa a salivar, sentindo o sabor e até o aroma do texto literário. Quem assistiu a suas aulas no doutorado de Letras da Uerj sabe disso.

Ivo Barbieri, que completa 90 anos no próximo dia 3 de fevereiro, acaba de lançar mais um livro de sua autoria “Um leitor ruminante: ensaios Machadianos”, o que nos faz lembrar a crônica radiofônica “O teatro de marionetes em Berlim” dirigida às crianças, na qual Walter Benjamin apresenta uma lista de titiriteiros com mais de 90 anos de idade:  

– É fato conhecido – diz W. Benjamin – que os grandes bonequeiros vivem apaixonadamente para seus bonecos, todo o resto lhes é indiferente. É por isso que chegam até uma idade avançada.

Meu amigo titiriteiro Euclides Souza, que reside em Curitiba e com quem atuei no Teatro de Bonecos Dadá no exílio, é uma prova disso: completa 89 anos em outubro focado no seu acervo de 800 bonecos e na sua biblioteca especializada em teatro.

Ivo Barbieri não é titiriteiro, mas suspeito que sua longevidade com qualidade de vida se deve, em grande parte, à paixão pela leitura em pelo menos 83 anos de palavras encantadas, que cumprem a função dos bonecos de Benjamin.

Ao contrário de Oscar Wilde, vou ler “O leitor ruminante” com seus 12 ensaios sobre Machado de Assis, para me deixar influenciar pelo seu autor. Depois vos contarei o resultado.

José Bessa Freire – Escritor Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. Crônica publicada originalmente em seu blog www.taquiprati.com.br.

REFERÊNCIAS:

  1. Walter Benjamin: O teatro de marionetes em Berlim. In A hora das crianças. Narrativas radiofônicas. Rio. Nau Editora. 2015.
  2. Pierre Bayard: ¿Comment parler des libres que l´on n´a pas lus? Paris. Minuit. 2007
  3. Michèle Petit: El arte de la lectura en tiempos de crisisOcéano Express Editorial. Buenos Aires/Santiago de Chile. 2009.
  4. Taquiprati: Contra a Leitura (16/11/2008) https://www.taquiprati.com.br/cronica/57-contra-a-leitura-version-en-espa
  5. Ivo Barbieri: O sabor da leitura (05/02/2023) – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1678-ivo-barbieri-o-sabor-da-leitura
  6. Entre a Maloca e o Castelo: o Belão (24/06/2007) https://www.taquiprati.com.br/cronica/132-entre-a-maloca-e-o-castelo-o-belao

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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